terça-feira, 22 de abril de 2008

Madrid Me Mata com… olhos tristes




Espanha não teve cravos vermelhos nos canos das espingardas. Teve um Generalíssimo Franco que morreu depois de ter deixado o país em testamento ao seu pupilo preparado para o efeito chamado D.Juan Carlos. Caso único na Europa, que eu saiba: um presidente levar ao trono um rei, que mais tarde foi saudado como grande abridor das portas para a democracia ou grande traidor da raça, dependendo do ponto de vista, que ali nada é pacífico.

No princípio dos anos oitenta, um alcaide, Tierno Galvan, resolveu arranjar maneira de pôr Madrid no centro turístico do mundo, tendo Nova Iorque como espécie de modelo. Cada porta sua discoteca, que dormir era pecado: chamou-lhe Movida, de seu baptismo comercial. Convenhamos que, até certo ponto, foram mais as vozes que as nozes.
De qualquer forma, era tal a folia que existe até a frase “si te acuerdas de ella , es que no estuviste allí”.





O movimento mais ou menos intelectual da coisa partiu do casal Costus, os pintores Enrique e Juan, quando abriram uma bar-passarelle-dançante-cantante-travestista-punk-neo-romãntico-revivalista-neo-barroco-anti-clerical, Via Láctea, onde se juntavam figuras assaz cultoras do estilo vive tudo hoje que o mais natural é estares morto amanhã.







Note-se que as gentes da dança, que eu saiba e em geral, porque só lá cheguei já a Movida ia adiantada, não tinham horas disponíveis de descanso para tal tômbola de existência tão solta. Ao fim de um dia de trabalho, o corpo tinha marcas a pedir calmo sofá.




E de facto, dos frequentadores do frenesim e promotores da revista Madrid Me Mata, poucos estão hoje vivos, a destacar na sobrevivência a cantora e performer Alaska, Rossy de Palma, actriz e ícone fotográfico, Pedro Almodôvar e Carmen Maura.























Em 1988 estreou o filme Mulheres à beira de um ataque de nervos, monumento cuja celebração dos vinte anos (já ? credo...) teve grande festa no passado mês de Março. Em Madrid. Pues claro! Como no?





É considerado o eixo, marca e resumo de toda uma filosofia de época: a tomada de consciência da solidão efectiva das mulheres mais o facto de terem de resolver a sua vida sózinhas, sem encosto, protecção ou amparo de culebrones ( homens paterno-dominadores com infidelidades secessivas como obrigação curricular),




desordem histérica, cores saturadas e berrantes numa estética kitsch, retorno à musica e letra das coplas que no franquismo tanto adornavam os folhetins sentimentais. (Aliás voltaram as fotonovelas com enredo ora transexual ora travesti, algumas sob a batuta do mesmissímo Almodovar).



Quem lá viveu sabe que as mulheres adoptaram diáriamente uma frase, tranformada em grito, da personagem Pepa: estoy harta de ser buena!

Consta que a grande musa e mentora, se bem que a menos folclórica e cedo dissidente, foi exactamente a La Maura, considerada uma das maiores actrizes espanholas. Depois de ter estudado artes em Paris e filosofia em Madrid, ter representado no Teatro Maria Guerrero, ter um casamento anulado, dois filhos, tem hoje a prateleira cheia de prémios, muitos internacionais, e cento e tal trabalhos na história, infelizmente, parece-me, pouco conhecidos em Portugal.





Num extinto blogue colectivo, contei que tem dos olhos maiores e mais tristes que já vi, e vou vendo, num sítio quase anónimo de tapas e raciones onde parece esconder-se da imagem que criou e lhe criaram para fora. Nestas coisas raramente alguma coisa ou alguém é o que parece.





Quando começámos a nossa conversa visual, num dia de chuva torrencial, já lá vão não sei quantos anos, talvez fôssemos mais olhudas. A idade pode ir mirrando os olhos na mesma proporção em que se estendem os pormenores da atenção e, por isso, lá se tem ido mantendo um diálogo mudo cheio de mensagens essenciais ao entendimento mais fundo. Porque há histórias que as palavras matam.




É pessoa de olhar vago, sempre ansioso na procura. Já se lhe nota muito o peso do tempo. É para nós uma espécie de relógio sem ponteiros. E como o tempo, olhando-a, magoa...! Se bem o sei ler tem lá escrito desalento, mas, sei lá, posso ter a vista desfocada pela imagem que dela posso querer ter. Acontece tanto isto a tanta gente.
De qualquer forma estou a aparelhar os cavalos para, neste fim de semana, se vier a jeito, se calhar passar pelo lomo de pollo com champiñones al champan, lhe mandar um respeitoso olhar de hola tía. Hei-de receber um empático hola nena, tão simples como um encolher de ombros quando os holofotes se apagam e a vida continua.





10 comentários:

Lizzie disse...

Para os curiosos e/ou saudosistas, existe,ainda,um sítio de copas, entre outros, na Gran Via e chamado, sugestivamente, Museo Chicote.
Não sei como está nos últimos tempos mas tinha decoração documental de fotógrafos, pintores e de outros ofícios, dos anos quentes da Movida.
Não aconcelhável a pessoas religiosas, sobretudo católicas,tementes à ordem e bons costumes recomendados pelo Estado do Vaticano.

Emma Larbos disse...

E eis então a princesa, a da chuva.

Quem seria o Quixote? Onde estariam os moinhos de vento?

Onde estria o Rocinante de sela aparelhada e esperando só a ordem de seguir caminho sabe-se lá para onde?

Haddock disse...

pois, que tempos esquizofrénicos esses da movida. exuberantemente provocatórios, pelo menos...
cada um com a sua "abrilada"(calma, que não somos reaccionários!!) com ou sem continuação dos proverbiais (nossos) brandos costumes.
se cruzardes vosso olhar com o Dela e vos atreverdes ao hola, enviai também cumprimentos nossos, por obséquio.

vénia...

Lizzie disse...

Antes de mais errata Esta até eu sei: conselho, neste caso é com S e não com C.
Esperemos que a emenda não seja pior que o soneto.

Lizzie disse...

Mi Emma:
Quem fosse o Quixote, não me parece que fosse Sancho, não sei. A senhora dos olhos de chuva teve sempre habilidade para os esconder dos romances publicos. Coisa rara naquele país onde se discutem amores em revistas e televisões como se fossem a problemática do preço da batata. Nem o Rei escapa.

Moínhos de vento, pois que os havia por todo o lado com a ventania a soprar em diversas direcções.

O Rocinante está neste momento a dizer para eu me despachar porque, se não estiver pronta a tempo, trota sem mim. Anda com um mau feitio desgraçado.Pôe-se a roncar com os pulmões, dá-lhe tanta fúria que até levanta voo.

Lizzie disse...

Capitão:
de facto achamos que cada um teve abrilada a seu gosto e modo sem grandes interferências das abriladas dos outros, tirando, claro, umas manifestações: uns a dizer que se acabava o mundo, outros aos berros que o mundo ainda agora acabava de começar.Olhando para todos os lados somos de pensar que o mundo, oscilante, estava mais ou menos no meio.

E soubemos que vamos mesmo trocar olhares, não à vista do frango com cogumelos e duvidoso champanhe, mas noutro sítio. Teremos todo o prazer em enviar irís e pupila dos vossos cumprimentos.

Continência

Graça Brites disse...

Lizzie, gosto imenso de palavras, mas também concordo que há diálogos muito mais profundos sem elas. E o que fica de códigos para decifrar é exercício deveras interessante.

Beijinhos e boa semana.

pentelho real disse...

o que aqui sempre se diz, o que aqui sempre se sabe, o que aqui sempre se mostra.

ao vir cá sinto-me insignificante e minúscula.

Lizzie disse...

Cici:
a minha especialidade, como sabes, não é o que se diz por palavras: é exactamente o que elas escondem. E são tantas as linguagens contidas no olhar, ou no ouvir, sem esquecer o tactear ou as formas de sentir.
Mundo muito vasto de encontros ou enganos.


Beijinhos

Lizzie disse...

Alteza:
livrai-vos de vos sentir insignificante e minúscula.
Tais sentimentos não são neste palácio permitidos.
Se uns sabem umas coisas outros saberão outras que os primeiros não sabem. Da troca de saberes se constrói um reino.
Imaginai o tédio em que todos fossem sabedores do mesmo. Seria Reino do Umbigo Exausto.

No entanto, aceitai a minha gratidão, que muito prezo a vossa visita.
Vinde ao jardim apanhar rosas.