terça-feira, 29 de abril de 2008



A casa das lembranças futuras



A casa recebe-me como sempre. A luz até parece que se abre de acolhimento.
É terreno onde se encontram e trocam ideias. Filhos que nascem sem data nem hora marcadas. Ao desvario. Pequenos grãos de lembranças do que se ouviu, viu, ouve e vê , colecciona e junta sem ordem burocrática. E dão obra. Ou melhor contributo para a obra.
Não há criação de coisa alguma em terreno de ilha deserta. Acho eu.





Desde os alvores do séc. XX que as artes se juntam, conversam e emigram dos bastidores dos pensamentos para o palco. Neste caso trata-se de dança, uma das artes performativas, dirão os teóricos com jeito e missão de pôr nomes às coisas. Cá para mim, para nós, os nomes e as discussões ilustres são acessórios.





Interessa-me mais saber que seja, com a música, a mais instintiva e universal das artes. Se quem nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha mãe dele, é coisa de pensamento entretido.

Mas voltando à obra feita dança, cada corpo tem atrás uma mente que, infiltrando-se pelos nervos, músculos, tendões e demais componentes anatómicos de enumeração assaz exaustiva, dá ordens para que fale. Palestra de palavras silenciadas, ou não, que estas também têm emoções e som e ritmo e tempo e espaço para serem mexidas em tradução de movimento.

Nas cabeças que habitam aquela casa, as palavras não são paralíticas.

Y no te daré parte de mis quejas
De mi tristeza, ni de mi tormento
Ni dártela osaré por no perderte

(Gutierre de Cetina, espanhol melancólico lá para as bandas do séc. XVII).

É o que leio à luz filtrada pelo toldo de uma varanda de Madrid, sonata para violoncelo de Fauré dentro, rumor de cidade doida fora.





Foi esta estrofe encontrada num livro velho cheio de tempo que lhe sugeriu o princípio da obra: o amor e o desamor sempre se dançaram, ou não fossem a par da saúde e do dinheiro, os motores e as mortes da existência. Até o comércio astrológico sabe isso.

E entra a memória da vida em acção. Podem até entrar pessoas que passaram por nós uma vez, sabe-se lá onde, e que são musas inocentes e anónimas do processo. São memórias de paradeiro desconhecido e tantas vezes desfocado.




As nossas lembranças convergem e correm em sentido único, afluentes de um rio a desaguar onde ainda não se sabe. Sendo diferentes quase somos iguais nesta pesquisa de nós e dos outros em nós ainda que não tenhamos consciência disso.




A obra é geografia que se vai compondo, nunca chegando à definição definitiva do terreno: será preciso sempre retirar um vale, acrescentar uma planície. Os próprios bailarinos, cada um, darão, com o corpo recheado de alma, uma cor diferente ao mapa.
Chamam-lhe os teóricos interpretação. Têm o poder de dar, cada um a seu modo, a assinatura final que nunca será igual em cada dia. É arte do efémero.





E debicando os deliciosos bolinhos de amêndoa da porteira, a inimitável Doña Pilar, que sem saber tanto performa, vão escorrendo as ideias no encontro.
Para mim sempre sem hora nem compromisso, ou não fosse aquela casa barco sem ancoradouro que o afogue.

Te acuerdas de lo de Kiefer, aquel, qué tiene escrito arriba ich bin...

É uma das virtudes da dança, hoje em Dia Mundial, mais um em trezentos e sessenta e quatro, dar movimento até ao que nasceu para ficar parado, ou, dito de outra forma, dar viagem aos corações mais calados.




10 comentários:

Emma Larbos disse...

Não li ainda o texto (fica para depois) mas adorei a foto do balão e a da varanda florida. Quando eu for velhinha quero ter uma varanda assim.
Até logo.

A. disse...

...


Der horizont wird es uns lehren...

...e o horizonte nos ensinará...
e nos dirá, qual será o caminho mais certo....?...talvez.



...por vezes o futuro é uma viagem demasiado escura, demasiado incerta
...quando a percorremos acompanhados de uma constante falta de luz e de olhos grandes e atentos, aqui, bem ao nosso lado.



...e falo-te da nossa dança, como da vida. uma casa de lembranças cegas...como filhos que não nascem, mas com data e hora marcadas.




...um grande beijinho e um abraço.forte e meu.
*







(...muito obrigada.sempre.)
*

Lizzie disse...

Oh Mi Emma, por quem és, pois que serias muito bem vinda à varanda, onde poderias escutar, com o teu gosto pelas coisas antigas, o salmo da penitência do séc XI que é o que aquele mocinho dentro do balão dança, espécie de metáfora aos tempos modernos.
Por acaso, naquele dia, a varanda estava arrumadinha antes que desse a fúria a Doña Rosa e mandasse a livralhada, papelada e revistada, estacionada no chão, pela borda fora. Normalmente faz as queixas à gata Pepa Imaculada.
E que siestas se dormem ali, no intervalo de estudos e criações...com o solinho brando a bater.
Fica descansada que enquanto as pessoas crescidas conversam do que têm em comum, eu fico calada. Prometo.

Então até logo.

Lizzie disse...

Passarinho Mi Cosita:
não sei se o horizonte ensina, mas o passado ensina de certeza a não cometer os mesmos erros que, normalmente dão os mesmos resultados.
Ontem, lá, ouvi um senhor de olhos microscópicos com poder imenso falar da (alguma) dança em Nova Iorque e como seria interessante copiar para Portugal.
Uma forma de importar mais desgraça e mais falta de respeito por quem trabalha.
Uma forma de não nascerem filhos porque se matam à nascença os pais.
Uma forma de correr uma cortina no horizonte.
Um senhor tão deslumbrado com o saber licenciado que se esquece de olhar para os olhos grandes entre a Casa e o Tejo.
Deve viver num gabinete sem janela. Se calhar nem porta.

Palmas de pé para os que na dança, ou na vida,continuam fazem pliés ao vento. Mesmo frio.

Un, deux, trois...


e um enorme abraço.

pentelho real disse...

fico deslumbrada, sempre, com o encadear dos vossos pensamentos ao longo dos vossos posts. é para mim quase um exercício físico segui-los. mas, quem corre por gosto não cansa.

...e, tal como a senhora de larbos, adorei a fotografia do balão, gostria de ter um assim e picá-lo quando me apetecesse...

e, já agora, gostei também muito da primeira imagem e da da bota (que frase esta mais cacafónica).

um beijo

Lizzie disse...

Alteza:
Também gosto da primeira imagem porque gosto de dar grãozinhos de ideias quando os outros criam obras e abrem as mãos para receber.É uma forma de amor.
A do balão faz-nos um bocadinho de claustrofobia, embora não aja razões para isso porque tem muito ar.
E uma bota perdida é imagem que fica para fazer histórias. Já haveis visto coisa mais dramática e misteriosa? Coisa tão simples e tão rica de significados?

Como sempre agradeço-vos a vossa passagem pelos caminhos tortuosos dos meus pensamentos.

Lizzie disse...

Errata ainda-não-dormi-tudo:haja e não aja.
Cada vez pior, credo.

Haddock disse...

lemos, sem erudição alguma, e algures, uma certa dança de maniqueísmos.
um tal baile de antagónicos...
deixai, lizzie, estamos podres de sono...
temos de vir ler o futuro mais despertos!


vénia...

Lizzie disse...

Capitão:
consideramos que (sobretudo) a partir do romantismo, inclusivé, a dança sempre teve qualquer coisa de maniqueista. Como todas as artes. Hoje em dia tal coisa é em geral muito acentuada por diversas razões. No nosso caso, por estilo interior, pela nossa natureza de ver e sentir, e exterior (somos um bocadinho geração X como já haveis por certo notado)fugimos à tendência.
Isto é o que pensamos, porque quem vê fará a sua leitura e dará, assim o seu contributo.

Haveis levantado uma questão interessantissíma.

Continência

A. disse...

http://ww1.rtp.pt/noticias/index.php?article=342899&headline=98&visual=25&tema=32



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