quinta-feira, 20 de março de 2014




Prosa incompleta acerca da luz alada




Conta-se que quando o Mundo era muitíssimo novo, as pessoas, viviam no ventre da terra, numa espécie de cave e que, coitadas, só espreitavam a luz por um pequeno orifício que dava para o que nunca tinham adivinhado e muito menos visto.

Era uma vida muito triste, cheia de cegueiras e acidentes.


 Ninguém podia dar um passo sem esbarrar com o vizinho, estivesse este acordado ou a dormir e, por isso, as pessoas começavam a brigar sem saber já como nem  porquê.


Um dia, uma andorinha ouviu o alvoroço e teve pena das criaturas ali tão cerradas, feridas, ignorantes e, por certo, abandonadas pelos deuses.

Lançou então uma cana pelo tal orifício.

As pessoas para quem muitas vezes o medo é o irmão da curiosidade,


 começaram a trepar pela dita e assim, chegadas à superfície, se espantaram com riqueza da luz,  a beleza das cores e a imensidão do espaço.


Vendo que andavam muito atarantadas, cheias de calor e sede, sem saber onde dormir num sítio tão vasto que se perdia de vista, as andorinhas resolveram ensinar-lhes a construir potes e casas em barro, engenharia de frescura e resguardo em que eram sábias.

Depois de já acomodadas e ensinadas a obter o sustento por outros animais também eles mestres e generosos nas suas respectivas habilidades, as pessoas começaram a aborrecer-se porque nas horas em que não tinham trabalho mais não faziam que olhar umas para as outras e rotineiramente atazanar e implicar porque ficar plasmado sempre com a mesma visão acorda mais os defeitos que as qualidades de cada um.



Ensinaram então as pessoas a viajar, cantar e a dançar.


Hoje que o Mundo está mais velho, as pessoas em alguns sítios do Novo México, ainda se lembram deste princípio e, pelos meados de Março fazem grandes festas, vestem-se a rigor e bailam a Dança das Andorinhas. Em Setembro têm uns cantos tristes em que dançam a Despedida delas.


Quando os espanhóis e outras cristandades chegaram àquelas terras abertas não acabaram com o divertimento porque se lembraram que, quando Cristo estava  em grandes penas, as andorinhas foram tirando um a um os espinhos que tinha cravados na cabeça.


Diz-se até que uma andorinha voou tão longe com o espinho no bico que foi morrer num alto perto de Madrid, chamado Monte de la Golondrina que é como se chamam as andorinhas em castelhano.

 Para a Cristandade e não só mas também, as andorinhas são  símbolo da fertilidade, da lealdade, da fidelidade, da memória, dos ciclos do Tempo que lhe conservam a vida.
É uso dizer-se que o que não se renova tem a morte assegurada.


 Diz-se que ainda  andam com um manto preto por via do luto pela morte de Cristo;

 que não precisam de gps e outras modernices para encontrar a casa do ano anterior e, por isso nunca ocupam morada que não seja a sua;

que não conhecem o divórcio porque vivem toda a vida com quem casaram e têm viuvez breve porque morto um logo o par se fina sem que maior doença que a tristeza e a solidão lhe seja  achada.



Oscar Wilde, que bem conhecia as cavernas mais recônditas dos humanos, escreveu uma das histórias mais bonitas e redentoras e comoventes, acho eu, sobre o afecto. Entre um príncipe e uma andorinha.



Como em Inglaterra nem sempre houve boletim metereologico à disposição, as andorinhas sempre fizeram o favor de anunciar os humores do tempo no dia seguinte: se voam baixo é porque vai chover, se andam pelo alto é porque o sol se vai dignar a brilhar naquelas terras emolduradas a brumas.


 Há quem ainda hoje ache que acertam mais que as visões de satélite forradas de ciência .

E também fazem o favor de carregar com a alma dos humanos para o céu já que a maior parte delas é desprovida de asas ou de outro instrumento, nem que seja rudimentar, de voo.

Por tudo isto e mais alguma coisa que agora neste momento não me ocorre ou faria mais peso na prosa, como o facto de comerem insectos carregados de maleitas, é de muito mau instinto e agoiro de desgraças várias, em todo o lado, matar andorinhas ou destruir-lhes os ninhos.

Porque em todo o lado é acto de malvadez matar o renascimento (ou ressurreição consoante o léxico de cada um).

Porque em todo o lado é dor maior viver como se a luz, distraída ou cansada, se esquecesse de existir.




(Por estas coisas de cavernas e luzes, de tempos que rolam e outros que ficam parados, esta prosa vai dedicada,soube agora neste instante, às cinco mulheres que em Espanha (como poderia ser noutro qualquer país), nas últimas quarenta e oito horas, morreram às mãos dos seus companheiros sem que a elas,  e a outras, não tenha ainda  chegado uma andorinha com a força suficiente para lhes arrancar, pelo menos, os espinhos, às vezes tão subtis que têm o descaramento de não serem vistos.)

2 comentários:

bettips disse...

Ah... sobre as andorinhas, as lendas de quem as preza! A chegada, o trabalho lento de reconstruir os ninhos, os gorgeios (que só há poucos anos consegui perceber), as "aspas" das suas asas rápidas, os horários das estações e dos dias!
A harmonia.
***
Não sendo jornalista dos casos humanos, tão maltratados pelos agentes de serviço, sinto um terror imenso por esses crimes de sangue. A multiplicação deles, a distorção demencial de quem mata assim, a companheira, a amada.
Há conhecimento de muitos casos em Espanha: pergunto-me se haverá algo de "mouro", ciúme e desejado "harém", nessas terras da velha Ibéria.
***
Tenho tido a oportunidade de ver e fotografar, durante horas e dias, esses voos e esses trabalhos delas. Fascinantes na sua precisão e determinação.
***
O buraco escuro das mentes humanas que tudo inventam para entreter, iludir, humilhar e matar: mulheres que nunca mais voarão.
Bjinho

Lizzie disse...

Bettips,

pois, vale mais ser andorinha de lenda viva que português, ou outro afim, com a História a caminho de esqueleto, ou melhor, de presente sugado até à cave da existência.

A propósito deixo-te lá em cima a imagem das ditas que aproveitando um fio que se soltou me vigiam todos os dias neste sítio onde agora te escrevo. Se calhar até leram o que escrevi, atrevidas como são.

Também não sou jornalista mas mais ouço soar acerca da numérica da finança, da intriga partidária género tricot em sala exclusiva com porta fechada, que do flagelo da violência contra as mulheres.

Parece até que um flagelo retroactivo exclui os outros.

Aqui, na tão evoluída e civilizada Europa e noutras terras.

Custa-me perceber como é que aqueles homens que chegam aos magotes a Espanha e a Itália, vindos de África, com risco de vida para além da fome e da sede, por conta duma ilusão, ainda têm disponibilidade física e mental para virem violando, repetidamente, as mulheres pelo caminho. Que depois desprezam por terem sido violadas.

Para além da tão defendida e politicamente correcta "questão cultural", será também a problemática da localização do cérebro?

A continuar assim, com estes flagelos e a este ritmo, ainda morremos, somos congeladas com a mais alta tecnologia, e acordamos daqui a duzentos anos no Paleolítico Inferior. ou como embrião no útero de Eva. Credo!

Bjs