terça-feira, 18 de fevereiro de 2014




O enredo asfixiado do Purcell

Seria natural que me ladrasse. Ou rosnasse. Tudo menos o olhar azul. Fixo. Corpo indeciso. Molhado. Encharcado. A tremer. Apanhado nas ruínas duma casa escura. Com a chuva e uns arbustos à solta como tecto. 








Credo, tem chuvido tanto que parece que os rios emigraram para o céu. E andam entornados. Como quase tudo.





Mas o silêncio ardia-lhe no cansaço. E o cansaço prende a voz. Quando não chega mesmo à dor de a arrepender. O medo é uma dor maior que grande.

Baixei-me para lhe dar a ilusão que sou do tamanho dele. É pequeno. Rafeiro igual a tantos outros que andam à deriva por aí.

Deu uns passos, mais indiferente ao destino que aventureiro.



 Às vezes estas decisões nos humanos confundem-se e mascaram-se e vestem-se de heroísmo até para os próprios. Nos cães não sei. Nunca conheci nem ouvi falar de algum que se dedicasse aos labirintos da personalidade. A intuição, acho eu e em geral, torna-os imediatos. Dão o que acham que devem dar a quem escolhem. E pronto.


Às vezes enganam-se. Porque esperam sempre. E Nietzshe,o filósofo maldito nos tempos de esperança postiça que correm, com o seu dito que a realidade é insuportável soa-lhes a longe.


Tinha as unhas demasiado gastas. E os dedos inflamados. Vermelhos. Vinha de muito longe. Um peregrino de santo ausente ou Deus volátil. Sei lá...

E sem dentes incisivos. E quase totalmente surdo.

Só o olhar não tem tempo embora lhe falte a raiva activa da juventude.

Vestimos-nos de biógrafos. De onde teria vindo? Que história seria a sua? Mas quase tudo nele o transformava num protagonista de um enredo asfixiado.

Agora, passados todos estes dias é mais fácil. Não foi abandonado por já falta de préstimo por caçadores, como é hábito : não liga aos pombos que por aqui são visita diária.


(Perguntaram-me quem bota o milho que aparece no pátio. Eu disse que não sabia. Que talvez tivesse caído do céu. Talvez S. Francisco ande pelo cinema celeste a comer pipocas. Responderam-me que assim sendo um dia destes chove Coca-Cola. Já agora...será clássica, light ou zero? Aqui onde me lêem sou muito especulativa.)


E o gato mais novo brincou-lhe com a orelha e ele teve a paciência de quem conhece as idades contraditórias.


 Preferiu dormir até que o gato, desprezado e com a vivacidade espanhola que lhe corre nas veias, foi tentar apanhar a mão de um político no ecrã da televisão. O político não adormeceu. Que pena!

É caseiro. Fica junto à lareira que fica perto dos pés de quem trabalha, de quem lê, de quem conversa. E olha com a calma dos sábios. Dos amigos.

Anda sempre a passo. Sobretudo do meu. Tem medo que eu fuja. Tem-me sempre debaixo de olho. Não vá o Diabo tecê-las.


Nem sequer corre ou salta muito quando o solto na relva vadia que por aqui cresce. A veterinária disse que tem muitas artroses. Ou artrite. Já não me lembro. E o coração já anda baralhado nos ritmos e compassos.

Mas de cabeça está lúcido. por enquanto.

 Afasta-se da mulher que está sempre na esquina da Sociedade Recreativa e Cultural - que vende tabaco, minis e tem A Bola, o Record, o Correio da Manhã, a Tv 7 Dias e a Mariana para consulta grátis- como repórter desde mundo pequeno. Pequenino. Repara em mim e no bicho pela trela.


 É que já há uns dias que a ambulância do INEM não lhe suga toda a atenção. E as caravanas da campanha eleitoral ainda não a distraem. Desabafa então com o poste da electricidade em frente, ou será do telefone? ambos teatrais  ai com tanta criança com fome...

neste vício bípede, pegadiço e de alta filosofia política do dividir em vez de multiplicar.


Mas voltando, o nariz não se entusiasma com a gastronomia experimental que por aqui, às vezes, se pratica. Não. Agita a cauda mais alto com a fragrância das batatas com couve . Com esparguete com frango. Com a jardineira.

Concluímos, ao fim de todos estes sinais e mais outros que são muitos, que foi companhia de uma mulher. Madrugadora. Com jeito de jardim. A entreter as horas na lida da casa.

Pensamos que morreu ou foi para um lar.


E que o bicho, como outros, teve o destino da casa e da memória.


 Conjuntamente com a cama de ferro, os bancos baixos junto ao fogo, o quadro do Menino da Lágrima ou da pudenda e melancólica rapariga à beira rio desfolhando mal-me-queres, os sofás de napa, os santinhos da devoção, o retrato de cabeça junta do seu casamento,


o do filho enquanto recruta de infantaria-amor-de-mãe-Guiné-1973, o da filha virgem mas pronta a casar sem dúvida parental desse estado, o da neta em traje académico, o do neto com o equipamento da escola de futebol,


os potes de barro, as canecas de esmalte com flores azuis, ...



tudo o que não condiz com o apartamento na cidade mais próxima nem consta dos artigos de folheto do supermercado.



É o costume.


No seu estado auditivo não vale a pena tentar o nome de Bóbi, Benfica, sem esquecer o Eusébio do pastor, Sporting e outros.

Para os amigos é o Purcell. Porque lhe ouvi o Lamento de Dido nos olhos: Remember me... remember me....

E o que primeiro se ouve sem procura, talvez seja aquele que se ouvirá sempre.

Mesmo quando o som deixar de se ver. E de existir.

 

2 comentários:

bettips disse...

Ah.. devia calcular que ias ficar com o dos olhos azúis para te lembrar abandonos. Tão bonito (e tanta criança azul ou amarela e tanto mundo... e que importa? o sentimento enleia-se no que se sente e toca, num repente) e que futuro melhor o dele (de cuidados continuados que os biltres anunciam e nem para pessoas tantas, quanto mais) assim, sem correr aos pombos e com medo que desapareças, entre os bocados de madeira esculpidos, as pedras velhas e as belas manias.
Posta a adivinhar, acho que acertaste. Em tudo. Fico com os (meus)olhos húmidos, no meu casulo de Inverno. Sentindo os solitários que adejam à minha volta e que companhia me fazem, muito mais que as notícias de bafio e nazismo. Porque assim me alegro com um rafeiro-com-música recuperado? Sei lá? Nunca gostei da parábola "do filho pródigo", gosto mais da multiplicação do pão e dos peixes ou do camelo que tenta passar pelo fundo de uma agulha - e o reino é um bocado de azul, música e a paciência de viver partilhando.
Bjinho Lizzie

Lizzie disse...

Bettips,

na Idade Média europeia, e noutras civilizações com menos História cortada às fatias, os cães eram associados às mulheres (os leões aos homens) e, por isso eram representados aos pés das damas. Mesmo nos túmulos.

Tivesse eu, agora, toucado, vestido de cintura alta, rosto alvíssimo, oval e as mãos em repouso e tínhamos o quadro perfeito:)

Agora, mais compostinho de carnes, está ainda mais bonito. Sempre com medo que eu fuja.

Há uma lenda, muito comprida, do tempo em que Deus ainda andava pela terra a ver in loco e sem intermediários a sua obra.

De tudo o criado, havia um ser tão estúpido que até as pulgas, vê lá tu, tinham motivos justificados para se rirem dele: o Homem.

Por vários desenvolvimentos, Deus ordenou (ou condenou) ao cão que acompanhasse, protegesse e ensinasse sempre a parva criatura.

Quanto a nomes, já tive um gato que respondia pelo de Nureyev: era destravado, temperamental, partia-se todo mas saltava sempre. Com elegância e mestria.

Em relação a Cuidados Continuados, feliz ou infelizmente e pela minha mãe, há quase um ano que os visito.

Numa sociedade que respeitasse o envelhecimento, a memória, a dignidade, todos os lares em geral (abaixo dos 1000 euros mensais cheios de acreditações europeias e outras máscaras) para a "terceira idade", deviam funcionar como os que conheço em vez de serem sucatas de inúteis ou ante câmaras do inevitável.

O serem obrigatoriamente temporários é tão cruel como apresentar um pão inteiro a um esfomeado e dar-lhe apenas uma fatia.

Gostaria que os meus impostos contribuíssem para pagar uma refeição inteira sobretudo a quem já não tem força sequer para dizer, quanto mais gritar, que está vivo.

Bjs