sexta-feira, 12 de outubro de 2012


Volta ao mundo na cor de uma romã.

Que me desculpem as obedientes entidades oficiais mas em vez de tentar perceber o que é a "reestruturação do quadro funcional da conjuntura do déficit orgãnico" de que aquela jovem academicamente bem formada fala para se ouvir, comecei a pensar na romã não imune às sujidades do mundo, como se vê,  que comprei ontem, nascia o sol no fundo ou no princípio, conforme o ponto de vista, da estrada em banca cheia de fruta caseira, rebelde e nada jurídica, com pouca vontade de legislatura.


Como ainda sou do tempo em que o mundo tinha os pensamentos soltos e não sujeitos a esquadrias, lembrei-me de várias histórias recheadas de heresias e outras inconveniências.

E apareceu-me na memória a imagem de uma princesa envolta em manto áspero de sarapinheira,

 assim uma pessoa, ou perto disso, transformada em trouxa informe, no meio da densa e fria floresta, lá para os lados de Inglaterra.


A coitada tinha sido levada por ordem dos pais, numa carroça daquelas que rangem as rodas nos solavancos da lama. Suponho eu que rangia, embora tal adição de dramatismo  sonoro seja irrelevante para a prosa.


Não tinha préstimo porque era careca, vesga, de nariz raso, boca de goraz fora de água debruada a inoportuno bigode, braços que não chegavam sequer à cintura, pernas tão em arco que lhe imaginavam os geómetras circunferência quase perfeita, pés chatos de gigante, tudo isto forrado por uma pele escura como nunca se tinha visto naquelas paragens de nevoeiro e, fiquemo-nos por aqui para não lhe devassar em demasiado a intimidade. Tudo tem os seus limites.


Estava a dita ex princesa em lamentos, cheia de fome, frio, sede e desventura quando passou um homem que andava solitário por florestas e clareiras porque dizia tais verdades sobre o exterior e o interior das gentes que todos o escorraçavam fingindo não entender, ou não entendendo de todo, aquela língua estranha, vinda dos confins da verdade.


O homem destapou aquele o vulto informe e como da fealdade já tinha sobras na sabedoria, não sentiu espanto nem grito nem paralisia ou temor.

Olhou em volta e serviu-lhe o primeiro fruto que encontrou: uma romã vermelha e suculenta com uma coroa no cimo de si.

 Depois aconchegou a ex princesa junto ao seu corpo velando-lhe o sono saciado.

As lendas são como os filmes em que aparece a legenda alguns anos mais tarde que é uma forma de reduzir o tempo e passar por cima de pormenores mais ou menos irrelevantes.

Por isso, a princesa, coroada com a coroa da romã, agora já sorri à vista de tantos dos seus filhos, quantos cada semente daquele fruto que lhe foi oferecido em tempos de abandono.

Teve filhos e filhas, todos eles sábios, guerreiros e sem vontade emprestada, bonitos  e afoitos com as suas cabeleiras vermelhas ao vento e muito verde no olhar.



Quando cresceram, foram à cidade, derrubaram o desprezo dos avós e fundaram um clã próspero de entre todos os da Escócia. Desenharam uma romã no seu escudo de batalha, no brasão das suas casas, tingiram de vermelho a maior parte dos quadrados dos seus kilts.

Também há quem diga que Mary Stuart comeu uma romã  mesmo antes de se cumprir a ordem da sua prima Elizabeth I, ou seja, de ficar para a História como rainha sem cabeça, ou sem corpo, dependendo do critério histórico de cada um.


Senhores, não fora eu tão extensa nestas prosas e ainda vos contaria mais em pormenor que judeus cheios de memória guardam sempre em suas casas a primeira romã da estação até que seja substituída por outra inicial no próximo equinócio outonal.

Não sei se consta do Ben-hur porque nunca vi tal epopeia do princípio ao fim apesar de ter chegado a esta idade, mas dizem que quando era este povo escravo,


pela calada na noite e às escondidas, alguns convertidos, simpatizantes da causa ou  simplesmente de alma condoída, lhes forneciam romãs, fruto que além de lhes restaurar a força e a vida, lhes fazia multiplicar as sementes porque, como toda a gente sabe, povo que não procria, mais cedo ou mais tarde acaba por morrer de História acabada em regime de ponto final parágrafo.

Talvez por tal restauro, disseram-me há muitos anos, algumas pessoas, entre as quais uma minha familiar, com medo ainda tatuado nas palavras e nos olhos,


que muitos judeus levavam para a fronteira da morte hitleriana e estalinesca, pregadas na roupa mais junto ao corpo, uma coroa de romã, sabe-se lá com que prognósticos de esperança, orgulho ou afirmação.



Também há muitos anos, vi um ritual mais antigo que o tempo, lá para as terras da América do Norte, em gente que, como já disse antanho, põe as mulheres como criadoras e geradoras da Terra, Mãe de tudo quanto existe:

comem os mancebos, curvados as sementes de romã depositadas na taça que é a concha da mão das suas amadas ao som de um canto amoroso. Juntam-se assim as almas antes da união geradora dos corpos, enquanto o fogo lhes tinge os olhos de brilho rúbi.

E, também um dia, já me estava a esquecer, alguém olhou lá do cimo da montanha, para uma cidade espanhola e de tão maravilhado pela beleza, pela doçura feminina, declarou que parecia uma romã.
Ainda hoje tal monumento terreno é conhecido por Granada, que é como se diz romã em castelhano, para quem não tenha obrigação de ter a tradução pronta.


 Conclui a menina academicamente bem falante o que não ouvi e concluo eu Senhores, que ando lírica , esperando que mesmo daqui a mil anos as romãs ainda guardem as sementes de todos os sonhos e fantasias.

Avessas a todas as prisões de todas as legislaturas que não engrandeçam ou matem o voo dos sentidos.


Sem comentários: