quinta-feira, 13 de setembro de 2012



A insensatez do busto portátil de Beethoven

Mais vale o curriculum estável do Mar.


Sem cátedra. Com consulta às ondas, com marés sugeridas pela arte da Lua sob,
 ou sobre, a coragem do Sol.


A paisagem não tem fronteiras ou dogmas.

Prefiro ser escrava da Beleza do que dos que não têm História ou dos que a compram ou alugam a soldo de uma sabedoria masturbada de tão obviamente solitária no sentido da cegueira escolhida. Ou talvez não escolhida. Talvez mais obediente.
Servil. A curvatura do pensamento a que as palavras fechadas obedecem.



Porque, Senhores, com tanto pó que tenho nos pés, muito mais do que consta do bilhete de identidade, nunca pensei ver o que vi, espelho ou caricatura de tudo quanto vejo quando estou longe da filosofia do Mar. Mar assim dignificado de maiúscula.

Chega ao restaurante uma feminina criatura, trinta e tal anos, trajada de forma imprópria e pateticamente ostensiva para um cenário de duna e sol das duas da tarde.


Vem acompanhada por outra, a imitar a primeira mas em vesão contrafeita da feira de Carcavelos, duas peças cinco euros, ai que o cigano está maluco, venham cá donas que está na moda.  


Vem de face contraída, dois passos atrás da primeira. Será criada, secretária ou quiçá versão pósmoderna de afilhada.
Talvez demasiado honesta para ser puta mas pouco esperta para chegar a directora geral de qualquer departamento inútil sustentado por dízimas obrigatórias.



E sentam-se. Chega o empregado. Diz a madrinha, chamemos-lhe assim, de olhos fixos no telemóvel,  para a afilhada, faz de conta, pedir uma água com gaz e a afilhada pede ao rapaz uma água com gaz e o rapaz diz que só tem Castelo e a afilhada transmite à Madrinha que só há Castelo e a madrinha  diz à afilhada que  pode ser e a afilhada diz ao rapaz que está bem e assim por diante até chegar à pouca manteiga da tosta mista.

Senhores, já dizia Martha Graham que o movimento, a expressão nunca mentem. Torna-se dispensável o uso das palavras.

Por isso espantam-se ali ingleses, alemães, espanhóis e outros de linguajar de que não localizo geografia.

E envergonho-me eu, talvez a única que percebe e tem no sangue a língua, agora em elevado estado de decomposição, de Camões, dos marinheiros,

 das glórias, dos rastejos, dos fados, das gaiolas, do pão nosso de cada dia nos dai hoje, das tristezas dos jogadores de futebol, da lobotomia, da atençãozinha, do isso também eu fazia, do desculpe lá qualquer coisinha,do  faltei porque me morreu a décima avó - ninguém esperava estava tão bem coitadinha, dos Relvados, do sofrimento com o Paraíso à vista,



assim em forma de euro milhões com estadia na eternidade à direita de Deus ou do Diabo, tanto faz que com o mal dos outros posso eu bem e quinta feira é dia de cozido, ai o que eu gosto de farinheira e dos pregos da Portugália que o bife na frigideira está caro, feijoada eleitoral com boleia na camioneta, amor de mãe, feliz ano novo e muitas propriedades com  a energética, antioxidante sopa de cavalo cansado.
 E etc.

E Senhores, nem faltou um pequeno momento de cultura geral.


Alma alimentada no índice do Reader´s Digest, suponho.
Soava, naquela mania de encharcar tudo de música mesmo em lugar impróprio como se ali não bastassem os acordes da rebentação e do vento no caniçal,

o Air de Bach e logo a madrinha, numa confissão pessoal condescendente, declarou com voz de lei que gostava muito daquela composição do Beethoven e do Beethoven todo que, já agora, é aquele maluco que era surdo, se multiplica em bustos com cabelo desgrenhado, mau génio, sobrolho franzido, enfim, artista que nunca leu o Financial Times nem se submeteu a ´controle de qualidade segundo as directivas da União Europeia. Mas muito bom. Apesar de tudo.


E eu fico a pensar, Senhores, que Voltaire, que usava cabeleira postiça aos caracóis, pó de talco e outras toxicidades por maquilhagem, sapatos bicudos de fivela, pulga no caniche,

dizia que a vida das pessoas girava em torno dos governos e da religião mas que alguém ou tempo, ensinou a madrinha a matar as boas metáforas de uma e de outra coisa

e sobretudo, pois, sobretudo,

que os espelhos tanto reflectem quem nele se vê como todo o cenário atrás, o que sustenta a figura.
Uma espécie de ponto de fuga no desenho tragédia.

De mãos nos bolsos, Senhores, à beira de sempre,



 vou à mina da memória e fico à espera da nova taxa aplicada ao simples acto de existir, não vão os velhos, os músicos, os bailarinos,

 os poetas,

os plásticos,

 os cineastas... os cientistas, os investigadores ...e outros que tentam interpretar o caos, teimosos como são, esquecer-se de morrer.


2 comentários:

augusto, um entre mil disse...

Senhora,


não vou deitar búzios
a prever futuros,
mas hoje,
a vós,
vou erguer a minha taça de tinto.

Lizzie disse...

Senhor,
ao ler este vossa lembrança, já não sendo o primeiro 21 de Setembro, que me ofereceis esta ternura, fico com mais mar nos olhos. Quase quase a transbordar para além das dunas. Aqui e na vossa casa.

Vou guardar o vosso cavaleiro no meu barco. Não lhe chegará salitre. Nem outra inconveniência.

Podeis também guardar o búzio que está nesta montra. Acompanha-me há muitos anos. Quando estou triste, fechada, com falta de lonjura, olho para ele, pego-lhe.

Agora vou-me fazer à viagem.Parei para abastecer a montada, e para eu própria botar qualquer coisa no alforge. Ainda me esperam umas quatro horas para chegar ao destino.

Esta viagem, Senhor é quase uma metáfora em que esta vossa atenção também tem o seu papel. Acreditai que sim. Um reconfortante papel.

Espero que para o ano nos troquemos oferendas. Destas que são resumos.

Os meus agradecidos respeitos.