quinta-feira, 12 de julho de 2012



Da estranha, teimosa e eterna Arte de caminhar sobre os sonhos.

Não se sabe se existiu ou se não passa de um resumo daqueles que se inventam para dar, pelo menos, uma réstia de sentido ao absurdo das coisas.

De qualquer forma, é indiferente, como decerto concordareis, até pelo rasto que deixou quer antes quer depois de um Deus distraído ou cansado ou alguém mais terreno lhe ter dado existência.
Consta que nasceu feio, desengonçado, vesgo e com fraco entendimento sobre a verdade dos outros.


Velázquez, que era criatura de subsolo triste e soturno muito para além das glórias oficiais da corte, assim o pintou num quadro sempre retocado e de pincelada pouco domesticada, consoante as flutuações da idade e da alma.
 Ficou tal obra íntima e recatada conhecida pelo Bobo de la Cabacilla.

(Há quem diga que este também pode ser o Bobo de Coria, ali para os lados de Cáceres, que teve a inteligência subornada passada e eterna de mandar construir com pompa uma ponte em sítio onde nunca houve nem haveria de haver rio ou riacho algum.)

Conta-se que a pobre criatura desde cedo se apaixonou por uma menina. Se feia ou bonita, não reza o pormenor da história.



E o Bobo todo o dia a seguia nos seus trajectos,

imaginando casamento com mútua e recíproca paixão, na saúde e na doença, na riqueza e na miséria, muito ainda para além da separação provocada pela morte,



que seria simultânea ou com pouca distância porque, mais que muitos outros riscos e acidentes, também a mágoa, o desgosto e a solidão se vestem de assassinos sem remorso ou outra dor de culpa.



E desse seu sonho saíam-lhe as mais belas canções e as mais patéticas danças,


artes espalhadas pelas vielas, pelos palácios, ria e chorava a populaça,


 distraía-se e comovia-se a Corte, chamando-o e espantando-se com o descaro da sua inocência.


Mesmo com a menina já crescida, casada com outro e velha sem outro préstimo que não fosse a recordação de seduções e desprezos antigos,



 o Bobo  continuou as suas laudas e danças até que o corpo tombou numa mortalha de paixão exausta.

O que o Bobo nunca soube e presume-se que nunca imaginou, é que depois vieram muitos reis e outros senhores de mais trono e coração duro mas sem coroa, de mais fanfarra que ária encostada ao silêncio,



que tudo fizeram para o varrer dos sonhos dos outros, que lhe tentaram pisar todos os movimentos, cortar todas as palavras, deitar ao vento todas as músicas.




Grande foi deles o engano porque toda a sua Arte continua em Espanha onde ainda hoje vive, entre muitas outras formas que vos entediariam de tanta prosa, em vasto lote de provérbios como aquele que diz que al bobo se le aparece la Madre de Dios, por exemplo.

 Viajou muitíssimo para as terras de Inglaterra onde ainda anda por noites de lareira, palcos selectos de voz e dança mais outros de rua e farto ruído,

para a Alemanha


e para mais tantos sítios que o mundo inteiro se calhar não chega porque até saltou o mar e foi ter com Astor Piazzolla, por exemplo.
Quem sabe se, apesar de tudo, um dia mesmo depois de nós, não olharemos para o céu e lá longe onde só chega o que permanece, não se nos deparará nem que seja numa noite de preguiça, um baile de estrelas ao som dos guizos do universo.




4 comentários:

augusto, um entre mil disse...

maravilhado talvez seja exagero,mas, Senhora, sempre vos digo que mais uma vez me encanta a forma como ilustrais as vossas palavras.

voltarei...

e, nehuma resposta, antiga ou não, me deveis: já muito me dais sempre que por aqui passo.

Lizzie disse...

Senhor,

como sempre fico maravilhada e agradecida pela elegãncia da vossa passagem por aqui.

Também eu voltarei até para mudar a decoração das palavras

(ai Senhor, que difícil é escolher os móveis próprios na arrecadação pois que tantos me parecem adequados ao som de outras tantas músicas por aqui ausentes)

que agora os cavalos já aparelhados resfolegam de impaciência pela minha demora, afoitos em galope como são.


Voltarei para a semana, de alforge mais cheio de bobos e outros sérios delírios. Assim espero, se não fôr assaltada pelas vielas ou não tropeçar numa ponte sem rio.

E devo respostas, talvez não a vós, mas devo a damas que prezo mas sabeis, e sabem, que não costumo ser caloteira na prosa.

Mas estes tempos, Senhor, estes tempos...


Aceitai pois a minha respeitosa vénia.

bettips disse...

Pois atentai que vos esperamos, fieis que somos às histórias, reais mas encantadas. Em que misturais saias e sais de lágrimas. Ilustre prosa, amor ardentemente ilustrado, da feieza dos bobos e corcundas que nos cercam, à beleza dos anjos fugidos do pó, um arco que (se)te move.
Bjinho da bettips

Lizzie disse...

Pois, Bettips, dava pano para mangas

são muito ricas estas personagens que fogem à normal simetria das gentes, tanto que ao corcunda que ousasse apaixonar-se por donzela limpa e sem fealdade lhe haveriam de nascer duas boças porque assim, por ordem de bruxedo,se castiga quem nascido do Diabo, por lascívia, se tenta meter com Deus.

Ainda te hei-de contar como um cego e um corcunda (que também constam de quadros e letras), errantes em direcção aos confins do mundo, se curaram um ao outro em história também ela cheia de moral e lição.

Cá para mim, os corcundas, são pessoas que já nasceram vergadas pelo peso de todas as fealdades do mundo sobre a cabeça. Não há coluna vertebral que aguente a falta de sonho e de ilusão. Deve ser triste nascer já tão crescido.

Já os bobos sempre funcionaram como consciência dos poderes (ainda hoje ao que parece), naó fossem eles distrair-se do mundo fora de portas.

Elizabeth, the first, tinha uma colecção deles, todos artistas de várias artes (e que difícil é dançar como um bobo) e um deles, de tantos elogios e mesuras aos actos reais, acabou de cabeça solta no cadafalso que a Rainha não estava para aqueles preparos de calculista gentileza.

Ai Bettips que isto está a pedir lareira e pão amassado, digo eu que sou mulher de Outono/Inverno.

E de preferência de telejornal apagado que o mundo é demasiado grande para ficar espremido e apertado dentro dos limites de uma caixa.

Beijinhos