quarta-feira, 7 de março de 2012




Do livro errante cujo o autor
se esqueceu de sonhar o fim



Quando o conheci, andava com os Nocturnos de Chopin nos olhos embevecidos pelo toque das mãos pianistas da mãe nos seus cabelos desalinhados e frágeis.

A mãe de que tinha rejeitado a morte transformando-a em partida para parte incerta mas de retorno ou encontro garantido na forma de qualquer dia.


Tudo nele era qualquer dia, amanhã adiado, hoje sem hora certa. Mesmo nos concertos na Gulbenkian, talvez só aparecesse depois do intervalo, com gestos largos, excessivos, exuberantes se tivesse viajado pelas entranhas imaginadas de Oscar Wilde ou soturno, trágico se se tivesse perdido pelas sombras de Rembrandt ou nos labirintos tortuosos de Dostoievski.


Não havia frase ou pose em que não aludisse a propósito ou não e como rajada, a uma dúzia de escritores e pintores. Nem escapavam os deuses egípsios, sumérios que os gregos, esses, coitados, pelo uso já tinham o nome esvaziado na grandeza da mitologia.



Soou a heresia quando perguntei a quem me apresentou, se tal actor ambulante pelo comum dos dias, era o catálogo vivo da Livraria Bertrand. A idade pré maior tem destas maldades mais viradas à consequência que à causa.

Hoje percebo que se justificava sempre por empréstimo das almas imensas. Encostado à parede de Deus e em frente à porta entreaberta do Diabo.



E que reciclava a paz impossível em cada promessa inventada de amor e glória. Num palco planetário e carente. Com público elevado ao infinito povoado por deuses submersos.

Sentia-se, quando apaixonado, como Gilgamesh em luta de amor e morte com Enkidu.


Assim explicou os seus delírios, repetindo a história vezes sem conta quando, depois de ter escrito pelo punho uma carta de amor de cento e muitas páginas, a um bailarino altivo e mulherengo que seguiu com os olhos desesperados de um coração mastigado pela dor e impotente por todos os espectáculos em casa própria e em digressões país fora e além das portas.


Tratando-se a missiva de um fundamentado tratado de estética, muito espantou o referido bailarino que expressou publicamente a profunda admiração elogiosa e espantada da forma eloquente que lhe era própria: foda-se !!

Mais tarde mas não muito, porque só o via de vez em quando durante mais ou menos um ano, haveria de sucumbir ao bambolear despenteado e rude de um marinheiro português, que aspergia sal pelos bares ainda tímidos do Bairro Alto, ou não fossem os finais dos anos setenta ainda envergonhados pelo que sempre a moral dos extremos escondeu.



Nesse remoinho de amor embarcadiço representava Genet. Se bem me lembro.

Antes do que se seguirá, deixem-me dizer-vos, que após a morte da mãe, tinha sido proscrito pela família de vocação taurina com a correspondente obediência bovina, pouco dada a aceitar no seu seio ovelhas literatas e muito menos poéticas. Digamos assim e sem ofensa para os brandos costumes de vida arrumada a contento da exposição das pratas na cristaleira da pátria.



Haveria de ser subchefe de protocolo num hotel. Haveria de ser despedido por faltar consecutivamente aos compromissos de horários. Haveria de ser empregado de mesa num restaurante a brincar à vanguarda. Haveria de ser empregado competente numa galeria de arte, não fosse ter chamado pacóvio a um cliente, daqueles que perguntam qual a obra que fica melhor por cima do sofá da sala ou na recepção do escritório. Ou que dizem que meia dúzia de riscos também eles fariam se estivessem para isso.

Escreveu, então, um artigo para uma revista sobre essa coisa do gosto postiço.

Lembro-me que então falou em Harold Pinter.
E se há coisa que me ficou foi a forma como, ao dizer tal nome, quase castigava a língua na direcção do palato e sacrificava o diafragma na expiração do H no Harold e o Pinter soava a Pinta ou mesmo a Pintá. Outra das suas características era imitar até à caricatura a pronúncia de Her Magesty , metamoforseando-se em Lord na poltrona, mesmo quando sentado nas cadeiras da defunta pastelaria Roma.


No entretanto, publicou sem sucesso um livro numa editora daquelas que soam a garantia. Um romance poético.

 Também desenhou as ilustrações com um traço leve, requintado. Uma espécie de voo, para não dizer bailado, da tinta da china.

A minha memória já não chega para saber se foi antes de me ter ido embora ou em visita de férias, que soube que tinha ficado, espancado, às portas da morte, numa viela qualquer, já gelado, numa noite de inverno. Na Madragoa.


E que tinha sido internado por aparecer com um roupão aberto, todo nu, numa recepção em embaixada situada em Londres, a declamar poesia de Sophia, a impor desgarrada entre Yeats e Eugénio de Andrade.



Disse-me quem assistiu, tratar-se da encarnação num corpo peludo, cadavérico e massacrado de Lady Charlotte Rampling com um ataque de nervos, considerada por ele como o arquétipo máximo em Beleza feminina

Nunca mais soube nada dele.

Este fim de semana, uma performer húngara, que já viveu em Portugal e agora vive em Londres disse-me estar a preparar um espectáculo, com estreia em Berlim, sobre um parágrafo com linhas sublinhadas, que descobriu num livro estragado, autografado e com dedicatória, escrito em português, que comprou num alfarrabista em Budapeste.


Ao ver a capa, senti uma bofetada na memória e as distâncias do mundo pareceram-me uma teia sem norte nem coincidência.


Talvez um dia alguém escreva sobre o rasto do livro. Sobre uma mão suspensa num teclado.

Talvez um bailarino com olhos da cor do mar o dance.


Qualquer dia. Ao som da nota mais perdida de Chopin.


9 comentários:

Lizzie disse...

Perdoem-me não dizer o nome do autor mas sem saber, agora, se é vivo ou morto, inteiro ou partido, nu ou vestido de alguém, livre ou encarcerado, acho que a divulgação seria abusiva ou mesmo alarve.

É possível que alguém que aqui venha o tivesse conhecido por aí, sobretudo quem já tinha idade autorizada para sair pela noite. Não era o meu caso: era o que faltava...
Fiquei-me pelas tardes a roçar o crepuscúlo e a esconder o livro (que tenho em casa da minha mãe) no meio dos do último ano do liceu não fosse alguém ler algumas passagens. Para além da dedicatória.


Como por mail já me tem sido perguntado como ampliar as imagens, pois basta clicar nas ditas.

Amanhã visitarei os meus mais habituais convivas.

Hoje vou de correria para o sono antes que me imagine eu própria, sei lá, Madre Teresa de Calcutá como administradora executiva da General Motors, por exemplo...:)

(Ai que parva...)

augusto, um entre mil disse...

aahhh!!!!

vou jantar. venho cá logo...

augusto, um entre mil disse...

é a rejeição da morte de entes queridos e a sua transformação em partida para algures facto que já observei algumas vezes. embora por vezes tenha a sensação de que a pessoa sabe que está a defender-se, ficcionando...

foi a história duma vida triste que aqui encontrei. embora o personagem em questão, parece-me, tenha tido algumas passagens na sua vida em que se sentiu feliz. ou, como dizeis, reciclaria a paz impossível em cada promessa inventada de amor e glória.

já a várias pessoas tenho ouvido dizer que o que nos acontece já está predestinado. eu não acredito mas teimam comigo que sim. e eu, e acho que tenho esse direito, teimo que não. por vezes jé nem sei se será mesmo por convicção ou por espírito de contradição. talvez um pouco das duas. mas, com predestinação, ou não, espero que ele tenha pelo menos alcançado alguma paz; um amor calmo sem ser rotineiro ou um estado de alma (o que será isso?) que fosse portador de algum bem estar interior.

o que tenho estado aqui a escrever é um bocado o tipo de coisas que quando as oiço penso -não há pachorra para estas conversas de psicologia à artigo do readers digest e desligo. mas enfim...

mas, Senhora, talvez apesar do livro não ter tido sucesso, ele tenha plantado uma árvore que se tenha tornado frondosa e que o faça sentir bem à sua sombra.
e eu sei (mais uma das minhas certezas!!!) que, plantar uma árvore, escrever um livro e fazer um filho pode não ser condição suficiente, ou nem necessária, para alguém se sentir bem.

...e porque a morte é certa, não deixa de ser em qualquer dia, num amanhã que a ciência já vai conseguindo adiar, num tempo sem hora certa. e aí, e não só, penso que ele tinha razão em viver a vida da mesma forma.

quanto avós, Senhora, continuo a gostar muito de vos ler. por isso (raramente não) passo por cá todos os dias na esperança de novo post.

e, porque ando a tentar deitar-me mais cedo, embora sem grande conseguimento, saio, reiterando a minha incondicional admiração.

desejo que o vosso sono seja reparador e vos faça sentir ser quem sois.

ps- possivelmente alguma palavra estará incorrecta mas não me apetece ir ler para corrigir.

Lizzie disse...

Senhor,

no outro dia alguém me disse que X se tinha ido embora. E eu respondi que esperava que fosse para melhor. E responderam-me que talvez, da maneira como isto está...e só ao fim de algum tempo é que percebi que havendo pouca possibilidade de o além estar em crise financeira, X tinha morrido.

Acho que sim, que nuns casos as pessoas, individualmente, se defendem com eufemismos e negações e que noutros há um esconder colectivo da morte como se fosse peçonha anti natural, pouco higiénica e por vezes até vergonhosa quando não culposa.

O mesmo se passa com a velhice, sobretudo em certos meios com que lido amiúde.
Francamente não percebo porque é que a Duquesa d´Alba não há-de andar na via pública ao lado de uma qualquer imberbe mediática no auge da frescura.
Se não faz mal a ninguém, está no gozo da sua liberdade individual.

Quanto a destinos, ele há condicionantes internas e externas. Como vós,suponho, não acredito que quando se nasce já se venha com um relambório de tudo o que se vai ser. Tudo tem, acho eu, uma explicação lógica mesmo quando não se sabe qual é.

O encosto ao destino parece-me, muitas vezes, uma justificação para o absurdo e a impotência. Mais os etceteras.
Diria até, às vezes, para o conformismo. Mas não sou juíza de coisa nenhuma.

Acho "graça", mas sem qualquer espécie de esoterismo, ao percurso do livro e ao facto de eu ter conhecido o autor e conhecer a performer.

O verdadeiro protagonista nisto tudo é o livro.

Reparai que é (quase) uma entidade autónoma.

Quanto ao autor, nunca fui psiquiatra nem psicóloga (adorei a vossa menção ao Readers Digest)e por isso não sei onde começava a fronteira entre a necessidade de protagonismo e a loucura efectiva tendo em conta que esta implica, penso eu, um descontrolo da vontade.

Lá que era comovente a forma como se deitava no colchão moldado que era a memória da mãe, era.
Que muita coisa vinha de um afecto amputado, vinha.

Que exigia (ou precisava) do "destino" o que as paixões não lhe podiam dar, exigia.

Talvez fosse feliz quando se sentia uma personagem literária com escrita directa para o seu público.

Sei lá, Senhor, as malhas que os gritos tecem.

Afinal dormi pouco, muito pouco para as 24 h seguidas que tenho a haver do leito.

Vou-me esforçar, por isso, para não me imaginar Lady Di a colocar minas num parque infantil.

(como vedes, ainda estou mais idiota que ontem)

Os meus, como sempre, agradecidos respeitos

Lizzie disse...

E, Senhor, apesar do cansaço e da parvoeira, não resisti em mudar alguns móveis...

por isso, não entreis em dúvida.

augusto, um entre mil disse...

Senhora,

porque esta vossa casa se encontra sempre de porta aberta, por cá tenho passado todos os dias, por vezes mais de uma vez. (estivesse ela fechada e eu encolher-me-ia, rastejaria, e tentaria entrar, esgueirando-me, pela abertura para passagem dos animais de estimação).

como é sempre tão agradável descansar à sombra que, aqui, nos dias mais quentas, estes reposteiros me oferecem e, nos mais frios me protegem da intempérie do exterior.



e o meu deslumbramento


.......................

e vós, Senhora,

e a vossa


criatividade

a vossa

insatisfação;


e, em vós, como num iceberg,

a ponta da arte...









e, por favor

Senhora,

não faleis em parvoeira...





que isto por aqui ...

Lizzie disse...

Senhor,

ruborizo-me com as vossas palavras, suspendo-me nos vossos estéticos espaços.

Pois, Senhor, já estive para fechar a porta da casa e deixá-la só de sineta na porta mas, simpaticamente soube que pessoas por aqui entram para saber e transmitir novas e antigas de danças, algumas pouco divulgadas em compêndios obrigatórios no percurso do saber.

E como não entro em casas de porta fechada...fica assim aberta que não sou única na timidez.


Foi grande o meu espanto ao tomar conhecimento de tal coisa.

Já cheguei a receber encomendas na despensa embora chegue aqui, à porta, e não veja ninguém.

E, como sabeis gosto, de misturar todas as artes porque acho que nenhuma vive macambúzia e prepotente sem tomar chá em conversa com as demais.

(Ainda um dia tenho que falar sobre esta mania das artes na sala de estar)

Daí que encha a casa de móveis e pena tenho de não botar música de fundo para quem quisesse (e possa) ouvir.

A propósito, como amanhã devo estar muda e quêda por estas bandas, mudei já uns hoje que espero vos sirvam também de repouso

das intempéries que também a mim afligem.


E por aqui me fico por hoje antes que mexa na decoração outra vez.



Os meus mais agradecidos respeitos que já tenho o cavalo aparelhado para mais um trote.

bettips disse...

Sem palavras, por alguns outros motivos. Mas deliciada pela perfeição. Do contar, do "imagear" o contar da vida. Das coincidências que acontecem e alguém as prende. Das referências culturais e da

delicadeza, Lizzie!
Bjs da bettips

Lizzie disse...

Bettips:

obrigada por esse romper do silêncio que agora te é precioso para além de necessário e que muito respeito não te fazendo barulho à porta.

E, pois, como já tenho dito noutras casas e nesta, o importante é que alguém prenda as coincidências que andam por aí.

Serão muitas mais do que podemos imaginar. Umas confessas, outras caladas.

Talvez a verdadeira natureza dos criadores seja a de serem delicadas esponjas (e não brutas esfregonas) que absorvem todo o líquido, todo o vapor quase invisível que paira sobre o correr em catadupa dos dias.

Talvez...

Enfim, durante a semana passada, por diversos motivos, vi como em cultura, em arte, se anda a confundir brutalidade com expressão.

Também vi quem consiga, com delicadeza, sintetizar a força de todos os gritos.

Enfim, tudo é medido pelo seu contrário...como a presença é medida pela ausência até que a memória ou o tempo as deixe naturalmente adormecer. Sem dor nem desgosto.


Beijinhos