sexta-feira, 14 de outubro de 2011

História verídica de um fantasma no fim do prazo de validade


Consta que a praia nunca foi submissa ao desejo de domesticação das multidões.


O mar é orgulhoso.

As ondas têm uma boca enorme, devoradora. Mesmo quando se desfazem em maré baixa, deslizam com mau génio, com estrondo.


Um Adamastor líquido. É um mar adulto, a lembrar os fascinios da pincelada solta de Turner.

O areal é imenso, sem admitir interrupções.


O ar faz-se vaporoso, em neblina, a retardar o sol e a lua ou outra qualquer visão
lúcida da hora e da lonjura.


O vento é superlativo e torna-se ventania. Em noites de inverno é quase promovido a tornado. Canta sem rima nem métrica no verso. Entra na pele, nos cabelos, capaz de rasgar tecidos como a voracidade de um amante urgente.


Enfim, se me permitem o Romantismo, tudo apela para uma nostalgia de um tempo ou circunstãncia não identificados.

E tal praia tem duas casas, uma principal e outra que é difícil perceber para que servia. Talvez para arrumos.

A informadora desta história não é conclusiva. Só garante que são palco de assombração.

Anda por lá um fantasma sofrido, com história trágica, cheia de arestas, esquinas rectas, espinosas e brutas. Como todos os fantasmas que se prezem, convenhamos.
Fantasma galhofeiro foi coisa que nunca se sentiu.



Há quanto tempo por ali anda, ninguém sabe com exctidão. Mas ainda existe. Como se sabe, os demasiado antigos ninguém os sente e os de morte fresca, ainda são tão recentes que lhes falta o carisma de inspirar lenda.

Este, parece que foi comerciante de sucesso em Lisboa,



com livro de contabilidade equilibrada na letra disciplinada da tinta permanente, entre o "deve" e o "a haver", e pelo que nos dão, é fácil imaginá-lo em forma de burguês aprumado e convictamente formal, com chapéu e bastão, botões de punho, vinco geométrico nas calças, prova manifesta da eficiência da governanta moralmente severa que lhe garante a presença de feminilidade que toda a casa de bem e respeito precisa.

Quis o destino que a ordem fosse perturbada pela paixão por uma aristocrata que haveria de ser morena porque não vivia na clausura do lar, sendo antes aventureira a roçar a diabrura, de tornozelos fortes por praticar mais desporto para além da suavidade do badmington, por dançar charleston, provavelmente ali para as bandas da Praça da Alegria, quiçá com o descaramento de um cabelo cortado à garçonne e outras alarvices. Talvez.

Apenas nos garantem que era criatura altiva, pouco modesta sem ponta de humildade, leviana, contrária a todas as qualidades que uma mulher que se preze deve ter para que o mundo não organize o seu próprio funeral.

Discutimos que personagem a ilustraria e estacionamos em Marlene Dietrich, propriamente dita, e no seu desempenho no filme The Devil is a Woman. Pareceu-nos escolha de grande cinematografia.

Apesar do homem a ter perseguido como um animal rasteiro, a tal mulher desprezou-o, pondo-lhe o amor ou o orgulho a sangrar, já que nestas circunstãncias me parece que nunca se sabe qual será mais hemorrágico.



E então o homem fugiu para esta ponta do mundo e mandou construir esta casa que aqui vos vou mostrando nas faces de que mais gosto.

Entrou o mais longe possível dentro da solidão, tornou-se ainda mais sorumbático, andava pela praia como se o caminho não tivesse fim nem princípio.



Mais dizem que ouvia ópera, talvez árias de Wagner e Richard Stauss, e que lia tanto que se tornou a imagem do pensamento infeliz.


E neste caso, lembramo-nos das angústias filosóficas do pintor Caspar David Friedich
a propósito da paisagem da alma que lhe imaginamos.

(Toda a gente sabe que então, como agora e quase sempre, a ignorãncia produz sorrisos e amplia a bucólica felicidade a que os seres humanos estão naturalmente votados.)


O eremita só por necessidade ia à vila mais próxima, não admitindo qualquer intrusão da vila na casa ou suas cercanias, nem que fosse para lhe oferecer peixe, crustáceo ou bivalve como pretexto para olhar nos olhos os estranhos e misteriosos fascínios da loucura ou do que não se compreende.



Grandes, prolongadas e em vão foram as curiosidades e as tentativas para que o passo do homem se tornasse sincopado com o dos restantes.



Sem sucesso ou remendo, a loucura acabou por gerar mais cansaço que medo orientando-se para o desprezo. Parece-me que costuma ser assim. Ou parecido.



Até que o homem decidiu abrir um novo capítulo numa terra morna e pacata nas notícias e eventos: foi ele mesmo buscar a morte em vez de a morte o ir buscar a ele.



Tornou-se alvo de comentários entre o escárnio e a compaixão e foi grande a romaria para ver o habitáculo daquela raridade de juízo fechado, agora alma penada.


Se o homem em vida vivia isolado, não seria depois de morto que permitiria a devassa da sua solidão. Afinal, sempre foi criatura de honra na palavra e na atitude.

E toda a gente que lá entrava, incluindo um credenciado na bravura sargento da Guarda Nacional Republicana ( é conhecida a falta de respeito pela autoridade que os fantasmas têm), fugia a sete pés.

Ninguém suportava os gritos agudos e arrastados de Mariaaa, Mariiiiiia, Maria nuns uivos
que pareciam vir do fundo do peito do céu,


nem olhar as sombras que andavam pelo chão e pelas paredes e com formas tão indefinidas como as imprevisíveis almas do outro mundo.

Há quem diga que o fantasma, possessivo, levou todos os livros e móveis dali para fora sem que ninguém o distinguisse no breu da noite.

E é certo que é desarrumado, porque deixa as coisas mais inúteis num areal deserto.




E que se enquanto tinha corpo vísível mas não palpável, era desgraçado sem vinho de boa ou má catadura, agora deixa garrafas que vão do Douro a Palmela, passando pelo Alentejo porque sabe-se lá qual o tempo que precisa um fantasma para flutuar as distãncias na noite dos vícios embora a maior parte do tempo se arme em novo e não beba outra coisa que cerveja de região não demarcada.


Nós não nos podemos queixar. Tem sido um cavalheiro na omissão do susto, pesadelos e outros incómodos não controláveis pela razão.

Lá vai segredando ideias com mais vocação de futuro que de passado.
Com tanta discrição como se não existisse.

Mais ano menos ano, mais tempestade menos tempestade, a casa caíra. Será um monte de escombros.


Até os despojos serem varridos como costumam ser as pedras que se debruçam para o mar.

A praia parecerá uma memória decapitada. Parecerá uma qualquer outra e qualquer grande outra parecerá ela. Aqui ou na Califórnia.

Não haverá fonte de memória, provavelmente, para qualquer arte.
E ninguém saberá de quem é a voz das gaivotas que gritam Mariiiia, Mariaaaa


E o fantasma perderá a eternidade.

10 comentários:

Lizzie disse...

Bettips:

respondo-te já neste ao de baixo, que está mais pintado de fresco enquanto me cresce água na boca com as ameijoas.

Sopa de cação é coisa que a minha mãe faz como ninguém e segundo me contaram, muitas panelas dessa amostra de tubarão foram feitas para reconfortar os que fugiam das limpezas hitlerianas e outras.

O vinagre que a tempera, era (e é) muito apreciado pelos judeus como forma de matar bactéria e vírus à solta nos corpos descansados ou em fuga, além de purificar o peixe no tempo em que ele viajava ainda sem os gelos do capitão iglo e restante família.

Por acaso há uma parecida lá para as bandas de New England. Deve ser comida ao pequeno almoço.Deve ser a primeira coisa a entrar no estomago.

É melhor não desperdiçar tomates, (nem pão, nem azeitonas)para mandar aos gordos da economia porque me parece que a classe média, não tardará quase nada, vai comê-los como prato diário, assim à moda de outros tempos.

(Se é que vai haver tomate. E pão. E azeitonas)

Quanto a porco, às suas extremidades e interiores, é bicho que nunca fui habituada a comer, não Senhora.

Um dia hás-de provar um bom pão de Valencia. Dizem que é multicultural porque a mistura de muitos povos que andaram por ali.

Eu tornei-me viciada na sopa de peixe que está lá no de baixo. A melhor que já comi até hoje e em retiro de pescadores e famílias que ainda por cima falam de fantasmas.

Mas é melhor perder o vício porque a tasca não ganha para os IVAs e outras contribuições e com a debandada de ingleses, espanhóis,alemães e outros e os portugueses a fazerem contas, diz a formiga que não chega para manter a casa no Inverno com o que amealhou no Verão.
E de tão barata (sendo tão boa), pouco volume deve ter no mealheiro.

Fiquemos então com os passeios, as luas e os sóis.
Enquanto a terra nos queima os pés.

Bjs e bom regresso

bettips disse...

As delícias de memorizar
a ternura.
Bjs

augusto, um entre mil disse...

Senhora,

de fantasmas percebo eu. vivem comigo dia e noite. raramente dormem e, mesmo aqueles que, pela ordem natural da data de validade inscrita na embalagem, há muito deveriam ter sido despachados não o foram. talvez porque bem nos ensinaram que os medicamentos não devem ser atirados para a sanita mas sim entregues na farmácia, mas quanto a fantasmas nada li sobre a forma de deles nos descartarmos.

pois, de fantasmas percebo eu, da forma de conviver com eles, mas não da maneira como deles me livrar.

de manhã quando acordo e eles me visitaram durante o sono fico sempre na dúvida se foi melhor assim ou se teria preferido as noites em que não me deixam dormir.

mas é curioso, Senhora, que nunca me aparecem de semblante alegre nem feliz. o que é estranho porque o pagamento de IVAS já não é coisa que os faça preocupar. deviam mesmo andar contentes por não precisarem mais de pensar em tal obrigação e respectivos prazos. será mesmo essa tristeza devida ao facto de, caindo a casa, não terem já um cantinho onde possam passear as suas assombrações. andam assim, possivelmente por ser o pagamento do IMI é um desejo que nunca mais poderão satisfazer.

sim, possivelmente haverá fantasmas que não se importariam de passar pelas coisas mais desagradáveis para poderem deixar de sê-lo.

e agora Senhora e, já agora, me despeço enquanto vivo e desejando, depois de morto, não andar a assombrar ninguém...

Lizzie disse...

Bettips:

pois, a ternura é assim a modos que um cobertor quente numa pele fina.

E numa vida cada vez mais fria e com tantos laivos de indiferença e incerteza, ao menos que se guarde o que realmente e na essência, aquece.

Bjs

Lizzie disse...

Senhor:

desses fantasmas pegadiços, tão dependentes da aflição e dos sentimentos dos vivos, toda a gente os terá, embora haja quem mais lhes carregue o peso não medido por balança comum.

Desde há uns anos, tenho um de (des)estimação que é muito malvado e se veste de muitas coisas e situações.

Também me ataca durante o sono, quando tenho as portas e as janelas mais abertas porque quando estou acordada é mais fácil mandá-lo embora, ou pelo menos pô-lo de castigo num canto mais escuro.

E quando acordo, às vezes faço por ficar um bocado acordada para ver se ele se farta e vai atormentar para outra freguesia.

Mas também tenho outro que acho simpático e que lá vai dizendo alguns confortos quando vou comprar tabaco ou atestar o carro ou ao supermercado e me diz para não dizer palavrões quando vem o IRS.

Não sei como vai reagir com as novas contas do orçamento e também não sei se os fantasmas não vão ser abrangidos, assim como os cães e os gatos (IADH- imposto sobre a animalidade doméstica horizontal)

mais os pardais já que me parece que se vai cobrar uma taxa pela utilização do céu público.

Senhor,já sabeis, se os pássaros e os aviões pararem no meio do voo já sabemos que é porque estão a pagar portagem.

Senhor, eu cá quando ganhar o estatuto de fantasma não quero ser muito sisuda embora não me importe de fazer uma ou outra assombraçãozinha a quem não mereça paz de espírito.

Gostava mais de me sentar na mesa de cabeceira de alguém e ir dando instruções para que faça aquilo que eu não tive tempo de fazer.

Sei lá, Senhor, se não é uma boa forma de se continuar vivo.


Respeitosamente e sem despedidas vos saúdo.

Alien8 disse...

Lizzie, já estava com muitas saudades das tuas imagens e das palavras que as acompanham!
- Então porque não apareces? - perguntarás tu, cheia de razão.
Pois é, maldito Facebook e mais umas coisas não virtuais em que me meti!

Mas, como deixei dito lá no Título, estou a pensar seriamente em reactivá-lo, embora não espere a ampla freguesia e cavaqueira de antanho (!).

Tu continuas em excelente forma, é uma alegria ler-te e ver-te, digamos assim.

Um abraço, dos grandes!

Lizzie disse...

Alien,

é bom sinal quando andamos com saudades uns dos outros.

Também ando a modos que com saudades de vocemeceses e até já me tinha ocorrido, com temor, coño,que andassem cá por estas terras a cobrar imposto à entrada de extra terrestes, tanto que lá iriam à falência mais umas tertúlias.

(Tenho quase a certeza que os fregueses fiéis lá irão tomar um copo de três só para ter o prazer de te ver atrás do balcão.)

Mas se vais voltar, fico mais descansada mas é melhor não falar muito alto não se vão eles lembrar de vos taxar e botar um IVA de 75% em material de manutenção para os OVNIS topo de gama e 74,8 para os de gama económica.
É melhor não darmos ideias ao Senhor da Lenta Fala.

Por acaso não se me agrada o facebook. Não sei se já te tinha dito que acho aquela livralhada muito confusa e depois há o aspecto gráfico que me parece uma agenda ainda mais gatafunhada que a minha.
Parece-me que entro numa sala onde toda a gente fala ao mesmo tempo.
Uns com máscara, tipo baile veneziano, outros como vieram ao mundo, outros mais sóbrios e normais.

Pertenço a um colectivo e de vez enquando tenho que lá ir botar sentença mas só depois de me telefonarem quinze vezes. No mínimo. E depois "donde está el puñetero tío al que hay qué contestar, coño?"

Mas acho que é um bom meio de comunicar e diria mesmo que se pode transformar, para o bem e para o mal, no 5º poder se não o fôr já.

Ficava em melhor forma se fosse restaurar a casa do fantasma que é habitáculo por que tenho grande paixão e muito me armo em decoradora dele dentro da cabeça.

Vou estar uns dias fora mas noutras paragens, coño.

Muito obrigada e um grande, grande abraço para vocês.

bettips disse...

Vai mazé (re)decorar a casa e afagar fantasmas... Porque me parece uma boa ideia, deixando os homem da lenta fala a falar sózinhos. Que a gente existe: vertical.
(os meus - fantasmas e assombrações - estão ainda vivos. Quando desaparecerem vão para o livro inútil mas arrumado do que ficou por fazer, dizer...)

(desta vez consegui comentar, olé!)
Beijinho L.

Lizzie disse...

Bettips:

quem me dera calçar as botas das sete obras,meter-me ao caminho e ir de restauro que, cá para mim, o fantasma não haveria de me assombrar nem as noites nem os dias, se deitasse o que resta de duas paredes abaixo, para melhor aproveitar as diversas generosidades da luz, mais as suas danças de reflexos entre uma parede e outra.

Ai, e o anexo...

Acho que ficaria um bom cenário, assim ao género Massachusetts refugiado neste lado do Atlãntico, para a ópera das gaivotas.

O problema é que não posso ver casa velha ou abandonada (sobretudo à beira água) que não me dê logo para a decoração e para imaginar que sento lá a vida como se completamente livre fosse

(ainda não cheguei ao estado vaporoso mas suponho que em liberdade e derivados, os fantasmas são mais livres que nós. Depois logo contarei...:).

Enfim, sonho para aí, neste momento, com umas quinze. Mas a promiscuidade tem tendência a aumentar. Pois tem!

Beijinhos

bettips disse...

Olha que isto está engatinhado...
Não consigui comentar... mas dizia eu (depois de escrever no mail) que descobri aqui a súmula do que pensava:
sentar a vida!
Isso? onde? será sempre um sonho?
Bjinho