segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Além de já estar farta do anterior, ai meus amigos que ou escrevo ou adormeço em reviravolta de pesadelo obrigado, como compreenderão pelo que se segue.

O contabilista da felicidade agendada.


Estou a escrever numa sala em anfiteatro. Escura.

Lá baixo, num púlpito, está a falar um senhor que é Director Geral.
Vem acompanhado do Sub-Director Geral, do Infra Director Geral, do Assistente Graduado do Micro Director Geral, do Micro Director Geral propriamente dito.

Dos acompanhantes do Secretário-Geral não vou falar para não perder tempo.

Meus amigos, com esta palestra e para meu grande espanto fiquei a saber que estou morta.

Não me lembro da forma como despi o corpo da alma mas estou já no além.
E também quem tiver a paciência de ler estas etéreas palavras. Suponho.

Lamento mas o senhor Director, servindo-se de Séneca e outros eruditos, nem Voltaire escapou à abrangência citatória, informou a assistência que vivemos no Paraíso.

Portugal, apesar da falta de trocos, é, no contexto internacional, um Paraíso.


Já consumi muitas farsas, já fui devorada por muitas espirais patéticas. Já ganhei olhos virados para os ossos das coisas. Já percebi que sou perecível, com prazo de validade até para alguns alimentos dos sonhos.

Mas nem com isto tudo, percebi algum dia que vivia em território de Paraíso.
Quanto muito, imaginava-me no Purgatório. Como compete a quem, em vez de estar a tomar atenção à voz da terrena sabedoria, está a escrever posts.
Menos mal que estou acompanhada por outro pecador, aqui ao lado, a consultar as promoções do supermercado: 10% no cartão, noves fora nada.

O senhor, perdoem-me mas faz por isso, tem cara de frango assado no forno: macilento e nada crocante. Nem sequer estaladiço.

No Paraíso, os frangos têm barba, gestos largos, energia laudatória e alfinetes de gravata com a bandeira portuguesa.

Antes do intervalo, o senhor explicou que uma vida ordenada torna as pessoas mais felizes.
O senhor é um contabilista da felicidade agendada. Um profeta por encomenda. Com gráficos nos papiros. Ou a fingir que tem papiros nos gráficos.

Diz ele que cada um se deve fazer acompanhar de um caderninho onde se anotem todos os actos praticados desde o acordar até ao último adormecer do dia. (Este último é meu acrescento e dedução porque sou pessoa para dormir a sesta mesmo de olhos abertos e de estar atenta ainda que de olhos fechados, ou seja, é para onde me dá que sou de atenção sem lei).


E que se deve fazer um balanço entre o útil e o inútil, o importante e o fútil, o urgente e que pode esperar e mais etc, que a minha capacidade de absorção de deveres já teve melhores dias. Embora não muitos. Quase nenhuns.

E diz ainda que cada um deve traçar os objectivos para o dia seguinte sendo cada um mais ambicioso que o do dia anterior.



(Não fosse a eternidade um espaço tão longo e a omnisciência tão longe da essência da distracção e talvez para amanhã me propusesse ser Deus único. Com toda a paganidade incluída.
Ou talvez me propusesse ser a síntese de tudo o que desconheço. Pouparia dinheiro à curiosidade.)

E que a pessoa se deve repreender, auto censurar, auto punir consoante o número de falhas ao programado.


Porque cada falha, se bem entendi por esta audição residual, prejudica cada um e assim sendo mói, sobretudo, o juízo a qualquer Empresa, a qualquer Estado, Sociedade e etc. outra vez.

Só há crise quando existe uma espécie de inesperados individuais.


E agora tenho que me despachar. Já é a terceira vez que o Senhor diz “e finalmente”.

Amanhã, talvez me converta. Talvez arranje um caderno. Pautado, de preferência, para que as linhas me ordenem os actos no espaço.
1- abri o olho esquerdo;
2- abri o olho direito;
3- acordo
4- a garrafa roeu o rato da rolha da Rússia do rei



….
534- meti a chave na ignição
535- rodei-a

10876- bebi água
10877- o rato roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia.

3398698- dá-me um prurido na omoplata direita
Causa- falta de hidratação
Resolução- mais 5ml de creme hidratante in loco (manhã e noite)
Custo- 5ml x 365 (x2)= 3650ml
Benefício- não interrupção do trabalho pelo acto misantrópico de coçar.
....
426789034- acendo a luz do candeeiro da mesa de cabeceira

.....

Ou então, acordo com saudades do sono horizontal, penso que mais cinco minutos, ou dez ou quinze daquela planura não me farão mal nem hoje nem amanhã. Nem nunca.
Que não quero ser Deus Nem Diabo. Que estou algures entre uma árvore e uma nuvem. Talvez. Que Bertrand Russell, salvo erro, disse que todos os seres humanos têm uma coisa em comum: o serem todos diferentes.

O senhor dirá uma frase lapidar. Toda a gente baterá palmas. Muita gente o rodeará com perguntas que sabem a vénia. A aderência. Comprarão cadernos. É o costume.


Se me permitem, espreguiçar-me-ei.
Como toda a gente que acorda, todos os dias, para o ofício de viver. Mesmo com as ideias trocadas. Ou do avesso. E sem etiqueta nem costura.
A apanhar pensamentos como se fossem sonhos.

A queimar o tempo com o meu próprio fogo que peço emprestado a quem o tem muito mais forte, criativo e sábio que o meu.



Quando me sentir morta, terei então todo o tempo para beber a lama dos meus sonhos.
Talvez, sr Director, na fronteira do Inferno.

2 comentários:

Alien8 disse...

Conheço esse discurso. Cada vez se vai ouvindo mais, e começo a pensar que as pessoas até estão atentas. Não fosse a preguiça (ou os inúmeros afazeres do dia-a-dia), já teriam os caderninhos meio cheios. Receitas de paraíso não andam por aí a monte, nem mesmo nos melhores quase ex-blogs parcialmente dedicados à culinária.
Enfim...
Um abraço grande, Lizzie!

Lizzie disse...

Pois, Alien, o que me faz confusão é a aderência cega às agendas...à programação vinda de fora de cada um mesmo nos tempos livres e, enfim à perda da personalidade. Como se tais coisas fossem sinais da maior das evoluções.

E por incrível que pareça, muita gente,sobretudo nova, ainda que diferenciada, acredita que está mesmo nos brandos costumes do paraíso. Em termos comparativos.

Enfim, há receitas já muito usadas que parecem funcionar. Pena é que não as conheçam...nem as indigestões que provocam.

Blogues moribundos? Credo!

Um grande abraço para vocês.