quarta-feira, 16 de junho de 2010

Agora que voltei doutras terras, aqui deixo prosa salteada, contagiada de jet-lag , sobre

a centrifugação do Tempo


Assim dito porque não sou pessoa de escarafunchar o passado que me coube no destino e, por isso, prefiro tirar-lhe apenas o sumo, ou o que ficou sólido na sua essência.
Tive ocasião de comprovar que apenas o que é estável, estrutural, permanece.
Tudo o resto pertence ao subsolo da memória.

Embora me lembre da famosa e lusa canção "ó tempo volta para trás", confesso que, por maior que seja o autoritarismo presunçoso da letra, nunca me convenceu da sua veracidade. Soa a falso, por mais gritada seja a voz que a cante.

E sempre vos digo que na minha modesta opinião, não há nada melhor para medir a maturidade, a sabedoria e outros eufemismos aveludados para o envelhecimento que voltar onde já, em tempos, se viveu.

Perdoem-me a crueza do britânico pragmatismo, mas o mais fiel espelho para as nossas rugas são as rugas dos outros, o crescimento do que era pequeno, a morte de quem, ou do que, já teve vida.


Talvez tudo isto se resuma no termo Mudança.
Por exemplo, tempos houve em que todos os dias cumprimentava este senhor.

Assim me foi lembrado ao passarmos agora por ele.

Claro que me indignei em nome da sanidade mental retroactiva. Eu? Coño, entonces hablaba yo con piedras?
Agora, limito-me a admirar-lhe a expressão, os traços, a tentar ler-lhe os pensamentos muito mais velhos e com certeza muito mais sábios que os meus, enquanto lhe peço mentalmente desculpa por a dignidade me levar à má educação de não lhe dar os íntimos bons dias.

Também havia tempos em que, por parceria institucional, tinha entrada nesta cantina.
Chegávamos lá a correr, em traje de ensaio com casaco por cima, febre nos músculos urgentes, engoliamos uma salada de frango debruada a batatas fritas, ia-se, com licença, ouvir uma palestra interessante, apanhava-se o autocarro para regressar à base.

Tentávamos ultrapassar a cadência certa dos relógios, cortavam-se as frases ao meio como forma de multiplicar as mensagens no bulício.

Agora preferimos a calma das horas mais vazias. Chá e torradas com manteiga de búfala e doce de limão ou amora. Palavras mais lentas. Corpo sem pressa.

Fruímos do eco da conversa descontraída e sem vaidade no intelecto (porque raramente ali os intelectos fazem pose) da senhora judia dos sete costados, que aos oitenta e cinco anos


interrompe o seu refúgio voluntário no bosque, os seus cavalos, o remo diário no rio,a solidão escolhida, para dar conferências avulsas.

Fala do muito que haveríamos de ver.

Fala dos novos vizinhos, os habitantes das cabanas na floresta que foram substituindo os veteranos do Vietname.


Fala, sobretudo, das mulheres militares que foram ao Iraque e arrastam pesadelos.

Porque a pior das velhices precoces é ter todas as ilusões desfeitas. Ou mal ordenadas, quando se olha para o futuro.
Algumas pouco ou nada falam. E até os seus cães parecem pedir-lhes a tristeza emprestada quando, na realidade a absorvem e se transformam em consolo.


Às vezes o único contacto com o mundo é a visita de especialistas em stress pós traumático e as várias bibliotecas itinerantes.


Fala-nos de como muitas empresas voltam a patrocinar a cultura. Algumas companhias de dança engolidas pela ganância financeira, começam a ser restauradas. Exige-se a qualidade trabalhada em vez do sucesso fácil, rápido, exaustivamente mediático, iniciado nos anos oitenta.

Nem foi preciso informar do que já sabíamos: a América volta a acolher os artistas que a politicamente correcta Europa despreza ou varre. Na dança, na música. Até na Moda. Mera futilidade aqui, mas com estatuto de arte utilitária, livre e expressiva lá.

Ninguém anda despido e a roupa que se escolhe (ou pode escolher) vestir é, por si só, uma linguagem.


Convenhamos que até uma proposta de sapatos pode ser uma bofetada no lado esquerdo ou direito da face.

Mas voltando lá acima, o tempo também se pode perceber quando se faz um desvio para ir assinar, por tradição e respeito, um livro.


Assinámo-lo, com data, quando chegámos. Com intervalos, devemos assiná-lo quando lá voltamos, com espaço de página para dizer o que fizemos,fazemos, onde estamos.

Se ficámos contentes de ver o crescimento das árvores que, também por tradição de raiz inglesa, plantámos, (esta é a minha, uma variedade de magnólia que por graça foi escolhida),


o riso desta


soa a grito.

Soubemos pelo tal livro, e não só, que foi a plantada por um bailarino que se tornou actor, palhaço sofisticado, autor e mimo e que pouco depois de ter voltado e feito gargalhar a árvore, se suicidou vítima de mágoa assassina.

Tornou-se célebre, digna de divertidas fotografias turisticas, mas quase ninguém a lê inteira.

Qualquer dia ainda conto a história do violoncelo, que me lembro ver acompanhado por um piano e que foi construído com paixão teimosa, por um meu antepassado. É instrumento com uma voz de subtileza mais grave do que é uso na sua família de cordas e que foi ali parar com rasto escondido.

Revendo-o de forma tão inesperada, e depois de tanto paradeiro desconhecido, foi coisa que me fez entupir a garganta e travar as palavras.

Gostei tanto da ternura das mãos que o apresentaram e da honestidade dos olhos que me olharam que o deixei ficar lá. Ali, tenho a certeza que todos os dedos que o tocarem, terão o carinho das almas imensas.

Se o ouvir bem, talvez ele conte um capítulo da história portuguesa, com pessoas bonitas e feias lá dentro.

Afinal de contas, depois de tudo, depois de cada viagem, seja ela qual for,

depois de qualquer assinatura em qualquer data, depois de qualquer obra ou acto, depois de qualquer luz

ou paisagem


arte ou secreto esconderijo

talvez o mais importante seja perceber que a sabedoria ainda está, algures, num primórdio da infância.

Aqui, na Terra, ou além, ainda acima do arco íris.

Sei lá...

13 comentários:

Alien8 disse...

Lizzie,

Esta tua crónica deixa-me a ideia, talvez errada, de que a tua viagem foi uma espécie de regresso ao passado...

Não, evidentemente, o "Ó tempo volta p'ra trás", cantiga que sempre foi foleira e assim será por todos os séculos dos séculos, ámen!

Perpassa pelo texto (e pelas ilustrações, por algumas delas) uma melancolia nostálgica a que ninguém resiste, nem o mais pintado (seja lá isso o que for).

O violoncelo... já para não falar no pato...

Gostei do aspecto da cantina. Gostaria de ter podido comer lá umas gambas ou assim :)

A paisagem é soberba, as árvores são marcos, embora a que plantaste me pareça um bocadito torta, coisa que está em total e absoluto contraste com a plantadora :)

Devem ter sido uns dias maravilhosos, em qualquer caso.

Obrigado por teres partilhado desta forma tão cristalina a tua "peregrinatio".

Um beijo grande. A Lola manda saudades, e um abraço.

Lizzie disse...

Daniela:

lá irei, com mais tempo e calma.

Obrigada pelo convite.

Lizzie disse...

Alien:

não foi regresso ao passado, foi mais a constatação de muitas mudanças, numas coisas, e estabilidade noutras.A nível pessoal e profissional.
Um bocado como ver já adulta uma pessoa que se conheceu criança.

Penso que acontece a toda a gente que parte a vida em fatias. Seja lá qual fôr o motivo. O antes e o depois.

Também não gosto da outra canção que diz que "recordar é viver" e "sim, eu sei, que tudo são recordações":))

Foi uma fase marcante, mas passou. Fisíca e mentalmente tudo tem a sua idade, o seu tempo.
Com o sumo centrifugado, agora aproveito esse tempo para fazer outras coisas, para me entusiasmar de outra maneira. O que importa é utilizar o "velho" para aprender a descobrir o novo.

Claro que tenho (temos) nostalgia da beleza, da organização eficiente, da falta de burocracia,do cosmopolitismo, do reconhecimento. Trabalha-se, luta-se,surgem ideias, consegue-se.
Encontrei lá uma minha conhecida cientista,mocinha nos trintas, desprezada em Portugal, sem condições. Chegou lá e passados seis meses já coordena uma equipa de investigação. Não quer voltar.

Também é triste ver a quantidade de artistas espanhóis,estilistas incluídos,que emigraram para lá.
Mau para Portugal porque as roupinhas eram produzidas por fábricas aqui. Falências, pois claro. Desemprego, evidentemente.
Ficam os elogios nas entrevistas.

A cantina é da Universidade de Harvard. Mil idiomas e raças a comer:)) Às vezes tem concertos de vários géneros de música e dança.
Nada como comer salsichas a ouvir Canto Gregoriano ou Índio.:))
Serve para os alunos das modalidades treinarem a concentração.

Gambas e lagosta ex-libris? Existem outros sítios. Nhamm, nhammm,nhammm...tu cála-te:))

Doei o violoncelo a uma instituição,e hei-de cumprimentá-lo em Madrid, em Setembro. Depois vai a Viena.Depois ao Alaska.
Ainda encolho e me escondo dentro dele:))

A minha árvore torta? Dançante com o vento, se não te importas:)

Tem um determinado nome porque uma determinada rainha inglesa gostava delas e as plantava e a partir daí todas as soberanas, estando ou não no trono, do mesmo nome têm por obrigação plantá-las.
Ora toma!

Está num bosque e todas elas têm uma chapinha com o nome dos plantadores.
No Alaska lembro-me de outro bosque com os nomes dos guardas florestais.

Obrigada e grandes beijos ao quadrado!

Lizzie disse...

...e olha que com tanta guerra sem armas, não me importava nada de ter refúgio numa daquelas casinhas de bosque.
Quando me apetecesse ir à cidade, pegava na truck e pronto.

Há desejos que se mantêm ao longo do tempo. Pois há:))

Alien8 disse...

Lizzie,

Essa do "Recordar é Viver"... bem... o Vítor Espadinha é uma figura! Muito deve ele ter gozado com aquela canção! :)

A raínha que plantou a árvore foi, aposto Elizabeth I. Acertei? :)

Com que então, a cantina de Harvard! Pois a mim parece-me bem mais compatível com a nobreza de gambas e lagosta do que com as plebeias salsichas :) Gostaria de lá ter comido, ao som de qualquer canto, mesmo que fossem salsichas...

Sim, a tua árvore dança ao vento:)

Um abraço.

Lizzie disse...

Alien:
:)

tenho ideia de ter conhecido o Espadinha (nunca poderia ser Espada por motivos óbvios). Em quantas serenatas a janelas diferentes terá ele cantado o verso "tu foste a mais bela história de amor"? Será que conseguia cantar para várias ao mesmo tempo?:)

Quanto a Elizabeths, "elementar, meu caro Watson!"

É história para ser contada naquela cantina tendo em frente uma tarte, daquelas de lanche, pouco doces e confeccionadas com cerveza preta. A dignidade lagostal também é adequada.

Era uma vez uma rainha que gostava muito de magnólias e as plantava em todo o sítio e quando mandava degolar pessoas da sua estima e respeito dava ordens para que os restos das carcaças fossem cobertos com flores dessa árvore e por isso a Mary Stuart coitadinha ficou mais bonita depois de morta do que viva

(refresco a garganta com suave vinho branco)

e quando a rainha ficou com uma coisa que se pensa ter sido cancro na tiróide os estilistas da altura inventaram-lhe um apetrecho para botar à volta do pescoço inspirado em pétalas entrançadas de flores de magnólia e que ainda hoje se chama Elizabethan Collar.

Fico por aqui que esta garrafa já acabou...quando vier a próxima conto mais:))

Ora prova lá uma salsicha gigante de perú cheia de ervas aromáticas e com um ovo sentado em cima:))

Também te posso emprestar o livro de pulp fiction dos anos 50 que estou a ler.
Eh,eh,eh

Abraço

Frioleiras disse...

pois....................................................................

bettips disse...

Lizzie: com a chave na mão, eu venho ler, juro juradinho. Perturbas-me e desalinhas-me os pensamentos (sinceridade nortenha). Para ti não é "leitura", é fundura e adivinhação.
É o pobo do Porto muito cioso e amigo do seu amigo - eu já te conhecia há que tempos mas ...
mas,
como afecto/a-fectuar mais
e depois a gente perder-se por aí e ali
(como a amiga dos templos e dos terraços d' Itália!).
Fica-me sempre uma saudade do diálogo e do espírito, sabor a vazio porque sigo com a alma das gentes que fui conhecendo como se conhecesse.
É assim.
Bjs

Frioleiras disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
bettips disse...

...ah e segui tantas estradas de tijolos amarelos, aquele mundo dos lenhadores de lata ...
e os espantalhos ficaram errantes, e não tinham mesmo coração
nem com o feiticeiro e a sua boa vontade,
Esta minha cabeça dura (de roer).
Mais um bj

Lizzie disse...

Frioleiras:

é isso mesmo: pois!

Perguntam como se pode deitar fora, desprezar, a actualidade e a beleza eterna de uma trova medieval, por exemplo.

E a única coisa ao nosso alcance é encolher os ombros e chorar para dentro.

Calhou-nos viver num tempo em que o tempo anda desvairado. Sei lá se algum dia, pára, respira fundo e se lembra do seu próprio e sensato ritmo. Sei lá quanto tempo demora a re-aprender a andar...

Lizzie disse...

Bettips:

Não me digas que a desarrumação dos meus pensamentos, género biblioteca que já nasceu com as estantes obliquas e livros que começam pelo fim,quando não lhes dá na página esquecerem-se do meio, se torna contagiosa:)

Mas é assim, não se pode viver com V grande numa cãmara de vácuo, sem acidentes, sem perturbações, boas ou más. Mesmo no mais completo vazio, os pensamentos são dados à vadiagem. Vadiam sempre, acho eu, é dentro de um determinado padrão. As tais estruturas. Por isso eu sou eu e tu és tu, por sua vez diferentes de quem se senta, mas sempre a viajar, nas varandas italianas e a tratar por tu todos os deuses.
Há viajantes que são feitos de partículas de vento.

"Atrasado", como se diz no Nuorte, um colega e eu, transpirados de medo e com consciência de pouca sabedoria para uma ciclópica tarefa, deu-nos na veneta começar a cantar, virados para a paisagem:

"Somewhere over the rainbow
skies are blue,
and the dreams that you dare to dream
really do come true...

if happy little bluebirds fly
beyond the rainbow
why,oh why can't I?"

à procura que todos os espantalhos tivessem coração.Por milagre.Às tantas foram versos que contagiaram. Fosse qual fosse o cenário. Tantas vozes.

Agora que por acaso o encontrei, os encontrei (sete pessoas a medir rugas), e que nos perguntaram and from now on? começámos a cantar. Com rugas nos risos porque, naturalmente, com o tempo, as asas murcham.

Mas pronto,o que ainda não caiu é a vontade de ter mais sabedoria, ou a consciência de ter ainda muita falta dela.

E cantar cria músculos na voz com transferência de notas para a alma:))

Bjs e obrigada e biba o Puerto!:)

bettips disse...

Sete sóis
sete luas
o sete estrelo
a-cantar de-cantar encanto
cada canto de nós

Bem feito, para as rugas rirem.
Da música das cores.
(e da dança, a perdição dos gestos!)
Bjinho