terça-feira, 9 de março de 2010

Da melancolia e da incerteza na alma de uma torneira


Neste momento, estou à espera do destino.
Metida dentro de um saco com o carisma do El Corte Inglés. Reciclável.

Podia ser pior. Podia-me ter calhado um daqueles sacos verdes com asas, sem nome, vendidos a granel para as feiras ou para as lojas chinesas. Aqueles plásticos derivados de petróleo proletário e indigente.
Perguntarão: que diferença faz a uma velha torneira o saco onde repousa?
Tal como os humanos, tenho as minhas inúteis vaidades. E pergunto: que diferença vos faz, depois de fenecidos, jazer numa caixa de pinho ou num polido mogno maciço cheio de enfeites, sedas e bordados?
Mas enfim…
Sou vulgaríssima.
Sempre andei pela mediania, conservadora na forma, eficiente na função.


Foram-me comprar numa loja de imprescindíveis para a construção.
Não tenho assinatura de artista, nunca apareci nas revistas com as palavras contemporary design ou architectural antes ou depois de interiors, em rosto de apresentação, papel couché e paisagem asséptica de qualquer forma de vida.
Felizmente, fui parar a uma casa vivida, com o desarrumo de quem não se estaciona, como que pendente, num tempo suspenso entre pontos indefinidos.

Mas dizia eu que sou de figura mais rústica, mais parecida com as que constam das páginas que senhoras folheiam, à hora de almoço, fora da roda da repartição, enquanto sonham com uma casa lírica no campo, com vista para o mar ou para a montanha, paisagens de fuga ou de ligação à matriz da calma que perderam.

E claro, também nunca apareci em anúncios publicitários na tv, daqueles em que torneiras parecem engenhos da NASA, com voz off calma, grave e séria, a mesma que anuncia colchões ergonómicos e outros produtos topo de gama.

Tenho manípulo para mãos que gostam de agarrar e sentir o que possuem e tal como muitos orgânicos, como o David Bowie e os cães dálmatas, tenho um olho de cada cor.

Ouvi este desaire a quem me escolheu: parece o David Bowie! e mais:
as torneiras misturadoras devem ser hermafroditas
…imaginem,
como se não nos chegasse esta imobilidade de liga metálica que, pensam os humanos, ser desalmada e estéril de vontade e sentimento.

Como se não nos chegasse esta impossibilidade de gritar contra o destino mesmo quando pressentimos a má sorte.

Ouvi dizer que a mesma coisa acontece aos animais em montras vítreas de lojas, agora chamadas de Pet Shops. Assim em inglês, aqui, até parece que o negócio fica mais paliado nas intenções.

Bom, mas lá fui, num saco branco com letras azuis, Fernandez, Rodriguez y Rodriguez todo para su hogar, conhecer aquela que haveria de ser o meu anjo ou o meu carrasco(dualidade que, pelas telenovelas mexicanas que ouço lá dentro antes das notícias, me parece ser muito frequente nos humanos): a chave inglesa.


Se foi ela que me instalou e me deu vida, também foi ela que me arrancou dos tubos que me foram íntimos durante tantos anos. Abriu a bocarra dentada, exclamou um peneirento “oh dear, isn´t this a disgusting old thing?” e sem piedade quebrou-me os laços.

Não sei se sabem, mas fui feita para controlar a insensatez e a loucura da água.

Fui, do ponto de vista dela, um muro de repressão, um psiquiatra implacável, uma guarda da escuridão, um silêncio enclausurado.
Levei anos a fechar-lhe lentamente as portas. A apertá-la. A sentir-lhe o desespero da fuga impossível. Um embate cego no meu corpo rígido.

Levei anos a sentir, no centro de mim, as brigas entre as moléculas aquecidas pelo esquentador, Don Vulcano, espécie de deus dos infernos com peito de fogo, e as frias, geladas, vindas da terra.

Atendendo às ordens que recebo nos manípulos, vou dando mais razão a umas ou a outras, se bem que, aqui, tenha sempre sofrido de parcialidade a favor das quentes.
Sobretudo à noite (que de manhã , usando-me para duche em modalidade meramente essencial, mal tenho tempo para escolhas) quando o ritual do calor se esmera em pormenores mais arrastados e estéticos, se me permitem a ousadia da consideração.

Mas, quando as solto, às quentes, vejo, através destes meus olhos estáticos e focados, aparentemente, em coisa nenhuma, os rostos de prazer, a mudança de cor dos corpos brancos, o vermelho nos dorsos e a neblina que os torna quase irreais como a fotografia que a minha vista ainda conseguia alcançar, lá ao fundo, quando a porta estava aberta.

E, pela forma como a água bate nos corpos, vou vendo como perdem a rigidez, como se tornam num tecido mais almofadado, mais solto.

Depois, a pouco e pouco, fui ficando cansada, com o corpo invadido por calcário, uma espécie de mau colesterol.


Fui perdendo força face à eterna juventude da água. Comecei a deixar passar uma gota mais endiabrada, depois outra, mais outra, numa cadência cada vez mais apressada. Invadi-lhes o silêncio.


O meu exterior, que nunca foi luzidio, foi-se tornando mais baço, apesar das esfregas de Doña Rosa, a que diz que uma cama por fazer, uma loiça por lavar e uma torneira manchada, maculam qualquer casa, por mais limpa e arrumada que esteja.


Durante anos sacrificou-me com um pó áspero. Depois com um creme branco, cheiro a limão. Agora com um gel verde que cheira a flores de plástico vindas de um paraíso telegénico.

Por sacrifícios, verifiquei, com a minha congénere do lavatório,


algum absurdo irracional e insensível no comportamento humano: quando faltava a água nas canalizações, incrédulos e revoltados,


giravam-nos os manípulos até ao máximo como se assim, nós a fossemos, magicamente, buscar onde parou.


Ninguém se preocupa com o ronco de asfixia que emitimos, ninguém percebe que o ar nos mata. Repetem a tortura, ansiosos, de minuto a minuto até termos… ataques espasmódicos de tosse . Aí riem-se, mesmo quando a água, vestida de branco, é expulsa de forma violenta, aos sopetões, molhando-os.

Agora estou aqui, de estomas expostos, neste vazio cheio de memória, situada num ponto chamado espera, aquele que termina quando se inicia uma linha chamada futuro.

A linha, que na superfície do Universo, tem sempre uma direcção incerta.


Mesmo para uma simples, modesta e servil torneira misturadora, talvez digna de reciclagem, como eu.


Pertencerei sempre ao silêncio das coisas comuns.

5 comentários:

Alien8 disse...

Lizzie,

Bem vejo que aproveitaste o intervalo para comprar uma torneira! :)

Depois aproveitaste a torneira para lhe fazer a história.

Puxaste-lhe o lustro para que pudesse reflectir as imagens mais diversas.

Ficaste a mirá-la uns largos minutos, em silêncio, quiçá com uma lágrima ao canto do olho (bem, não estou muito certo disso...)

E depois... depois abriste-a, coño!

Eheheheheheh!

Um abraço por mais um belíssimo e apertadíssimo post!

Lizzie disse...

Alien:

lembrei-me agora: será que o D. Bowie me vai pôr um processo?
Assim comparado com uma torneira hermafrodita?

Fica sabendo que tenho umas torneiras lacrimais um bocado incontinentes. Vê-me tu no cinema, com certas obras de arte, com músicas, com várias coisas e comprovarás que já nasceram com as borrachas avariadas:)

Nem imaginas as inundações às primeiras páginas dos Humilhados e Ofendidos do Dostoievki. A história do velho e do cão na taberna. Era pequena, mas nunca mais me esqueci.

E o rebuliço que foi uma redacção, na escola, quando escrevi as considerações de um espelho do estúdio. Cada palavra seu erro, mas enfim...:)

A torneira vai ter uma utilidade. Não sou capaz de a mandar fora, coitadinha. A idade deu-lhes uns reflexos lindos na pele.

Também tenho em casa um oratório antiquíssimo (cuja santa, ou santo, fugiu)com o recheio de um guilherme, uma torquez, um cronómetro e um alfinete de chapéu com cabeça de gato. Tudo oitocentista a que resolvi dar dignidade histórica.

Havias de ver as personagens que tenho dentro do baú de viagem que mora no sotão.

Porque coños há-de a história ser exclusivamente antropocêntrica?

Obrigada, Alien, e um abraço!

Lola disse...

Lizzie,

Belíssimo este monólogo da torneira.

Entre o nostalgico e o irreverente.

Sempre me fascinaram os velhos baús cheios de pedaços de vida.

E os perfumes agarrados ás roupas que me trazem memórias das pessoas que as usaram.

Beijos enormes

o Reverso disse...

Senhora Torneira,

Que tenhais pelo menos, nesta fase da vossa vida, uma reforma confortável.
E deixai-me que vos diga. nem a imaginação mais fértil ousaria alguma vez descrever os sentimentos e pensamentos que se cruzam nesse vosso, talvez um pouco já cansado, mas ainda muito lúcido, nesse vosso cérebro.


ps- espero que não tenhais esquecido o pagamento atempado do IRS.

Arábica disse...

Parece que as torneiras, muito mais inteligentes que nós, têm uma linguagem universal que todas as águas, quentes ou frias e até as das mais humildes pensões e casebres, podem ler.

Eu na última semana apaixonei-me por um "contador de revoluções a vapor" de que desconhecia por completo a existência... :))

Diz-me ser parente ainda que afastado da gasta torneira e ter-lhe passado pele esófago agora de portas fechadas, os maiores perigos liquidos e pré aquecidos...

:) (estação elevatória de águas a vapor dos Barbadinhos)

Besos