




...e bom fim de semana...







Tais pautas eram consideradas, na altura, uns meros exercícios tão importantes como os rabiscos que hoje fazemos enquanto falamos ao telefone. Por exemplo.
Como era muito crente, achou que tinha sido Deus que lhe tinha guiado o olhar e induzido o fascínio imediato por aquela música tão simples: escalas baseadas em tempos e modos de danças.
O logista ofereceu-lhas e Pablo levou o seu pedaço de madeira mais precioso.
Viria a descobrir que aquele pedaço de arbusto abandonado continha em si a essência de todas as árvores.
À medida que ia estudando as suites, ia vendo a complexidade misteriosa, a que sempre chamou divina, dos veios.
Como um carpinteiro ou marceneiro, sabia que um corte, a aplicação de um prego, a geometria de um golpe de formão ou a subtileza curva de uma goiva, a pressão numa plaina ou num guilherme, dependiam deles.
Passou dias à volta das notas, como general em pensamento estratégico sobre um mapa.
E confirmou o que já sabia, remotamente, desde o tempo de aprendiz:
a mão esquerda, a que toca as cordas, é mera técnica.
É na direita, a que maneja o arco, que está a Arte. A interpretação pessoal está na forma como as notas são ou não prolongadas, aliviadas ou pressionadas. É no arco que está a entoação da voz. O trabalho do veio.
Descobriu que o germânico Bach, naquelas suites, não era só matemática conceptual, ao alcance de qualquer aprendiz.
Aspirou ser mestre para saber dar expressão àquela série de notas ascendentes e descendentes, para lhes encontrar a dinâmica e para lhes dar expressão. Com suavidade, flexibilidade e rigor.
Ao contrário dos seus mestres, Pablo rejeitava a rigidez interpretativa tão em moda nos finais do séc. XIX. Gostava de se considerar um clássico. Mas com modernidade nas mãos.
E tinha aprendido o valor da comunicação versátil do violoncelo, quando acompanhou, em emprego precário, os filmes mudos, num cinema de Barcelona:
notas agudas para os gritos das donzelas vitimas e desmaiadas. Notas graves, em longo vibrato, para cenas de suspense.
Diz-se, talvez seja lenda, que a infeliz rainha Vitória Eugénia,
consorte de Afonso XIII de Espanha, mitigava as saudades da sua, enfim…pouco barulhenta Inglaterra, ao ouvi-lo interpretar adágios de Saint-Saens, Respigli e Tchaikovky .
E que a atmosfera do violoncelo trabalhado de Pablo, lhe fazia lembrar a calma das oficinas dos marceneiros, que costumava visitar, na sua infância.
Imaginava o som de martelos e maços em cadências de metrónomos.
Pablo já artífice para uns, mestre e mestríssimo para outros, criou uma rotina diária como pessoa metódica que sempre foi: passeava de manhã, admirava a manifestação do seu Deus no mar e nas árvores, ia para casa, tocava piano, e a seguir rezava com as suites de Bach, filho maior da divindade.
Deus, a natureza e a música, foram sempre a sua Santíssima Trindade.
Considerou-se aprendiz intensivo das Suites durante doze anos. Só ao fim desse tempo, as tocou em público.
E só depois de sentir o seu trabalho assim exposto, quase como se fosse uma devassidão ao seu interior mais profundo, concordou em gravar delas um disco. Em 1940.
Tocou Bach, todos os dias. Mesmo só para si, como em intimidade mais recatada ou oração, quase até ao fim da vida. Em 1973. Longe de Espanha.
longe de qualquer espécie de ditadura.
As suites, foram-lhe consolo para os desgostos.