segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Vem este a propósito de mesmo agora ter desligado o telefone após conversa castelhana em que falei de um actor esquecido, ou mal lembrado, e de uma mulher a ele incognitamente ligada, e de ter estado há pouco tempo numa casa onde não ia à trinta e muitos anos, ou quarenta, ficando eu na dúvida, por instantes, se a tal casa encolheu ou se fui eu que estiquei.
Ora cá vai a

Parábola dos Constantes ou de como Raimunda voltou à sala de cinema e eu à Casa do Corredor Infinito.


Em nome da veracidade histórica, devo dizer que, supostamente, apenas o princípio e o fim desta prosa são verdadeiros pelo que não me resta outro remédio senão imaginar o meio. Que me perdoem mas todo o ser tem direito a recheio entre a data do seu nascimento e a da sua morte. Que me desculpe o poeta que queria todos os seus dias só para ele.

Raimunda nasceu em imberbe séc.XX, no México, em vila mineira que só vem no mapa por pura generosidade de cartógrafo e por em tempos idos ter prata em relação inversamente proporcional às viúvas e aos orfãos.


Em grande festa e com expectativa de fugir dos dias monótonos, tal vila era visitada por um cinema ambulante, com pianista de instrumento desafinado e tradutor incluídos, que ainda era cedo,ali, para se ouvir som da bobine.

Raimunda aí se apaixonou perdidamente por Tom Mix,


pai mudo de todos os futuros cowboys cinematográficos sonoros, e que, durante a sua existência sempre tentou meter a personagem na sua própria vida, dando, por exemplo, nomes aos carros como dava, nos seus filmes, aos cavalos, também eles heróis protagonistas de aventuras.


Raimunda, como muitas outras, largou o México para desembarcar em Madrid, que, pelo menos, ficava na Europa e tinha língua comum embora mais áspera e menos enrolada na dicção. Provavelmente trazia o seu mundo numa mala de tamanho reduzido e um vaso com cacto espinhoso na mão.

Imagino Raimunda a conseguir emprego doméstico honesto, em casa de fidalgo doutor ou engenheiro, vagamente excêntrico, como usavam, e usam, ser os citadinos da referida metrópole.

Talvez fosse tão bonita quanto feia. Talvez se destacasse pelos negros e brilhantes cabelos tratados a máscara semanal de petróleo, sumo de limão e gema de ovo como era uso antes do Pantene pró V Cuidado Clássico, e pelo olhar melancólico e sonhador de quem tem cantos mariachis gravados na saudade,


agravada pela morte do cacto, vitima da invernia madrilena e da gasosa La Casera com que o filho mais novo do doutor ou engenheiro, dado à química, o regava à espera de o ver carbonicamente inchar.

Fosse como fosse, parece-me a mim que lhe ficou bem marido rotineiro encontrado na missa dominical, embora de compleição e aventura contrárias às de Tom Mix, dono de loja modesta de ferragens.


Vou-lhe chamar José que é nome ancestralmente estável e tolerante.

De facto, José nunca usou outras calças senão as de terylene com cós nunca mais de um centímetro abaixo da linha do diafragma.
Nunca vendeu parafusos, porcas, cavilhas, torneiras de meia polegada ou três quartos, creolina e tinta acetinada, massa vidraceira e chaves de grifo, dobradiças de balanço e meio balanço, sem o mesmo modelo de bata de sarja cinzenta.

Também me parece que sempre tolerou a malagueta com que Raimunda apimentava, por distracção genética, o gaspacho, bem como os rombos nas lâminas de barbear, provocados pelo escanhoar frequente das pernas e a caveira pendurada ,conjuntamente com cruxifico e Santa Guadalupe, no fio de ouro que trazia ao pescoço. Herança de uma das suas avós.

Como me disseram que Raimunda, lá para o fim da história, apareceu viúva, não me custa acreditar que José perdeu o animo de viver quando partiu uma perna em visita indignada ao AKI, sucumbindo definitivamente quando uma estante lhe aterrou na cabeça. Em pleno IKEA.


Jazia o idoso José com um irónico saco de parafusos, para a montagem do móvel, aos pés.

Mas durante a sua vida, Raimunda, foi razoavelmente feliz.

Dona de casa, nunca lhe faltou sustento nem abrigo.
Nem dinheiro para a sombra Max Factor nas pálpebras, nem para o creme hidratante Lander, nem para o perfume Túlipa Negra, com finalização lavanda, quando não alfazema.

Teve tempo para fazer várias colchas de renda para a cama folheada de mogno da mobília vagamente estilo Luís XV e remotamente Império (os pés em vez de patas de leão tinham efígies de touros Miura), enquanto ouvia os folhetins românticos na telefonia.



Tinha, ainda, disponibilidade mental para atribuir às vozes masculinas mais românticas, a figura física de Tom Mix à excepção de quando tais personagens tombavam, por desgosto agravado e passivo, em sanatórios para tuberculosos ou doidos. Raimunda gostava de homens fortes com sentimentos mais passageiros que definitivos.

Imaginativa, quando, ao domingo, se sentava no Seat 600 de José, para primaveril ou estival pic nic no Paseo de Recoletos ou na Casa de Campo, sentia o cavalgar indómito e solidário dos cavalos do Cowboy.



E neste campo fico-me por aqui que não é bonito entrar nas fantasias mais privadas de ninguém mesmo quando se lhe inventa a vida.



Já muito entrada nos anos, Raimunda tornou-se espectadora assídua do programa de Doña Carmen Sevilla na televisão. Está nele a actriz e cantora tão à vontade e coloquial, que todas as histórias dos bastidores do cinema que desfia, nos parecem contadas ao ouvido, ali, no sofá que partilha connosco.


E Doña Carmen anunciou, um dia, que em determinado cinema de Madrid para tal vocacionado, se iria mostrar antologia fílmica de Tom Mix.

Raimunda, já viúva e muito muito idosa, tomou-se de decisão, apanhou o autocarro e foi sozinha ao cinema.


Viu filmes.

No fim da sessão, um arrumador viu que Raimunda não se levantou do seu lugar. Dirigiu-se-lhe para lhe saber do estado de saúde ou de qualquer outro incómodo.

Raimunda apresentou ar indignado, furibundo. Declarou que enquanto não apresentassem o verdadeiro Tom Mix, o seu, não se levantaria.

Muito lhe explicou o jovem arrumador que tinha visto o Tom Mix e que outro não havia. Muito ela negou, com certeza e birra.

Impotente, o dito arrumador chamou a directora das antologias que, com feminino, filial e paciente trato, convidou Raimunda para a próxima leva de filmes, oferecendo-lhe postais vintage do actor e outra documentação, sandes e bebida a gosto.


Passadas umas horas, já a noite era madura, Raimunda vencida mas não convencida, lá foi, com segurança de acompanhamento, para casa.

Em conversa teimosa, a anciã contou o princípio desta história à directora. Com ar vagamente filosófico, a referida directora contou-me o fim.

Ia Raimunda triste porque talvez não tivesse percebido, nem a tal coisa é obrigada, que a memória distante é coisa ainda um pouco menos absolutamente certa e verdadeira que a vida e que, um simples e mítico corredor de infãncia ou a imagem de um actor, talvez não passem de uma chave que acabou por perder a porta, algures, no emaranhado transitório do tempo.


12 comentários:

Lizzie disse...

Curiosamente e com um oceano de distância, "Raimunda" talvez tenha servido de inspiração a Eduardo Galleano que, trocando-lhe o sexo e pondo acento tónico num cavalo, escreveu um maravilhoso conto sintético de 8 linhas, capacidade de súmula que, eu, além de não ser escritora, estou a universos de ter.Como se nota.

Frioleiras disse...

interessantes... como sp, as tuas histórias..................

não vem nada a propósito... mas lembro-me.. tão bem.. do Tulipa Negra..

bj

Lizzie disse...

Frioleiras:

por acaso vem a propósito, mas se não viesse, não fazia mal nenhum:)

De facto, o Tulipa Negra, era uma espécie de emblema espanhol.

Tinha uma familiar que frequentava a tal casa do corredor supostamente infinito que o usava por pura birra.
E quando a neura aumentava, olha, punha uma rosa vermelha no cabelo e ia passear para a Praça de Londres. Toda afoita na hispanidade. Só salero. Uma festa:))
Tenho um frasco antigo. Um design muito datado, mas engraçado.

Obrigada e beijinhos

Arábica disse...

Lizzie,

a tua imensa criatividade não se deixa fechar em corredores -por mais compridos que sejam- e livre, resulta sem fuga possível, nestas pequenas fitas cómico-dramáticas, possivelmente reais, que nos vais construindo em palavras.

Lembro-me do Túlipa Negra, mas foi o Madeiras do Oriente que provei.
Sabe-se lá p+orquê, um dia meti o frasco à boca. Valeu-me três colheres de azeite de seguida engolidas para expurgo das madeiras do meu organismo...

Beijos e boa semana para ti.

Alien8 disse...

Lizzie,

O que eu andei a perder durante seis dias!

Verifico que te dedicas com afinco à nobre arte da publicidade. A Pantene agradece, e mais as outras marcas e estilos citados :)))

A Raimunda... bem podes dizer que até a inventaste. Naturalmente, os corredores é que esticam, isso posso desde já garantir-te.

Até mesmo o Tom Mix estica um bocado, como o John Wayne em cima dos cavalos pequenos...

Narrativa mui bem conseguida & ilustrada, digna de antologia a publicar em breve.

O parágrafo acima é para ser lido noutro tom. Talvez em lá maior.

A mim, o Tom Mix trouxe-me à memória o Tim McCoy dos "31 partes" (muito bem lembrado n' "O que diz Molero") e Fanfan La Tulipe, para o vosso Tulipa Negra.

Quanto às Madeiras do Oriente, talvez um dia me lembre de contar o uso que certa pessoa deu a um frasco desse interessante perfume...

Brilhante, Lizzie, brilhante.

Um abraço.

Lizzie disse...

Arábica:

Beber perfume?
Credo!
A única coisa aparentada que fui obrigada a comer, recentemente, foi uma salada com pétalas frescas de rosa com fatias laminadas de bolbo de jacinto.
Ele há suplícios que a boa educação impôe.

Levei um pontapé debaixo da mesa quando lhe chamei, embora em sussurro, "Salada Cemitério".

Quando era miúda, se bem me lembro, tomava banho de perfume. Às vezes de vários ao mesmo tempo. Em vez de azeite, saía raspanete e banheira.

Ainda hoje, adoro perfumes e design de frascos.

Não terão existido, no recheio, muitas Raimundas? Mais coisa menos coisa?

Besos e boa semana

Lizzie disse...

Alien:

Lá maior ou Ré menor com flutuação de oitavas para ter mais movimento:))

A Raimunda existiu mesmo, sim senhor. Raimunda é que não seria, provavelmente, o seu nome.Acontece é que as três mulheres que conheço com tal nomenclatura são, por coincidência, tenazes e teimosas:))

E continuo a achar que o corredor da tal casa, palco em vários posts e pista de triciclo, encolheu. Fenómeno arquitectónico, desta vez que me perdoe o Einstein:))

Pois claro que vi vários do Tim McCoy, então não?

E por acaso, andam lá por casa dvds do Tom Mix. Não sabe ele a utilidade que teve nos arroubos performativos.

Já o corredor tinha encolhido tudo o que tinha a encolher e eu esticado tudo o que tinha a esticar, e não imaginas o gozo que nos deu mudar a música dos filmes. Só para brincar e como experiência:
a expressão narrativa muda completamente.
Enfim, por via das tosses, a patente teve que ser registada.
Como as marcas:))

Gostei muito do "Molero". Só podia gostar.

Obrigada e abraço x2 e boa semana, coño.

Emma Larbos disse...

Deve mesmo ter encolhido, o corredor, porque a mim não me pareceu muito grande, embora povoado por vários juliões e alices, de casacos macios e olhos meigos.
É por isso que não gosto nada de revisitar os sítios da minha infância. São sempre indignos da minha memória e prefiro guardá-los tal como eram. Tenho todo um mundo de cidades e vilas e campos na memória que hoje só poderiam voltar à luz com trabalho arqueológico.
Há uns dois ou três anos passei naquele que foi, na minha infância, o monte da minha avó. Doeu-me tanto que tive vontade de sair do carro para ir bater aos actuais donos e chamar-lhes ladrões. Havia postes de electricidade por todo o lado. Tinham arrasado o pinhal e arrancado a vinha, transformada em depósito de máquinas agrícolas (a minha avó ainda tinha guardada no lagar uma charrua), tinham construído um anexo pegado à casa com portas de alumínio e no lugar da grande figueira de figos lampos que nos recebia à chegada (de carro puxado a cavalo, porque não havia estrada asfaltada) como uma árvore da vida à entrada do paraíso, tinham um barracão de chapas de lusalite. Percebi que estou mesmo a ficar avançada na idade e que enterrei definitivamente uma época que os meus filhos identificam com o neolítico.

Arábica disse...

Boto aqui porque no proximo é descabido.
Também adoro perfumes!
E também por gostar, coleccionei frascos e mais frascos, com um qualquer design que me fazia brilhar os olhos. :) Na primeira mudança de casa, desfiz-me de quase todos e passados 6 meses, arrependi-me. :))
Não sei o que me deu para beber o perfume. Reza a história, que a minha mãe -que detestava aquele perfume, mas o guardava porque lhe tinha sido oferecido pelo irmão em tamanho xxl- de repente deu conta do cheiro denso que tomava conta da sua casa. Descobriu-me de olhos desfovados e camisa de dormir vaporosa cor de rosa, quem sabe já ébria, com o frasco na mão, sentada sobre a cama.
Também não te sei explicar porque é que um dia roí aquele vidrinho com que nos punham os pingos no nariz... :))
Seria curiosidade? Loucura? Demência infantil? Não sei.
Há decerto muitas Raimundas cruzando-se com todas as outras Raimundas que possívelmente também existirão. Terão imaginação tão fecunda que a realidade ficará sempre aquém? Baterão o pé até quando?

Essa salada cemitério ;)))), pelo que vês, teria sido canja para mim :)

Ah! entretanto, convertida ao chá verde e às suas reconhecidas propriedades, julguei que o meu nick estivesse ultrapassado. Lembrei-me contudo a tempo, que um dos meus actuais petiscos -pastéis- não conseguiriam ser "cozinhados" sem este maravilhoso condimento. :))

Beijos

Beijos

Lizzie disse...

Arábica:

pois que isso é mais coisa de psicanalista. Roer vidro magoa. A tendência é fugir do que dói. É assim que crianças, bípedes e quadrúpedes,desenvolvem a defesa e a autopreservação.
Não faço ideia do porquê dessas tuas experiências. Seria para chamar a atenção?

Sorte: a maior parte dos perfumes que vão parar lá a casa são oferta. A colecção de frascos já tem anos e anos e não foi iniciada por mim. Só continuada.

Chá verde também gosto mas a seguir a outros. Depende da hora do dia e do que estou a fazer. No inverno, ao entardecer, adoro a calma obrigatória do chá de jasmim. Como um ritual de pausa.

E Raimundas aos montes. Sobretudo nas cidades, ou educadas nas cidades. Nem sequer têm idade definida. Até certo ponto, acho que são filhas de vários meio-termo.

Boa semana, besos.

Arábica disse...

Hoje, com mais de metro e meio, olhando para trás, com alguma objectividade penso que seria para chamar a atenção. Mas não sei. Espero que tivesse sido. :)) Era pequena demais para medir o perigo, talvez 3 anos. Por acaso não reza a história de dedos nas fichas electricas nem outras atrocidades. Não, espera: comia um pacotinho inteiro de belinhas (aquelas argolas de chocolate, lembras-te?) ao lanche, se me deixassem!!!!:))

Não sei se será uma semana descansada. 4ª feira o saberei.
Mas hoje deu tempo e vim. Detesto iniciar conversas perdidas no eter:)
Vou para o seguinte.

Anónimo disse...

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