quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Porque já algum tempo não a via, porque dei com o Stabat Mater de Pergolesi, no blogue da Frioleiras, porque ontem à noite, na boa tradição espanhola, abri presentes, sendo o dela inesperado e atento à memória que conserva de mim, pelo respeito e afecto que lhe guardo, aqui vos vou falar, tentando não sair do que já assumiu em público

Da mulher que transformou em tudo as grandes quantidades de nada


Agora, a brincar, tratamo-la pelo sugestivo nome de Maricruz, que o verdadeiro dela, é bastante mais laico, operático, sensual, leve e sem tanta carga de sacrifício.

Nasceu de um cruzamento de famílias da mais pura aristocracia espanhola mas como todos os realmente mais antigos, nunca fez disso alarde ou aproveitamento.

Fez-se bailarina de precoce e sobejante talento, até ter sido seduzida pela explosão da Movida em Madrid que, como a muitos outros, haveria de quase a matar.

Deslumbrada pela liberdade, após anos de clausura numa mentalidade fechada e cega ao resto do mundo, como era a Espanha de Franco, tomou-se de amores vadios, mais por obrigação do que por desejo ou impulso amoroso. Chama-lhe agora a “ditadura da fornicação”.

As noites, as drogas, os delírios desordenaram-lhe a disciplina a que a dança obriga.



Nos ensaios, faltavam-lhe elasticidade, coordenação, memória, expressão convincente.

Apesar de tudo, nada que lhe conseguia tirar o espírito de observação de pormenores, a inteligência, a cultura sólida nas Artes, o senso de humor imaginativo.

Uns anos mais velha que eu e de patente mais alta, não me esqueço do respeito quase militar que lhe tinha, tão habitual no mundo da dança, nem o que sempre lhe hei-de agradecer: a critica que me fez, frente ao espelho enquanto se maquilhava, em relação a uma das minhas facetas, enfim, artísticas.

Ainda hoje, quando ponho em prática tal aspecto me lembro dessa chamada de atenção para evitar repetir os erros.
Ficou como uma voz presente no fluir das ideias.

Foi despedida e desapareceu de palcos e estúdios.

Vimo-la uma vez, na rua. Parecia uma patética boneca apalhaçada de corda, às voltas sem sentido, de sorriso estático, olhos parados e sem focagem certa. Morta na decisão e na vontade. Não nos viu. Fingimos não a ter visto.

Passados anos fomos a Toledo ouvir o Stabat Mater de Pergolesi, na portentosa Catedral.

Por visão periférica de defesa, tão estrategicamente desenvolvida nas mulheres, outra e eu sentimos um olhar fixo em nós.

Era ela. Quase irreconhecível. Sem maquilhagem, cabelo sem corte definido no desenho, com boas cores, face mais arredondada sem vestígio de esqueleto, sorriso aberto, discretamente vestida, cordão com crucifixo ao pescoço acompanhada por outras da mesma feição.
Só passados alguns segundos o nosso cérebro atordoado chegou à conclusão óbvia: deviam ser freiras sem hábito.

No fim levantou-se, soltou pressa para distribuir abraços, não sem um ou outro prosaico mui cabrón, e pecador hijaputa que, como é sabido, em Espanha, nem as mais altas espiritualidades conseguem dobrar a língua terrena.

Contou-nos depois, com uma calma e docilidade que se sentiam genuínas, que um dia tinha entrado na Igreja de Santa Maria del Mar, em Barcelona,

se sentou sem reza, e que sentiu uma luz de paz, vinda das janelas em ogiva, entrar-lhe pela alma dentro. Um dilúvio de alívio e consolo. Uma leveza como se não existisse.

Que pensou ser tal sensação de arroubo místico consequência do gin tónico ingerido, dos múltiplos porros (charros) fumados, para além de alguma cocaína a puxar para a clarividência.
Que foi dormir e que quando entrou numa das habituais festas, achou tudo vazio e estranho de sentido, utilidade ou satisfação.

Que se viu como imagem num catálogo de imensas e variadas solidões.


Que sentiu uma urgência premente de voltar à Igreja.
Que percebeu a sua pertença a uma ordem estável e intemporal, a um princípio de superior grandeza, muito para além dos caprichos volúveis dos tempos e dos espaços, uma espécie de fio condutor e comum a todas as coisas,


que se sentia lavada dos acessórios excedentes do mundo, que foi fazer um retiro conventual para espíritos confusos e se sentiu bem naquele espaço simples partilhado,

dividido sem necessidade de encher o encontro de palavras desperdiçadas.


E que não, não eram freiras carregadas de obediência austera, não viviam fora da vida nem sem riso.

E durante a nossa conversa, a gargalhada foi farta quando brincámos ao tipo de santas e santos que gostaríamos de ser, quando a imaginámos no andor de procissão em honra da nova canonizada de Espanha, quando metemos cunha antecipada e precavida para a nossa entrada no Paraíso, contávamos com ela para apresentar as nossas virtudes e suavizar os nossos mundanos pecados





e outras heresias várias que nos vieram à cabeça.


A sua Irmandade dedica-se, por vocação e não por alimento, castigo ou suplício próprio ao serviço social dos grupos marginais.

Escolheu ela a prostituição. Mais a feminina que a masculina porque para esta há frades próprios com mais conhecimento de causa.




Não lhes impõe a fé. Não acredita em pacotes de catecismos.

Acha a fé não ser descoberta imposta e que toda a gente tem um Deus à sua medida e acredita no que mais lhe convém, mas aconselha, ouve confissões em forma de desabafo terapêutico e tenta salvar as crianças introduzidas naquele meio pelas próprias mães e pais afectos ao mercado.

Foi assim que já a vimos, livre de qualquer linha ideológica encartada, em debate televisivo. Conversa crua e desmistificada como só em Espanha consegue ser.


Torna-se Maricruz incómoda para a esquerda quando diz que algumas o são de livre vontade, gosto, orgulho, vocação e defende a reabertura de sítios próprios e protegidos para o comércio em vez das andanças aleatórias pelas ruas, tantas vezes manchadas de sangue e tortura, como a calle Montera


frequentada por clientes, a maior parte estrangeiros de poucos recursos ou indígenas marginais ou sem abrigo, onde se pratica sexo em plena via pública, sem reserva nem higiene.

Fiquei a saber, depois, que cada vez se fala mais português ali, cada vez mais chegam carrinhas Nissan Vanette e Ford Transit carregadas de operários sazonais da construção e cada vez mais prestadoras de serviço de língua oficial portuguesa disputam, violentamente, o espaço na calçada.
E quebra ela a direita ao responsabilizar os homens, sempre neste campo considerados inimputáveis pela sua natureza naturalmente activa e pouco racional, pela procura, para além da hipocrisia purificadora e irrealista dos costumes.


Voltei a encontrá-la na semana passada e foi jantar lá a casa.

Conversou de coisas sérias, algumas pouco entendíveis para espíritos agnósticos como o meu , riu, brincou,bebeu aquele "nada anémico sangue de Cristo” de Peñarubia da boa colheita de 2002, olhou para fotografias em que figura, com a vaga distância de quem reconhece um antepassado distante.

Teve a Graça rara de dividir a vida em duas, de assistir à sua própria ressurreição

Antes de sair, era hora de ir de missão, vestiu um casaco coçado nas partes mais roçadas e da pasta foi tirando caixas de preservativos, seringas, pastilhas de desinfectantes intimos, embrulhos toscos com os nossos presentes para a Noite de Reis, até encontrar um cd de edição limitada, nem mais nem menos que o Stabat Mater de Pergolesi cantado por umas religiosas húngaras, que fez questão de oferecer.

Ao entrar para o elevador cantámos-lhe em coro a célebre canção kitsch-trágico-mórbida

Esperame en el cielo, corazón
Sí es qué te vas primero…

Ao que respondeu com uma bênção em versão balética.

Durante momentos, a casa pareceu ter uma luz mais calma, mais repousada, como costumam ter as casas atravessadas por quem tem o dom de ser naturalmente feliz.


12 comentários:

Frioleiras disse...

interessante............

a Paz é o almejar da felicidade...e, ptt ela é feliz........................

Lizzie disse...

Frioleiras:

exactamente isso!
É assim a modos de ver para crer como S.Tomé.

É exactamente aquela paz,aquela calma, que impressiona. Não é deste mundo:))

Além disso, é divertida e auto irónica. Nada lamechas nem impositiva nem fundamentalista e chata como alguns ex fumadores,p ex., que moem o juízo a toda a gente.
Aliás, se fosse, duvido que fizesse aquele trabalho. Cá para mim é preciso ter alguma coisa de santa para o fazer.Com tanta naturalidade, sem o ego inchado pela auto capacidade de sacrifício.

Só falando com ela se sente o que não se consegue explicar por palavras.

Arábica disse...

Well, well, well.
Já uma vez te disse que nunca fui de me apaixonar por actores, que nunca fui de me maravilhar com os olhares que cruzam ou irrompem em grande ecrãn parecendo bater no nosso. Nunca delirei por uma estrela pop. Ou de qualquer outra índole. Contudo, as histórias que esses corpos descrevem no imaginário desse mesmo grande ecrãn, podem ficar gravadas na minha memória para lá do usual destes tempos, usar e deitar fora.
Há realmente personagens que nos ficam. Numa mera óptica do utilizador -visita do teu blog- poderia dizer-te que as palavras e a graça inerente ao conjunto das palavras escolhidas para nos contares uma história tem esse condão. Contudo, prefiro sair dessa óptica e dizer-te apenas, que tal como Consuelo um dia entrou, Maricruz, sem peso e levitada na luz, aqui chegou.
E gostei muito de a conhecer. :)

Um beijo para ti, estrangeira zizzie. :))

Emma Larbos disse...

Ai Lizzie, que linda história!

Diz-lhe que tens uma amiga que sabe umas coisas de santos e que lhe escreverá a vida se lhe sobreviver!

Agora a sério, assim se prova que há mais sob o céu do que apenas o que se vê, mesmo sendo-se agnóstico.

o Reverso disse...

Senhora,

ando calmo.
julgo-me feliz.
no entanto a minha casa está escura, mas isso tem a ver com este tempo.

e não arrisco entrar em igreja à procura de mais luz, quando o faço é por motivos diferentes:
casamentos, baptizados, concertos e, no verão, para fugir do calor das ruas e a acolher-me na frescura de claustros.

mas, se há lugares onde beatíficamente me recolho é neste vosso santuário.

e sempre o farei quando me passear por ruas da blogosfera.

e, porque as palavras que aqui bebo são certamente melhores que as de santo antónio aos peixinhos,beijo, santa lizzie, a fímbria de vosso manto.

Alien8 disse...

Lizzie,

De volta e com uma Maricruz quase típica da antiga e autêntica aristocracia, digo eu. No percurso, talvez não ou não totalmente na personalidade. Seja como for, uma história de vida (diria mesmo de vidas) muito justamente contada, e bem, como é hábito por estas bandas. Confesso que ao ver a imagem daquela igreja até eu... bem, não exageremos :)

Um abraço, coño!

Lizzie disse...

Arábica:

apesar de ter a memória a descongelar por via dos -13 e do nevão de ontem em Madrid, sempre te digo que também nunca fui de ais face a actores e muito menos face a estrelas pop. Aqui onde me lês, sou uma clássica.:)

Mas sou capaz, sim senhora,de ficar em contemplação de olhares dentro ou fora de ecrãs. Separam-se os campos.

Se eu acreditasse nele, talvez visse Deus nos olhos da Maricruz. E se calhar até acredito que o tem lá já que para ela existe, ou melhor, é parte integrante dela.
E se calhar até tenho inveja de não o ter já que acredito em poucas coisas.

Por acaso, ironia do destino, Maricruz até acha que tenho sem saber. Como muitas outras pessoas.

E até imagino, a sorrir, que a Consuelo anda a distribuir palavrão e tapas. Mais cañas, chocolates e churros pelo Paraíso.
Desde que lá chegou, aquilo deve ter mais animação e provavelmente desde os Pios até Leão X, passando por outros,já muita gente levou uma carga de pancada.

Enfim, é por estas e por outras, embora conheça pessoas em Portugal muitíssimo interessantes, que sou, também, estrangeira.

E ainda não calhou falar do vizinho do andar de baixo...por exemplo.

"ay Maricruz, Maricruz
maravilla de mujer"

E fica-te com este refrão de flamenco:))

Besos

Lizzie disse...

Legitimamente e com propriedade, Sábia Emma:

Não preciso de lhe dizer porque já lhe disse.Desculpa, mas cometi o pecado da antecipação. Veio a talhe de foice: haverá lá coisa melhor que ter uma biografia escrita com objectividade, enquadramento histórico, sem erros ortográficos e de pontuação?

E pois, Ver o que há debaixo do céu, não tem nada com o ser-se ou não agnóstico, ateu, crente. Por detrás de mitos ou aparências, ideias pré concebidas ou aberturas, há sempre um universo mais ou menos escondido.

E lá como cá, conheço pessoas ligadas à religião que distinguem perfeitamente entre a brincadeira e a falta de respeito. Em todos os casos, acho eu, é uma distinção fundamental.

Lizzie disse...

Ai Estimado,

não me chame santa que ainda não morri nem sei se Maricruz vai botar cunha para a minha canonização. Convenhamos que não deve ser mau ser santa adjunta da santa principal. Deve ser bom ter um staff de anjos a servir-nos sem ter a obrigação de milagrar de vez enquando. Que fique tal maçada para as santas, e santos, principais.

Também gosto de ir a igrejas mas não para casamentos baptizados e funerais.
Aliás nunca seria estilista de vestidos de noiva convencionais: a brancura quase nunca corresponde, felizmente, à exigida virtude.
Nem percebo porque é que, segundo julgo saber,de há algum tempo a esta parte, as pessoas contraem dívidas até sufocarem apenas por um dia embora não tenha nada a ver com isso, evidentemente.

E recolha-se aqui sempre que quiser que sempre terá o meu ensaio de benção e santa guarda.

Os meus respeitos

Lizzie disse...

Alien:

diria que há vários tipos de aristocracia, quase tantos como grupos de plebeus.
Talvez dependa, também, da forma como a sociedade olha para ela, aristocracia.
Ou seja, Maricruz, foi num país monárquico como Espanha, despedida sem apelo nem agravo independentemente das famílias.
Noutros "reinos", até poderia deitar fogo ao estúdio e ficaria lá só com o agitar do nome "antigo" ou de "aristocracia" recente.Ou a família mandaria o exército de cavalaria.

Quanto à Igreja de Santa Maria del Mar, pois que até percebo a aura mística sobretudo em certas horas do dia quando os feixes de luz se cruzam. E o som.
Já ouvi lá um concerto de Canto Gregoriano (autêntico e não com as falsificações que andam para aí) em que os cantores, frades especialistas na matéria, estavam posicionados em sítios estratégicos.
Os reflexos das vozes nas paredes, a ida e volta, ai Alien, deixam qualquer alma tonta mesmo sem ressaca de drogas, alcool ou inspiração divina, coño!:))

Un abrazo siempre, por supuesto, coño, pués claro! A lo mejor dos!

Arábica disse...

Muito rápido porque tenho o almoço ao lume, sim, o almoço.
Na passagem do ano imaginei a Consuelo a piscar o olho sorrateiramente a todos os estrangeiros que ainda recentes no paraíso se abeiravam do tabuleiro das gambas;); por isso é com a maior facilidade que hoje a posso -a consigo- até visualizar a distribuir chocolates quentes e churros... :)

E estou mesmo a desfalecer de fome, coño! Sem Consuelo que me valha, vou eu mesma tratar deste sério problema...

E Deus Salvou a Rainha??? :)

Besos :)

Lizzie disse...

É lá a Rainha pessoa de se congelar...

e não sei se no Paraíso existem variações de temperatura ou se cada um tem a paisagem permanente que melhor lhe assenta nos póros da pele.

Se calhar o Chefe, do Paraíso,de vez enquando lembra-se de chocolate e churros e pinta os cenários de forma a criar deles fome e até os anjos ganham turbos nas asas.

Por acaso ninguém foi ao sítio Consuelo, nesta quadra, para não lhe sentir a ausência.

Vou botar imagem de Domingo à tarde, numa zona do paraíso chamada Nueva Madrid, a que tem a luz da Paz. Dizem que é o que dizem os mortos quando perdem o mutismo.:)

Eu cá não sei porque ou sou surda ou nunca ouvi nenhum.

Então vê lá se não apetece mesmo lareira e churrada:))