Dos galos residentes na filigrana dos olhos

Saía-se de manhã, com a sensação de mero átomo a circular na capital do mundo, voltava-se à noite, com consciência de elásticos feridos no interior do corpo e com conhecimento da alma própria, cada vez mais escancarada.
Era e continua a ser, uma casa vitoriana, de tijolo vermelho. Cada quarto com duas camas e uma casa de banho acoplada. Nas traseiras, um jardim e uma linha férrea.

Fomos enviados para lá, em meio termo, entre o susto e o fascínio. E com uma certa arrogância de impermeabilidade ao destino que só a juventude dá.
Olhou para nós. Éramos três na fornada daquela manhã.
Pôs as mãos cintura e comentou-nos, maneando a cabeça assente na espécie de bóia que era o duplo queixo.
Então ali estávamos:


E, finalmente eu, parecida com os gatos, traiçoeiros e fugitivos como filhos do Demónio que são, que andam escondidos pelas noites e sombras dos bosques, como almas sem poiso certo e com olhos de ver à noite. Muitas e tantas, as almas que tomaram corpo felino, depois de Jesus lhes ter descoberto a perfídia e a luxúria.

Em jeito de parêntesis, digo que Mamma Sam´s, alcunha por que era conhecida, botava ciclicamente estes e outros discursos, mais para si do que para mais alguém, depois do jantar, sentada numa cadeira de baloiço enquanto bebia o seu whiskey e fumava os seus mata-ratos, com aquele semblante entre o pragmático e o resignado que é próprio dos que muito sofreram calados e arranjam mil e uma histórias exteriores para desabafarem o que não querem dizer.


Mamma tinha atitudes resolutas de espantosa universalidade..
Fiquem sabendo que o refeitório, além de um mapa do mundo terrestre, tinha uma parede cheia de relógios, onde se marcavam as horas das capitais de muitos países. Depois de lhe ter explicado, lembro-me, de manhã, onde ficava Portugal na vastidão do tal mapa, à noite do mesmo dia, com surpresa, inaugurei um novo relógio, tipo padrão nos descobrimentos, por baixo de uma placa onde se lia
Mas, mais ou menos, findo este parêntesis, Mamma instalou-me num quarto já ocupado por uma alemã com aspecto larvar de inverno, a fazer lembrar as almas das senhoras brancas que, assassinadas por paixões inesperadas e ilícitas, se elevavam, em forma de vapor, nos pântanos, ao anoitecer.
Quanto a mim, quando a conheci, pareceu-me já a ter visto em qualquer lado:

Tal alemã cumpria aniversário no mesmo dia que eu e no mesmo dia fomos acordadas pelas cinco e meia da manhã.
Porque, primeiro, no dia de qualquer aniversário, qualquer cristão, judeu, muçulmano, hindu e as demais versões de Good Lord que existirem, deve logo cedo festejar a luz do dia, que é prova provada da existência e celebração da vida. Quem arrastar a noite pela manhã dentro, correrá o risco de povoar a alma de escuridão.
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Depois, tínhamos tido a infelicidade de nascer com aroma de Outono, a estação de todas as mortes e maus hálitos da terra, ou seja, quando o Diabo se prepara para sair dos confins, como tinha feito quando o Mississípi tinha engolido gentes e árvores criando os pântanos cheios de animais com almas de gente perversa dentro.

Comêssemos o frango e ele nos cantaria no sangue, dando-nos força na vontade.

Quando me despedi e ela me deu um abraço, ficou-me na memória do corpo, o contacto com um suave e acolhedor colchão de simples bondade.
E a vaga certeza que nem a Lua nem o Sol, nem Deus nem o Diabo, são criaturas de enredo certo.
