terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Porque dia 27 de Janeiro, é o dia internacional da Memória, mais lembrado lá fora que cá dentro, vou contar o que ouvi contar, à volta de uma velha senhora minha tia de olhos azuis e sorriso assassinado, já que pelos vistos, pegou moda, dizer que estas Histórias nunca existiram.



História de uma memória quase incógnita



Em 27 de Janeiro de 1945, o exército russo abriu as portas do maior campo de concentração de que há memória: Auschwitz, espécie de morada do Demónio, não seja esta entidade criada como símbolo e aviso de tudo quando de mau e pior existe na espécie humana.


Lembro-me de ouvir dizer, dentro de portas familiares que, num primeiro impacto e sentados nos seus diplomáticos gabinetes, ingleses e americanos pensaram que tal espectáculo não passava de propaganda comunista. Foi preciso ver para crer apesar dos sinais pouco descontraídos que iam chegando.




Portugal era visto por quem podia fugir, como uma rampa de lançamento para o respirar profundo da liberdade, palavra aqui com o simples sentido de continuar vivo. A troco de dinheiro e cumplicidades aqui e ali, lá as autoridades da Península Ibérica iam fechando os olhos aos fugitivos. Uma espécie de Casablanca em filme, mais coisa menos coisa.



O rio Guadiana, em Juromenha, sempre baixou o leito para que fugitivos, beneméritos de transportes de comida e medicamentos para as vitimas da Guerra Civil Espanhola e contrabandistas não tivessem água acima da cintura.



Um dia várias famílias, com os seus animais domésticos, o atravessaram. Conseguiram chegar à Ericeira, sitio onde esperavam até partir, noite profunda e sem lua política, para as Américas, sob o comando de velhos do mar, sobretudo ingleses.



Nessa vaga, passando por Lisboa, chegaram duas gémeas de nove anos agarradas a uma cadela. Sem pais nem dono, com os documentos verdadeiros pregados no esconderijo do forro das saias. Órfãs de toda a família. Só se sabia que se tinham salvo por vizinhos de servir de combustível nos fornos nazis.

Vinham doentes de escarlatina, diagnóstico feito por um médico lisboeta, familiar de um casal que viria, em produção própria, a ter catorze filhos. Já era tal a vocação que levaram as meninas para casa.

Dizia a minha avó, que foi o parto mais bonito que teve, que há dores na alma maiores que as do bruto parir físico, ( "parir é dor, criar é amor") como foi desvairado o desgosto quando, ao fim de uns dias, uma metade das gémeas morreu, caindo a outra num mutismo tão ensurdecedor como vencido já estava o sorriso.

E se naquela família já havia o amor pelos animais, a partir daí qualquer cão, por mais rafeiro e tinhoso que fosse, passou a ser digno de ter uma alma tão grande como qualquer cristão ou filho de outro qualquer deus maior.





Contra a vontade dos padres conhecidos, a menina, que foi registada na altura e por precaução, com nomes portugueses, não foi baptizada. E muito, muito lentamente, foi recuperando o dom da fala. Apesar de aprender português, manteve os laivos de som áspero.


O sorriso, esse, ficou sempre incompleto, preso pela tristeza azul transparente nos olhos. E o tique de levantar ligeiramente os ombros e tombar a cabeça face a qualquer pergunta também lhe denunciava a permanente incerteza.

Fez mais leituras que escola. Qualquer formalismo de exame lhe travava escrita, voz e memória do aprendido.





No dia em que cumpriu vinte e um anos foram-lhe dados os documentos originais e as duas saias. Se essa fosse a sua vontade, podia considerar aquela gente um mero empréstimo até à jurídica posse da vontade adulta e autónoma.

Contaram-me, ainda eu não sonhava nascer, que pela primeira vez, que se visse, chorou.
Como prenda escolheu uma viagem a Berlim.

Voltou, catolizou-se numa igreja do Chiado, casou-se numa capela perto de Juromenha, teve quatro filhas morenas de olhos castanhos, e foi recolhendo vários cães nas estradas.

Lembro-me dela loira e calada, ilha numa paisagem de tisnados, alguns barulhentos.

Lembro-me da magreza , da pequenez quase tão pequena como a minha e da forma minuciosa como bebia o chá. Em pequeníssimos e cadenciados goles.

Lembro-me de, por o marido estar na esfera do governo de Marcelo Caetano, ter fugido para o Brasil. Lá se separou, voltando sozinha. As filhas já se tinham adaptado em amores cariocas.

Agora está muito velha. Vive dentro de si a olhar para a paisagem, numa casa alentejana que já tinha, rodeada de livros, objectos aparentemente inúteis, de cinzeiros sempre cheios. Não reconhece ninguém, olha com cara de espanto e indiferença para toda a gente, mesmo quando lhe foi próxima na vida.





A ultima vez que a vi, estava sentada num cadeirão, cigarro nos dedos, a cantarolar uma canção infantil alemã:

Alle meine entchen schwimmen auf dem see
schwimmen auf dem see
kopfchen in das wasser
schwanzchen in die hoh



(todos os meus patinhos nadam no lago

nadam no lago

cabecinhas na água

rabinhos no ar)







Quer se queira quer não, há cantos longinquos que a amnésia não mata.


13 comentários:

Alien8 disse...

Lizzie,

27 de Janeiro é um mau dia para mim.
Voltarei talvez a 28, para ler e comentar a tua nova história.
Até lá, um beijo.

Emma Larbos disse...

Ai, Lizzie, que me matas de emoção com essa tua família! E com a tua voz narradora.
Mulher, que linda história! Qual Ilse Losa, qual carapuça!
Não te esqueças de que me prometeste que quando escreveres a saga familiar à la Allende sou eu que te vou secretariar!

Alien8 disse...

Lizzie,

Cá estou a 28, mas a tua história não me permite saír do 27. Coisas da memória.

Escreveste:

"...já que pelos vistos, pegou moda, dizer que estas Histórias nunca existiram."

Assim é. A lavagem da História é um dos actos mais nojentos que, a meu ver, se praticam. O descaramento de quem vem a público afirmar que certas coisas nunca existiram é quase inacreditável. Que raio de gente essa!

No que se refere ao teu tema, em que no caso das meninas se consubstancia o sofrimento e o massacre de milhões, e também a solidariedade de tantas boas pessoas (agora escrevem "boas pessoas" como expressão de gozo...), que dizer? Eu visitei Sachsenhausen, en Oranienburg, perto de Berlim. Desde o portão de ferro com o inevitável "Arbeit macht frei" até aos fornos crematórios, passando pelas salas de tortura e pelos laboratórios de experiências médicas, tudo aquilo grita, e esse grito jamais nos abandonará. Como negá-lo? Como esquecê-lo? Como tentar obrigar os outros a que o esqueçam, ou (gerações mais novas) nem sequer o conheçam? Como e porquê?

Mesmo as vidas salvas, como as das "tuas" gémeas, acabam de algum modo por ser destruídas. Ficam as canções da infância na língua materna, no fundo as canções de todas as infâncias.

"Todos os patinhos
Sabem bem nadar,
Cabeça para baixo,
Rabinho para o ar".

"Alle meine Entchen..." e sente-se um nó na garganta...

Não vou dizer que não me doeu ler o que escreveste. Doeu. Certamente porque o sentiste e o contaste com esse sentimento. Mas é bom que nos doa. É bom sinal, e ajuda a recarregar a memória.

Um beijo.

Arábica disse...

Lizzie

Talvez seja melhor começar por explicar porque, propositadamente, ontem não te comentei, embora a emoção, ao ler-te, tivesse sido grande...

Recuso que a Memória seja banalizada e fechada num qualquer dia de calendário.

Recuso o esquecimento.

Conto-te, em troca desta, uma outra história.

Era uma vez uma menina sedenta de conhecimento e de histórias que lhe preenchessem os dias e a mente.
Aos 10 anos, já tinha lido tudo quanto os pais permitiam que ela lá de casa lesse _muitas vezes leu o não permitido_, tendo começado então a perguntar, dentro do seu circulo mais proximo, se tinham livros que lhe emprestassem...

A Margarida, vizinha no mesmo prédio, educadora de infancia, mais velha que ela 14 anos lembrou-se de um. Hesitou contudo, ficando por breves instantes com o livro a balançar-se na mão...deixa-me ler! exclamou a menina...ela sorriu da forma doce que lhe era peculiar e pediu-lhe: senão perceberes alguma coisa, pergunta-me, se te fizer confusão, fala comigo...

A menina desceu as escadas a correr, na ansia de começar a ler o novo livro. Chamava-se "O Diário de Anne Frank". Outras vezes o leu, depois dessa primeira vez, ao longo da vida.

Nunca mais conseguiu esquecer o medo que o livro lhe dera a conhecer, nem tão pouco o infortunio, nem tão pouco a crueldade, nem tão pouco a capacidade de solidariedade, nem de resistência, nem tão pouco a capacidade de sonho existente dentro de cada um de nós que nos leva a resistir às mais duras realidades.

Depois desse livro e de uma centena de perguntas feitas à amiga, a menina com 10 anos, começou a perceber que o mundo era muito maior que a visão que da janela do seu quarto ela tinha.
E sempre que olhava pela janela, lembrava-se da janela de Anne Frank...
E sempre que se sentia só, desamparada, ela sabia, que bastava recordar a breve vida de Anne, para perceber o que era o verdadeiro desamparo...

Há 15 anos atrás, bateram à porta da menina, já crescida. Era uma vizinha, uma outra menina. Tinha 12 anos. Com um sorriso bonito, disse-lhe: desculpa vir cá, mas preciso de fazer um trabalho para a escola e não arranjei o livro, como tu tens muitos, lembrei-me, se calhar não conheces, é sobre o Holocausto e uma miuda chamada Anne Frank...


:) A Memória continua viva e passa em forma de livro, de mão em mão.

Recuso fechar num só dia de calendário as Annes e os Peters que existem e existiram. O seu trajecto doi, sem dúvida.

Dói, mas eu acredito que á a dor a mãe de toda a mudança e a guerra, apenas uma madrasta caprichosa, que salva os seus filhos esquecendo os enteados.


Deixá-la, agora no seu mundo de sonhos, regressar aos seus...


Beijo de boa memória sem dia certo...

Teresa Durães disse...

Uma história espantosa. Tenho duas tias, uma alemã e outra austríaca, que vieram escondidas debaixo dos bancos de um combóio. Também foram recolhidas (as duas). Quando ouviam foguetes atiravam-se para o chão. A austríaca sempre recordou o alemão apesar de ter vindo com 4 anos. A alemã nunca o falou. A Austríaca ainda procurou a mãe e regressou para cá onde se casou. A alemã nunca o fez.

pentelho real disse...

senhora,
perdoai a ousadia de aqui voltar após tão longa ausência.
como sempre que aqui vinha, ou quase sempre, comovi-me. é verdade. não sei se pelos factos em si, se pela forma como os descrevesteis: com um sentimento que sempre sabeis impregnar à vossa escrita.

sou,se me permitis, vossa humilde admiradora.

Miguel Batista disse...

ola Lizzie, venho so deixar um breve abraço uma vez que tenho andado ausente devido ao final de semestre. porem vou passando por aki pela blogosfera.

dark kisses

Lizzie disse...

Alien:
infelizmente a História parece vagar entre conflitos de interesses e propagandas: entornam-se os factos e as causas para este ou aquele sentido, sendo, curiosamente sentidos colocados nos extremos de um anti-semitismo, numa xenofobia feroz.

Não consigo imaginar as marcas interiores que ficaram em toda aquela gente. Penso-me naquelas circunstãncias, naquelas perdas, naquelas incertezas e a imaginação não passa de um mero assomo à realidade. Tal como tu também visitei um campo. E tive sempre os olhos azuis a fitarem-me na memória. Mais que tudo isso que descreves, marcou-me a visão de uma salas cheias de sapatos amontoados: milhares e milhares e milhares. Parecia que tinham as solas a gritar apesar do silêncio, do respeito que nos obriga a engolir a voz.

Quanto a "boas pessoas", a sociedade orientada para a competição, dá-lhes o estatuto de fracas, sendo muitas vezes tão discretamente grandes.

A canção, ouvia-a, com nó na garganta, porque soava ao canto mais sagrado, recondito e verdadeiro da alma.

Abraço

Lizzie disse...

Emma de mi corazón:
credo mulher, sei lá eu por que ponta e quando haveria de começar, quão longa seria a prosa que se nos gastariam olhos em tal empresa.
E que seria de mim sem o teu apuro e orientação no secretariado, pois que a promessa, ainda que sem para ela ter folgo, não me saiu da memória.
Começaríamos pela Old Cousin Alice? Pelo tio António Adriano? Pela Hannah Ana? Pela Gestrudes? Pelo dono do sofá?
Pela flamenga loira que se apaixonou por um itenerante de olhos verdes e delirante encanto?

Ai, mulher que quem me mata és tu e os mortos açambarcam a memória.

Obrigada.

Lizzie disse...

Arábica:
Como diz um velho parente meu, militar de carreira e com periferia no olhar entendido, a resistência das pessoas pode ir, em situações adversas, até limites inimagináveis. Seja ou não na guerra convencional.

Há os que lutam, os que se refugiam no silêncio, os que criam artes, os que fogem para a loucura, os que se ausentam estando e por aí fora.

Esta minha tia talvez tenha tido um bocadinho de tudo isto. Talvez, só talvez. Como de certeza todos os outros em grandes ou menores guerras.

Também li o "Diário" ainda pequena, mas já vacinada pelos relatos que ouvia pelas frestas das conversas dos adultos.

Mais tarde, impressionaram-me mais os sapatos, de que falei na resposta ao Alien, uns desenhos feitos por presos de todas as idades, uma coreografia dançada e criada por uma velha senhora numa cadeira de rodas, num dia 27 de Fevereiro, lembrava ela o dia da sua libertação, aos cinco anos (salvo erro) de Auschwitz. Há olhos e expressões coincidentes. Esqueça-se o físico e leia-se a impudícia da dor na alma.

E, penso que nos tempos que correm, estas memórias têm que ser gritadas. É preciso que se lembre que tais acontecimentos começaram quando numa crise em que, e por efeito de propaganda, os inocentes serviram de sabão para lavar as mãos dos verdadeiros culpados.

Como sempre, a memória colectiva tem tendência a deixar escorrer a lembrança por entre os dedos aflitos.

beso

Lizzie disse...

Teresa:
então também lhes deves ter lido nos olhos as marcas.
Há muitas pessoas que vivem em Portugal e em Espanha que foram um dia recolhidas pelas "boas pessoas". Algumas, aparentemente, não têm sequer memória das origens. Conheço uma que até nem sabe de onde veio.

Os comboios eram meios preferenciais de fuga: ou debaixo de bancos, ou nos contentores ou de cara ao léu, sem abrir a boca, com documentos falsos e grandes crucifixos ao pescoço.

Esta minha tia nunca deixou de falar em alemão para os seus bichos (lembro-me dos seus famosos verstanden sie) e estou convencida que pensava em alemão, como a memória remota era em alemão.

Ninguém perde, talvez, a dor em que nasceu.

Lizzie disse...

Alteza:
sabei que folgo com esta Vossa inesperada aparição. Já vos julgava morta por serviçal tormento no antro onde o destino vos colocou.

Continuais terna e vejo que ainda vos é permitido instante de leitura e visita.

Como tendes a porta fechada, nela não irei bater, não vá ter maior desgosto pela vossa condição.

Vinde quando aqui quando vos aprouver que vos darei retiro e chorai até ficardes seca se tal vos der consolo.

Agradeço os Vossos elogios e real sensibilidade.

Vossa

Lizzie disse...

Angellus:

que tudo te corra bem, com ou sem final de semestre.
Obrigada pela tua visita.

Dark kisses