terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Blogagem solta, dedicada aos cadernos, lápis, canetas e ideias, depois de ter em baixo falado neles e, last but not least, por ter admirado, aliás como é costume, o último post da A. acerca de Isolda, e de ( por ter ficado apeada dado o cancelamento de voos para Barajas na sexta-feira) no domingo e por esforço de telepatia, muito ter mexido neles.

A viagem indiscreta aos universos escondidos



Ver as notas privadas, tantas vezes sem rumo e em forma de rascunho

é o que me resta
é o que te resta
é o que lhe resta
é o nos resta
é o que vos resta
é o que lhes resta

para conhecer os caminhos que levam às obras, sejam elas filhas, primas ou somente enteadas de uma vontade de transmitir o que vai dentro de cada um, já que, raramente, os criadores (em sentido lato) desbaratam por inteiro aos quatro ventos, tudo o que os levou ao parto depois da incubação das ideias, tantas vezes geradas a partir de aparentes insignificâncias.






Estou convencida que cada um só mostra pedacinhos de si e dos seus motivos, deixando aos profissionais (prefiro os amadores) da interpretação a invenção do resto.



E deixem-me dizer desde já que, no caso vertente, acho que obra não tem que ter necessariamente a monumentalidade, a institucionalização do reconhecimento da critica ou da opinião pública, tantas vezes formada a partir de códigos pré definidos como se fossem dogmas divinos cheios de certezas.



A vaidade da sabedoria divina, e sobretudo a dos seus embaixadores, irrita-me, embora, confesso, nunca tenha falado com nenhum deus directamente, não sabendo se serei eu para eles muda ou eles para mim surdos. Esperarei pela minha morte para saber.



Vem a prosa a propósito de achar fascinantes esses meandros feitos rabiscos, essas sebentas da criação.

Parecem-me neurónios agricultores a lançar sementes no terreno da imaginação e a vigiar-lhes o crescimento, a dar-lhes água ou secura, a podar ramos, sempre no intuito que a planta saia perfeita.

Coscuvilhando cadernos privados vê-se que tal ilusión (peço desculpa mas a palavra em castelhano expressa um conceito mais vasto ligado ao entusiasmo e à vontade do fazer) e procura é sempre fonte de obra nova. A criação é uma espiral. O acto de criar não tem pensão nem reforma e é para muita gente uma compulsão.

Matisse nem entrevadinho deixou de sonhar riscos e de, em pequenos cadernos, sonhar prelúdios de formas que já não tiveram tempo de o ser em grande formato de obra acabada pelas suas próprias mãos.



Por outro lado, ouvindo-o, pelas confidências no papel, se percebe que tantas notas de Brahms tinham em mente o seu amor por Clara Shumann: ensaios secretos para um amor escondido.

E quantos demónios de vozes secretas, atormentadas e loucas não estão nas notas de Virgínia Woolf de cuja leitura um estilista desenha traje, interpretando o ambiente interior da escritora, misturado com o tempo que ele próprio vive e de mais que, como coscuvilheira discreta, não posso dizer.



Do conhecimento de uma história vulgar, com os seus labirintos de enredo romântico, se pode anotar, estudar,desenvolver e ponderar, num caderno, a tradução para movimento.



As escolhas que escolhemos, são já, pontos de partida para definirmos o que somos. Postas e desenvolvidas em cadernos, perdem as máscaras. Juntando escolhas e hipóteses, seleccionado umas eliminando outras tem-se o percurso do trabalho.

Uma casa interior, recolhida, silenciosa, fora de qualquer aparato.

Às vezes, as pequenas notas, são, por algumas que já vi, mais autenticas e expressivas que o produto que nos chega. Quantas vezes não se dá mais de si num ensaio, que na anunciada estreia, rodeada de expectativas que quase, quase,quase me apetece chamar de formal.

E, posto isto, que cada um guarde os seus caderninhos feitos de papel, tecla ou pensamento.

Talvez um dia, ao folheá-los tenha a surpresa de descobrir quem foi.

11 comentários:

Alien8 disse...

Lizzie,

Nem imaginas o quanto estou de acordo com o que escreveste, e o quanto gostei de ler (e ver) o texto / imagens.

Estar de acordo aqui será mais "pensar como". Lembro-me de cadernos, sim, alguns já irremediavelmente perdidos, muitos apenas com algumas páginas preenchidas, ficando talvez a ilusión mais nas que ficaram em branco, quem sabe?

De vez em quando folheio os que permaneceram. Pergunto-me para que servirão depois...

Creio que me entendes...

Um beijo.

Arábica disse...

Lizzie,


esses pedaços de nós e do nosso tempo, riscos de estradas, curvas de nuvem, sinuosos traços de alma.
Tantas vezes, apenas a parte visivel de um iceberg de ilusión, guardado, adormecido, dobrado, nas prateleiras que nem sempre visitamos.

Fragmentos das nossas horas, anseios, visões, dores, sonhos, amores, movimentos, ideias, clausuras, de qualquer forma, crochet inacabado, agulhas guardadas, à espera da lã certa...

Ou do desenho final, onde todas as matérias são permitidas...


Não sei para que servirão depois...mas poderiam ser doados como apendices aos olhos que me guiaram :)

Um beijo.

Lizzie disse...

Alien:

também os tenho perdidos, outros deitados fora num mar longinquo ou pela janela fora de um carro e tantos e tantos meio preenchidos, como se mudasse de vida e fosse imperativo começar numa nova página de um caderno novo.

Os que ficam, sei lá...:)servem para nos lembrarmos do que fomos. Como fomos. E da forma como vimos. Perdemos tantas vezes essa noção. Ou a memória da inocência.Ou a dose de ilusión.

Já me aconteceu não me conhecer. só os gatafunhos que só duas ou três pessoas percebem, por hábito, é que continuam os mesmos:))

Um abraço e, provavelmente, já bom fim de semana.

Lá irei gatafunhar...sem óculos:))

Lizzie disse...

Arábica:
às vezes são uterinos. Assim uma espécie de endométrio onde está, sem que se note, o futuro em gestação.

Vendo esses pedaços percebe-se muitas vezes o que na altura não se percebia: uma espécie de estilo, de fundo da natureza estável que nunca muda embora pareça ser de outra pessoa, lá tão longe.

E tal coisa é mais fácil de ser analisada por terceiros, que nos vejam com uma certa distância do que por nós. Não somos isentos ao espelho.

Besos, que vou gestar para outra freguesia. Com sorte, daqui a uns anos, o espelho não me parecerá partido, só talvez um pouco baço.:))

Emma Larbos disse...

Pois, Lizzie, não sei o que se passa nos universos escondidos dos que pintam ou que dançam mas no daqueles que escrevem, devo dizer-te que as viagens indiscretas se tornaram hoje um dos mais fascinantes objectos de estudo. Editar e publicar diários, livros de apontamentos, notas soltas, rascunhos que os autores quiseram mas não chegaram a deitar para o lixo é coisa que tem sido objecto de trabalho para muita gente. Exige conhecimentos especializados, para decifrar gatafunhices, saber o que foi escrito primeiro e o que foi depois, etc. Há toda uma ciência sobre isso.
E a sensação de quem mete o nariz a bisbilhotar nas intimidades dos autores (já mortos, claro!) é de fascínio e aventura, quase de excitação!
Penso muitas vezes no que diriam os pobres se soubessem que lhes andam a esgravatar as puridades mas depois penso: bem feita, quem os mandou não deixarem a secretária limpinha?
Assim se podem desfazer alguns mitos. Por exemplo, a famosa criação do _Guardador de Rebanhos_ do Alberto Caeiro, que o Pessoa disse que tinha escrito de jacto, de uma só vez, quando uma noite chegou a casa e se encostou a uma cómoda. Afinal é tudo mentira! Aquilo foi escrito em várias sessões e muito trabalhado ao longo do tempo, como acontece sempre com todas as grandes obras. É que o Fernando esqueceu-se de deitar para o lixo os rascunhos em que escreveu e reescreveu o Guardador e lá se foi a bela mentira!

Emma Larbos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Arábica disse...

Lizzie-Zizzie

não sei o que os astros mais te prometeram, eu convoco-te, porque nessa magnifica capacidade de comunicadora (de diversos modos e em diversos registos)tão tua, tens decerto ajudado a mudar o mundo -mesmo que em notas soltas ou rascunhos;). Que não.


Abraço de cacau quente em noite fria.

Lizzie disse...

Emma:

pois que nas artes ditas plásticas e na dança muitos mitos já caíram ou melhor,se aclararam às vezes com a ajuda do rigor da ciência.
Nestes dois ramos tenho observado que alguns tentam esconder a verdade pela simples razão que as suas teorias interpretativas caíriam por terra e o que era considerado normal pelos artistas (como as "máquinas" de perspectiva do séc XVII, p. ex.) é paulatinamente escondido.

Diz-se que a humanidade,os países e as épocas, precisam de pontos de referência e mitos. Talvez.

(olha a correspondência entre o Sartre e a Simone de Beauvoir..., olha se não ficam os mitos afogados)

Do que conheço, mesmo em termos de dança,acho que o saber do percurso que levou à obra final, não lhe tira o mérito. Quanto muito posso pensar "eh pá que grande besta e... que génio, as portas que abriu para o futuro".

Só fico triste quando percebo que grandes nomes da coreografia, enfim,copiaram algumas ideias de simples bailarinos que com eles trabalhavam. E deles não reza a história. Tantas vezes os mitos esmagam os subterãneos. Noblesse oblige.

Lizzie disse...

Arábica:
Esta mera pulga, viciada em cacau e chá quentes à lareira ou salamandra, na mudança térreo-astral agradece-te a convocatória:))


Besos com churros

audrey disse...

ONDE HAJA UM
JUDEU...

LÁ ESTOU
EU...

A. disse...

:)

"Each has his past shut in him like the leaves of a book known to him by his heart, and his friends can only read the title."

Virginia Woolf






...grande beijnho, Eli.




(vou demorar a pôr em dia trudo o que aqui tens.aqui vou eu.)