terça-feira, 7 de outubro de 2008

como prometido mais relatos, agora, do

lado avesso da paisagem

para além de teatros, famas e estudos.



Vêm de todo o lado porque sabem que vai haver amontoado de estrelas.
Aquelas que habitam um mundo ilusório da rádio, da televisão, das revistas em qualquer papel e formato.
E sabem que vão haver olhos que os podem levar para a fama.
Ainda sentem o flamenco como arte exclusiva da clandestinidade e da rua, com as regras inventadas pelos clãs de Graná ,de Sévi, de Cordó, passando por Malá.

Não conhecem outra aprendizagem que não seja o fogo das tragédias da alma, a arder directamente no sangue. O canto e o baile da vida brusca.

Ouviram dizer que muitas e muitos tiveram e têm aulas daquela dança tão distante, lá para os lados dos salões engalanados, o Balé.

Mesmo sem saberem de fusões, aproveitam para cultivar a tão andaluza arte do piropo: eres tú maestra de balé?


Pués que me pones el corazón mio de puntillas.



E lá pede para deixar a marca na camisa branca. Assinatura que, garante, levará para o caixão. E, noutro, o lenço autografado vai para o bolso no peito para manter acesso aquele amor repentino e definitivo. E um rapaz garboso promete que se receber um olhar que não o despreze, caminhará sobre os oceanos. Rimos desta versão de Cristo eterno e apaixonado .

Na rua, fazem festa paralela, virada para a pose. Lá estiveram mães e tias a costurar as batas, disputando a proeza do corte. E quando se olha para elas, grandes ou pequenas, arrebitam-se na vaidade.



Sabe-se lá quem serão as pessoas vestidas à civil que, de cartão na lapela, têm porteiros a abrir as portas para aquele mundo secreto que pressupõem de luxo. O mundo habitado pelo inacessível dos grandes teatros.



Alguns ficam na rua à entrada dos bastidores e duvidam que a mulher de calças de ganga e camisa, sem maquilhagem que se note e criança encaixada na cintura seja a mesma que leva a raça de Granada pelo mundo. Para eles as figuras célebres são estáticas no palco mediático, sem vida comum. E ainda muito menos vulgares espectadoras das pares.



Depois da estranheza, gritam Morente com envios à divindade:

qué te haga santa el Papa, corazón! La Estrella se hace luz en la tierra. Hão-de gritar pela Eva, pela Marina, pela Conchita, pela Carmen. Ali mais altas, mais baixas, mais gordas, mais velhas, mais novas. Às vezes mais por bairrismo que por gosto da obra já demasiado intelectualizada .

Lá me vão contando histórias trágicas, deste e daquela, com carreiras interrompidas pelo álcool. Vozes e corpos que se perderam na fúria impulsiva dos desacatos.



Enchem-se clubes de heróis restritos, uma espécie de flamenco vadio sem direito a gravação legal de disco.



Ficam-se pela cassete de feira como os que actuam em restaurantes onde escandinavos e americanos desengonçados, pensam que a inspiração do duende se compra em jarros de sangria ou copos de aguardente.




Na rua também se canta e dança, em qualquer esquina, enquanto as ciganas ortodoxas vendem lotaria, colares, pulseiras fartas em benesses de santidade de Macarenas , Marias Madalenas, Guadalupes, Senhoras do Rosário



- ai santa de bom coração que hás-de ter homem de oiro e hás-de dormir em cama de prata, deixa lá demónio que hás-de morrer ceguinha e sem pernas que hás-de ser comida pelas moscas enquanto ardes no inferno, não te caia agora um raio na cabeça e fiques com os miolos queimados-


que os maridos e restantes homens da raça, em acampamentos improvisados, cumprem a tradição de não trabalhar em qualquer ofício, enquanto esperam pelos cansados meios de socorro.



E vão-se acabando as esperanças e oportunidades de mudança de vida anónima e miserável.




Os dos cartões na lapela vão abandonando o terreno em direcção aos seus destinos.

Convidam meia dúzia para entrar com bolsas para escolas de dança, outra meia dúzia, começará por aparecer nos programas da manhã da televisão, a ver qué sale.

Têm pressa. Não pensam, ou não sabem, que o futuro é trabalhoso e longo.

No brilho agora assustado dos olhos de uma delas, enquanto lhe explicavam burocracias e lhe recomendavam juízo e força nas dificuldades vindouras,vemos-lhe o sonho de ser grande em palmas e homenagens.E, já na próxima Bienal de Flamenco da terra onde nasceu: Sevilha.




Esperamos que sim! Que a ilusão não lhe mate o estudo, que case com o homem que escolher, que ainda quase criança não engravide sem vontade já para o ano e que lá mais para a frente cante e dance a vida, que talvez às escondidas de todas as tradições, se atreveu a sonhar.



Esperemos que sim, que talento é coisa que não precisa de mendigar.




tanguillo sevilla - paquito corrales

24 comentários:

Frioleiras disse...

Lizzie...........

Muti obrigada pelos "parabéns" lá deixados ... e deixa -me que te diga que também gosto muito de purcell...

(o teu blog é ... uma perfeição e ... eu gosto de música flamenca, também...)

Frioleiras disse...

Lizzie...........

Muti obrigada pelos "parabéns" lá deixados ... e deixa -me que te diga que também gosto muito de purcell...

(o teu blog é ... uma perfeição e ... eu gosto de música flamenca, também...)

Alien8 disse...

Lizzie,

Para começo de conversa, muito obrigado por me teres apresentado ao Paquito Corrales e ao Tanguillo Sevilla. Sim, dá para ouvir tudo, e gostei imenso!

A paisagem que criaste para o lado avesso da paisagem é verdadeiramente impressionante. E também não me canso de perguntar como consegues escolher as fotos... Lembro-me da memória fotográfica de que falaste, mas mesmo assim... é notável!

Entre esperanças e cassetes de feira, talentos e ócios, tragédias e danças de rua, Virgens e pragas rogadas, sinto-me um bocado perdido, e vou navegando em silêncio, embora me apeteça, tenho que o confessar, perguntar-te, por razões obviamente diferentes do cultivo da arte do piropo, "Eres tú maestra de balé?" :)))

Um beijo.

Lizzie disse...

Frioleiras:
de nada!Já vi que ficaste contente com o dia. Ainda bem.

Gosto tanto do Purcell que tive a alembradura, para uma coisa, de o casar com o Michael Nyman e com um canto árabe anónimo do séc XI. Vou pedir que liguem as músicas sem transições bruscas, como se tivessem nevoeiro nas pontas:)
Não brigam, mesmo quando ligeiramente sobrepostas. Acho eu...

Perfeição? Credo!
Obrigada.

Lizzie disse...

Alien:
Aleluia, praise the lord que conseguiste ouvir tudo:)

Este tanguillo veio mesmo a calhar à temática desta paisagem. Ainda bem que gostaste. El Paquito é muito bom a cantar sobretudo tanguillos e alegrías de cariz satírico e irónico.

E, pois, tenho tudo adormecido na cabeça e depois vai acordando:)Com a música é a mesma coisa.
Não achas a senhora copleira da 1ª foto ligeiramente parecida com a Natália Correia?

E, Alien, aquelas pessoas que andam pela rua fartam-se a mostrar "habilidades" à espera que reparem nelas. A diferença entre os mundos é deprimente. Querem oferecer cassetes de gravação caseira, fotografias. Alguns são convidados para ver se seguem carreira mas não aguentam a disciplina e, alguns e algumas também não aguentam o facto de serem conhecidos: entram numa espiral de disparates muitas vezes auto destrutivos. É pena.

E adoro a arte do piropo, ou melhor,da galanteria. Nunca é ordinária e alguns têm muita imaginação. As mulheres podem responder com palavras ou com gestos subtis, sem falar na ancestral linguagem do leque.

Não, não sou maestra de balé. Não tenho perfil para tal coisa. No que respeita à dança, ando,lá, por outras áreas.
Aquela a quem chamo de "hija":) é que é embora, por vocação e paixão, seja uma excelente bailaora de flamenco misturando-o com a dança clássica e com a contemporanea.

Beijo também.

Alien8 disse...

Lizzie,

Não tinha reparado na semelhança, mas parece mesmo a Natália Correia.

Percebo o percuso, os percursos, das pessoas que retratas. Sortes diversas, feitios diversos, cabeças diversas, a mesma luta, destinos diversos...

Já calculava, pelo que tenho lido, que não eras "maestra de balé". A pergunta não foi propriamente literal: teve a ver com o efeito imediato que me causou a leitura do teu texto :)

Concordo em que a galanteria não é ordinária, há piropos lindíssimos, como o que citaste, mas... não tenho jeito para essa arte, nunca tive. Coisas.

Um beijo.

Vanda disse...

Lizzie,

esperemos que si.

que o passo não saia do ritmo e o trabalho arduo não afaste o sonho.

Que o destino se reescreva, que o desafio seja asa de condor.

E mais que o aplauso, que a gratificação do objectivo realizado se estenda nesses jovens corpos e sedentos espiritos apaixonados, até ao "agranda-te" de um dia...

que si.


Espero também que nos continues a dar música :)




Beijo de boa noite, um bom dia para ti, amanhã!

Lizzie disse...

Alien:
não tens obrigação de ter jeito para aquele tipo de piropos porque não me pareces sevilhano:)
Aquilo é coisa daquela geografia e em português,às vezes, nem soa bem.

Lá é arte que está a desaparecer. Fiquei surpreendida por moçoilos tão novos e em tão grande quantidade se saírem com tais aroubos.

Estás muitissímo bem com os jeitos que tens qué tus palabras me hacen sentir como estrella única en el cielo de tu firmamento. Ora toma!:)

Não sei porquê mas se eu fosse maestra de balé acho que iria sair parangona no Correio da manhã:
professora de ballet alucinada torce 360º pés de crianças.

beijo

Lizzie disse...

Vanda:
quanto a músicas e a sonhos bem que poderia ter posto aqui aquela lindissíma que é a Violetera na voz suave da tão intrinsecamente espanhola Sarita Montiel:)

E o talento daquela miudinha cigana de treze anos que vi, embora sem responsabilidade de escolha, ficou-me na memória.É imposssível não se ficar tocado.

Vamos lá ver se a tradição daquela tribo cigana abre uma excepção e não a case aos 14 anos com quem ela nem nunca viu e a deixa levantar voo.
E a deixe ter uma vida dona de escolhas e sem deslumbres prematuros que lhe impeçam o crescimento da arte plena.

Cá do nosso lado tudo parece linear e fácil, mas as barreiras são muitas para quem nasceu e cresceu naquele meio onde, tirando o facto de serem mães, as mulheres são trapos.

Felizmente que as excepções são cada vez mais e muitos destinos já se começam a escrever com outra letra.
Já há tantas, tantas a empurrar a sua própria vida no sentido que lhes foi proíbido ajudadas pela imagem, que as "suas" estrelas, agrandadas lá nos palcos de luxo,lhes dá.

Por isso, esperemos.

Beijo e tem uma noite descansada.

Alien8 disse...

Lizzie,

Tomei :)))

Ah, sevilhana! Agora fizeste-me calar... por uns minutos, mas calei-me.

No mais, 360 graus!!!??? Não farias a coisa por menos? Aí 180, talvez?

Um beijo.

corner disse...

sem fronteiras,

eu.

Lola disse...

Lizzie,

O outro lado do glamour que nos mostram.

O avesso colorido, irreverente, cheio de sonhos e a dançar...Olé.

A respeito de piropos, ainda há relativamente pouco tempo, era "uma arte" cultivada no Porto, às vezes brejeira, muito machista, mas divertida.
Bastava ser jovem e andar por St Catarina...


Beijos e bom fim de semana

Haddock disse...

houvesse um concurso mais perto dedicado a bater o pé, asseguramos-vos, lizzie, que, pelo menos, menção honrosa teríamos! não que estejamos a gracejar sobre a arte do flamenco. longe de nós... mas imaginamos que muitos dos concorrentes mais não farão do que isso, qual desafino pézal...
quanto às agruras, meio-esquecidas na festa, fazem parte de cenários imemoriais...
não deviam...

bato o pé, com um Olé!!

(sinónimo aqui de vénia...)

casa de passe disse...

Comprei bilhetes para ir com o Ernesto ao CCB. Também vais?


LOULOU
(sem a beata da Nini, sem a Alice, sem o Avô e sem o safado do João)

Lizzie disse...

Alien:
Não me interessa: 360º garante grande versatilidade no movimento:))

além disso, por tradição e vocação, as maestras e os maestros de balé, são exímios na exigência e rigor:verdadeiros perfeccionistas dedicados.
Quem, nessas vidas, nunca levou com vara nas pernas, mesmo que suave e levemente em prol do bom futuro dos educandos?
(E a mim, às vezes, dá-me para os excessos...e com a minha falta de jeito para a função...)

Abraço e muito boa semana

Lizzie disse...

Corner:

de fronteiras também não gosto. Fazem-me sentir a alma presa.

Lizzie disse...

Já volto...

Lizzie disse...

Lola:
é de facto um grande contraste entre este mundo de olés com ãnsia,às vezes quase patética,de sucesso e o outro lado que tantas vezes quer passar por incógnito, se quer livrar da imagem fabricada para consumo público.

Este lado pobre e anónimo vive muitas vezes de um sonho ilusório, mas, no meio disto tudo, também se vê que o poder da dança e do canto, visceralmente autênticos, vence: vai-se a pose copiada do que se vê na televisão e, bem aquecidos, vem a força do que é genuíno. Começa-se a sentir a raiz do flamenco de rua, começa-se a ouvir o grito da alma mais funda.

Apetece dizer-lhes: não se estraguem, inventem-se!

Quanto a piropos do Porto, carago, tibe um amigo muito home que era mestre:))A conversa era um bocadinho ordinária, mas tinha graça:primeiro por causa da pronúncia e segundo porque a intenção era boa, caquilo era só fachada. Claro que num se libraba da respousta:)))

Beijos

Lizzie disse...

Capitão:
não temos dúvidas que estivésseis vós num tablao perto de nós sapateando, logo apontaríamos na vossa direcção, por muitos que fossem os concorrentes e gritaríamos: aquele, o barbudo.
Menção honrosa, com a vossa agilidade, com a vossa postura?
Nem a concurso: entraríeis de mérito próprio. Até seríeis capaz de flamencar ao som da "música animal" (deste vosso dito não nos esquecemos do tanto que rimos):)))

Só desafina com os pés quem realmente não nasceu para os bater.
E muito gostamos da coordenação de vosso ritmo.
Continuai!

Continência

Lizzie disse...

Meninas, sobretudo à desgraçada da Alteza:

1º Quem é o Ernesto? É o do Oscar Wilde?

2º- e qual espéctáculo? Beethoven? Mona Lisa Show?

Não saí no fim de semana nem para estar com duas ou três pessoas do Ballet Flamenco de Madrid. Remeti-me à condição de adoentada, por vezes, adoentadíssima.

Emma Larbos disse...

E o que dizem os homens ciganos a essa exposição e oferta mediáticas das suas mulheres, sobre as quais costumam exercer direitos de donos?
Ou será que o flamenco dá às ciganas sevilhanas uma carta de alforria que mais nenhumas têm?

Lizzie disse...

Emma:
uma cigana, seja em espectáculos seja em audições, nunca vai sózinha.
É muito frequente ver-se muita família em redor e até mesmo no palco. Alguns tocaores são irmãos, maridos, pais.
O mesmo se aplica aos homens mas aqui para as mulheres tratarem deles e os servirem.

Também é usual a estrela manter financeiramente, a partir do momento em que ganha dinheiro, os ascendentes, descendentes e colaterais, como os cunhados.
A fama e o sucesso delas, é o negócio deles. Daí que haja, por vezes, alguma tolerãncia.
Só para te dar um ex. a Carmen Amaya era milionária mas quem lhe dava o dinheiro para os gastos próprios eram os irmãos.

Claro que isto é a um nível ainda muito ortodoxo, predominante nas zonas de Sevilha e Granada. Outras tribos existem em que os valores já são muito "ocidentalizados".As mulheres chegam mesmo a fazer carreira académica com perfeita autonomia.

Como digo lá em cima são, felizmente, cada vez mais.
E de qualquer forma uma boa bailaora ou cantaora (termos que não têm expressão directa e técnica em português)tem de facto, para eles, um certo misticismo para não dizer religiosidade.

Graça Brites disse...

Rica lembrança, Lizzie. Também me parece sempre absolutamente necessário olhar para o lado avesso da paisagem. Em geral o que é genuíno, bom ou mau, bonito ou feio, não se vê do direito. Pode-se presumir, imaginar e até adivinhar, mas é preciso enfiar os olhos na ponta dos dedos pelas mangas das coisas para se chegar à fibra, à costura, ao ponto quase invisível.

Aqui, o talento, também é coisa que não se precisa de mendigar.

Beijinhos.

Lizzie disse...

Graça:
neste mundo do flamenco, não é preciso mergulhar os dedos para sentir as costuras: elas estão por todo o lado à vista, embora haja chagas de sonhos que muita gente quer ignorar.

É triste olhá-los a trabalhar para que o sonho da notoriedade se torne real e ver-lhes depois, nos olhos, a hipotética glória morrer. Afinal são bons mas comuns. Sem um qualquer toque que os torne distintos e únicos.
E voltam ao dia a dia, até à próxima. Voltam tantas vezes quanto a consciência sua realidade permitir.

Beijinhos