Viagem, de olhos abertos, a uma espécie de teatro, em duas noites aflitas.

Assim, aqui vos deixo descrição de algumas coisas que vi e ouvi na urgência de um hospital de província, na fronteira com Lisboa, que isto é país pequeno em que para o bem e para o mal se dão passos de gigante para terras com tempos distantes.
Eram dez da noite e carrego eu, que sou mulher de força, com criatura coxinha mas colaborante, por um chão escorregadio com decoração ladrilhar inspirada no estádio do Sporting em direcção à recepção, agora chamada Office. A recepcionista, ou melhor, officionista, cumprimenta com um pois não? teletransportando-nos para o reino contagioso das telenovelas. E quantas foram as idas e vindas…
e antes de ouvir e teclar a queixa e a sua gravidade, vai logo exigindo o pagamento da taxa moderadora, não vá a doente finar-se sem pagar a simples deslocação.

Reparo que os homens estão todos de um lado e as mulheres do outro, tal é a separação de conversas e interesses. Alguns dos dois géneros têm uma pulseira com os dados pessoais, como ante cadáver já identificado: são os utentes. Vale mais prevenir que remediar. É de bom tom não guardar para depois o que se pode fazer agora.
E talvez seja, sem ser divulgado, o dia nacional da fractura, tantos são os ais de coxeamento e braço ao peito.
Continuando a apurar o sentido estatístico, confirmo que quando casam, as mulheres arranjam marido em kit: ele e toda a família dele. Cada homem tem muitos acompanhantes. As mulheres têm um ou dois.
A minha família vem como peça isolada lá de dentro, com diagnóstico de perónio fracturado e receita para compra de umas talas obrigatórias porque, ortopedista sic, houve um jogador de futebol que por causa de tal azar, nunca mais jogou.
A minha família não tem nem vocação nem intento de, passados já os cinquenta, abraçar tal auspiciosa e lucrativa carreira.

No dia a seguir,na loja de produtos ortopédicos, um senhor de licenciada bata branca, começa a trazer vários modelos de calçado que vai (em aparência) desde as botas de montar às botas de astronauta. Cada vez que vai ao departamento contíguo, surge com novo modelo.
Fico à espera da prótese em forma de perna da Marlene Dietrich , Marilyn Monroe , Mãe West. Neste caso, seria mais próprio, penso eu, uma também vintage, Rita Hayworth.
Os preços, não comparticipados, oscilam entre os 799 E e os 199.
O técnico aconselha umas intermédias porque já um guarda-redes deixou de jogar por situação igual. Telefónica e simpaticamente o médico recomenda as de 199. Perdão: 199.80, para ser mais exacta.
Passado pouco tempo, a minha família começa a queixar-se de dores, a mudar a cor do rosado rosto.
Volta-se ao hospital.
Pois não?

Desta vez é meia noite. E chega um rapaz da construção de obra megalómana, em maca, a esvair-se em sangue com um esgar de quem está a dormir e no cúmulo de um aterrorizador pesadelo. Os colegas gritam que tem que entrar já. Caiu na dita obra. Da placa.
Uma senhora, com traje inspirado no das hospedeiras da TAP e que nunca cresceu, pois só quem não cresce ou já nasceu velho ,

é de tal forma obediente ao protocolo, põe ordem e diz que primeiro, tem que se ir inscrever, ir à triagem. As regras são para se cumprir. Assim foi decidido. Suponho que é por ordem superior que pergunta ao dito se tem seguro.
Um homem com evidente gravata preta, aproxima-se da maca. Tem ar guloso e adunco, embora reconchudo. Mais tarde percebi tratar-se de agente funerário. Tem ar de angariador da morte.
Um outro, lá do fundo, aponta o espírito de poupança nos ingredientes da massa (cimento) dos empreiteiros . E começa cada um e a propósito, a contar as histórias mais delirantes relativas à arte de bem poupar. Em salas de espera, da nascente de qualquer mote, jorram Amazonas de trova.

E chega outro homem, vindo da porta de acesso interdito a pessoas estranhas ao serviço , que, como muitos másculos fazem em gesto de orgulho, puxa as calças acima do umbigo. Em voz alta, exuberante, informa a plateia que o filho tem costelas partidas mais clavícula. Viril tentativa de tourear um bezerro. É um pai realizado na descendência.

A mãe, a um canto, chora amarfanhando um lenço entre as mãos, gesto recorrente nas mulheres que engolem a má sorte, como algumas que vão chegando de cara desfeita e a seguir ao pois não?

dizem, baixinho, que caíram das escadas. Têm a cabeça tão pesada de vergonha e silêncio que na queda magoam sempre, e em primeiro lugar, a face. É uma caracteristica do tombar feminino.

Por todo o lado se lêem cartazes de proíbição de fumar, mas outra senhora com farda inspirada nos Irmãos Metralha, lança uma espécie de Fabuloso Floral puro pelo chão, espalhando-o com a esfregona. Lembro-me que sou (embora incipientemente) asmática e, como muitos outros, vou fumar um cigarro para o exterior. O risco de ir ao Office ou ter uma enxaqueca, é infinitivamente menor.
Entretanto, como se do alto surgisse maestro orquestral invisível,

todas as mulheres pôem um pano no colo, abrem os sacos de plástico e sacam do pão, queijo chouriço, vinho, cerveja e chamam os homens para junto delas. Aglomerado mastigador em contraponto, variações em Dor Maior, entre o adagio e o allegro molto, passando pelo larghetto quase nunca moderato.

É um momento de confraternização, impossível num hospital de uma cidade grande em que qualquer pessoa, face a outra, não passa de um anónimo. Ali toda a gente é parente ou vizinho de alguém.
Diga-se, sem ponta de ironia ou cinismo, que sem ninguém nos conhecer de lado nenhum, logo nos foi oferecida merenda.
A minha família quase desmaia com mal-estar e dor. Dirijo-me à tal mestre de cerimónias e pergunto-lhe se falta muito.
O pé está roxo.
É normal.
Olhe que não...
Mais uma meia hora.
Nesta minha cabeça produz-se apetite revolucionário com recurso ao poder hermético da linguagem e sai-me um irreverente, furibundo, mas contido e baixo:
a doente tem edema com cianose em franco processo evolutivo!
Milagrosas palavras, que abrem instantaneamente as portas para o alívio.
Pobre de quem não tem reserva de palavreado. Naquele caso, parece-me, que até serviria um o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos.
Afinal o técnico sapateiro medicinal tinha posto uma tira afivelada a garrotar tudo o que vaso sanguíneo e linfático fosse e
afinal o aspirante a toureiro só tinha uma costela partida e
afinal são quase quatro da manhã e abandono com a minha família aquele mar negro de olheiras de trabalho tal é a falta de médicos e enfermeiros que manda a contabilidade orçamental que não haja mais contractos, de corpos doentes de falta de atenção, de vaidades herdadas, de ossos traídos, de dores sem voz, de voz com dores, de corações de armadura rota, de consultas desesperadas sem serem urgentes, de...
Então boa noite! As melhoras!

Pois não?