A casa das lembranças futuras
A casa recebe-me como sempre. A luz até parece que se abre de acolhimento.
É terreno onde se encontram e trocam ideias. Filhos que nascem sem data nem hora marcadas. Ao desvario. Pequenos grãos de lembranças do que se ouviu, viu, ouve e vê , colecciona e junta sem ordem burocrática. E dão obra. Ou melhor contributo para a obra.
Não há criação de coisa alguma em terreno de ilha deserta. Acho eu.

Desde os alvores do séc. XX que as artes se juntam, conversam e emigram dos bastidores dos pensamentos para o palco. Neste caso trata-se de dança, uma das artes performativas, dirão os teóricos com jeito e missão de pôr nomes às coisas. Cá para mim, para nós, os nomes e as discussões ilustres são acessórios.

Interessa-me mais saber que seja, com a música, a mais instintiva e universal das artes. Se quem nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha mãe dele, é coisa de pensamento entretido.
Mas voltando à obra feita dança, cada corpo tem atrás uma mente que, infiltrando-se pelos nervos, músculos, tendões e demais componentes anatómicos de enumeração assaz exaustiva, dá ordens para que fale. Palestra de palavras silenciadas, ou não, que estas também têm emoções e som e ritmo e tempo e espaço para serem mexidas em tradução de movimento.
Mas voltando à obra feita dança, cada corpo tem atrás uma mente que, infiltrando-se pelos nervos, músculos, tendões e demais componentes anatómicos de enumeração assaz exaustiva, dá ordens para que fale. Palestra de palavras silenciadas, ou não, que estas também têm emoções e som e ritmo e tempo e espaço para serem mexidas em tradução de movimento.
Nas cabeças que habitam aquela casa, as palavras não são paralíticas.
…
Y no te daré parte de mis quejas
De mi tristeza, ni de mi tormento
Ni dártela osaré por no perderte
Y no te daré parte de mis quejas
De mi tristeza, ni de mi tormento
Ni dártela osaré por no perderte
(Gutierre de Cetina, espanhol melancólico lá para as bandas do séc. XVII).
É o que leio à luz filtrada pelo toldo de uma varanda de Madrid, sonata para violoncelo de Fauré dentro, rumor de cidade doida fora.
É o que leio à luz filtrada pelo toldo de uma varanda de Madrid, sonata para violoncelo de Fauré dentro, rumor de cidade doida fora.

Foi esta estrofe encontrada num livro velho cheio de tempo que lhe sugeriu o princípio da obra: o amor e o desamor sempre se dançaram, ou não fossem a par da saúde e do dinheiro, os motores e as mortes da existência. Até o comércio astrológico sabe isso.
E entra a memória da vida em acção. Podem até entrar pessoas que passaram por nós uma vez, sabe-se lá onde, e que são musas inocentes e anónimas do processo. São memórias de paradeiro desconhecido e tantas vezes desfocado.
E entra a memória da vida em acção. Podem até entrar pessoas que passaram por nós uma vez, sabe-se lá onde, e que são musas inocentes e anónimas do processo. São memórias de paradeiro desconhecido e tantas vezes desfocado.

As nossas lembranças convergem e correm em sentido único, afluentes de um rio a desaguar onde ainda não se sabe. Sendo diferentes quase somos iguais nesta pesquisa de nós e dos outros em nós ainda que não tenhamos consciência disso.

A obra é geografia que se vai compondo, nunca chegando à definição definitiva do terreno: será preciso sempre retirar um vale, acrescentar uma planície. Os próprios bailarinos, cada um, darão, com o corpo recheado de alma, uma cor diferente ao mapa.

Chamam-lhe os teóricos interpretação. Têm o poder de dar, cada um a seu modo, a assinatura final que nunca será igual em cada dia. É arte do efémero.

E debicando os deliciosos bolinhos de amêndoa da porteira, a inimitável Doña Pilar, que sem saber tanto performa, vão escorrendo as ideias no encontro.
Para mim sempre sem hora nem compromisso, ou não fosse aquela casa barco sem ancoradouro que o afogue.
Te acuerdas de lo de Kiefer, aquel, qué tiene escrito arriba ich bin...
É uma das virtudes da dança, hoje em Dia Mundial, mais um em trezentos e sessenta e quatro, dar movimento até ao que nasceu para ficar parado, ou, dito de outra forma, dar viagem aos corações mais calados.
Para mim sempre sem hora nem compromisso, ou não fosse aquela casa barco sem ancoradouro que o afogue.
Te acuerdas de lo de Kiefer, aquel, qué tiene escrito arriba ich bin...
É uma das virtudes da dança, hoje em Dia Mundial, mais um em trezentos e sessenta e quatro, dar movimento até ao que nasceu para ficar parado, ou, dito de outra forma, dar viagem aos corações mais calados.
