quarta-feira, 12 de março de 2008

A observadora do inevitável






Serve o presente e assim lho dedico, à minha amiga Nnannarella, por dia 13 de Março de todos os anos, sem falhar nenhum, ter o desplante de cumprir aniversário, mantendo, assim, a sua capacidade inata para rejuvenescer a vida, que nela é rebento contínuo, ou seja sem demora nem parança e de quem basto me lembrei no que a seguir virá, sabendo ela e quem a conhece porquê.



FGP(YOV (afinação da tecla), senhoras e senhores na minha e na vossa presença



cá vai:

Estando eu posta em sossego numa recheada livraria de Madrid, bebericando uma inocente limonada e folheando livro, quando ouço perguntar de rompante, se já tinha escrito o epitáfio. Olhei em volta e percebi que a destinatária era eu. Fez-me a pergunta senhora, que não tendo nada de gótico urbano dos anos oitenta para cá, correspondia em parecença à duquesa de Alba com menos trinta anos, de ganga trajada, cabelo ripado e flurescente maquilhagem à boa maneira espanhola.







Vi que estava a folhear um livro sobre estatuária votada ao descanso eterno.
Continuando, e sentindo-me surpresa, disse-lhe que não, que ainda não me tinha ocorrido tal preocupação com a minha posteridade.






Respondeu-me, com ar de responsabilidade concentrada e vasto sentido prático, ser tal coisa importantíssima: em vida tudo se faz e desfaz, mas depois de morto, ninguém se defende do retrato literário ali deixado.


Ela andava há anos a aperfeiçoar o dela, entre pesquisas que iam de Shakespeare a Bette Davis, passando por Groucho Marx, o tal que mandou escrever: desculpe mas não me posso levantar. Ou o de um cantor espanhol, que sendo gago a falar teve a autoria de um fabuloso: Perdóne-ne-ne-me usted pe- pe- pe- ro no tengo go- go voz.

Como em Roma sê romano, perguntei-lhe se trabalhava em alguma agência funerária. Disse-me que não, que era publicitária criativa, mas que tinha o estudo de cemitérios como hobby, já que é terreno desprezado pelas demais artes e ciências. Atenta alma.





E o que se aprende e vê sobre a natureza humana…! Além de ser o único sítio na terra onde ainda há valores, como o respeito pela dor e pelo silêncio sem grandes interferências incómodas.

Por isso , na sua investigação tinha chegado a conclusões:

como, no cinema e outras artes, existe uma literatura epitáfial de autor, correspondente a pessoas de convicta personalidade forte ou não confiantes na ideia que têm deles os que cá ficam;
as famílias reflexivas, vão para as citações de filósofos gregos ou outros, sobretudo Schopenhauer;

que os que não têm verbos deixam tudo em suspenso, e citou um ,como se fosse um intervalo e que os orientais assumem a morte, reflectindo sobre ela enquanto que os ocidentais, negando-a, têm sempre textos que apelam à acção.

Depois disto, pergunta-me de onde sou. Lisboa. E diz-me que vem cá muitas vezes. Lindíssimo. O quê? A luz? O Tejo? Os Jerónimos? O Bairro Alto? As Docas? Os pastéis de Belém? Não!! O Cemitério dos Prazeres. Diz-me que tem dezenas de fotografias.

Jazigos onde apetecia morar,





gatos passeando-se metaforicamente sobre e entre as campas e a espantosa vista para a ponte para a outra margem .







E que belos epitáfios, tirados do flamengo, no? Sabe, em Portugal canta-se o fado, não há flamenco… é parecido, mas diferente.
E chega a minha companhia e despeço-me, muito interessante, vaya.

Educada e polidamente, também ela se despede, prevendo que eu darei uma morta muito calma. Superior piropo.

Nnanna, Meu Anjo, que achas de, em consonância

Finalmente, aqui jaz quem nunca dormiu o suposto suficiente?

Ciprestes e ciprestes deles, reflectidos em laguinhos.

10 comentários:

nnannarella disse...

Lizziel, meu muito querido Arcanjo de Salvação, que és tal e qual como o da estátua (tirando os bandós), até aquele gesto de pôr a mão sobre o coração, não vá ele soltar-se rumo aos pináculos góticos do contentamento dos nossos ciprestes azuis e dali saltitar em mortíferas acrobacias (mas eu apanhava-o, está descansada…), meu Arcanjo, dizia eu, considero o teu epitáfio uma filigrana tumular da mais alta excelência, pertinência e precioso humor (negro, claro). Mas espero que ainda falte muito tempo para o mandares gravar…

Lizzie, não tenho lápides, nem epitáfios, nem mausoléus, nem ossários, nem caixões das mais nobres madeiras, nem baixos-relevos, nem estatuária, de beleza e dignidade bastantes para te agradecer tão bela marcha fúnebre, que poria roxas d’inveja aqueloutras dos santinhos, com seus velórios de arquinhos e balões.

Mais grandiosa e simbólica do que o Jazigo do Duque de Palmela, que até tem cenotáfio em mármore de Carrara assinado por Canova, nessa formosa Terra dos Calados dos Prazeres, é a minha alegria e gratitude por esta cemiterial dádiva tua, que corresponde em absoluto a um dos meus prazeres da vida e que praticamente descreve os pequenos detalhes dos meus passeios e observâncias (incluindo os gatos!).

Quanto à alma-gémea flamenca, hei-de estar atenta aos sotaques quando voltar a deambular por entre as eternas saudades. Pode ser que a encontremos um dia, fotografando um lírio gravado na pedra, um linho a espreitar de um caixão a delir-se de caruncho ou as carumas, que parecem vermes, sobre as campas rasas.

Até amanhã. Na Rua 7. Junto ao tanque, sob os ciprestes. Leva o teu pauzinho. Só para mins e só para mins deles.:)

Graça Brites disse...

As almas atentas reconhecem-se e deve ter sido por isso que essa do cabelo ripado meteu conversa contigo. :) Provavelmente até já foi vossa interlocutora nessas narrativas e deambulações por entre campas e ciprestes.

Parabéns a vocês!

Cici

Lizzie disse...

Ai, Meu Anjo, que até me apetece chamar-te alma penada, não fora essa tua traquinice de soltar arquinhos e balões sempre que te dá na gana (para além de saberes distinguir fado de flamenco) coisa que, suponho elas não fazem na sua mítica deambulação. Pelo menos é o que me costumam, não sei se com conhecimento de causa, chamar quando me levanto de manhã ainda viradinha para o além.

E olha que ainda há bocado me disseram que sou parecida com a estátua, mas com outro corte de cabelo que aquele não se usa, e tens toda a razão quanto à pose da mão. De qualquer forma, se vires o meu coração a vadiar por aí, agarra-o não vá ele perder a bússola com que nasceu.
Que o resto do dia te corra bem.
Lírios e lírios.

Lizzie disse...

Obrigada Cici pelos parabéns e pelas almas atentas.

Sabes que cada vez que chego àquela livraria de que tanto gosto, o gerente que também é atento aos clientes, vem logo ter comigo por motivos de sonoridade linguística: tenho que dizer arranha-céus , estou com os azeites, e outras porque ele adora ouvir. É uma das minhas penitências para investir quando chegar a hora de escrever o meu epitáfio: ensinar-lhe algumas expressões portuguesas impossíveis para a fonética espanhola.
Ele há com cada cruz…

Beijinhos

pentelho real disse...

soberbo blog. textos e imagens escolhidas para ilustrar.

e as ideias, sobre tudo...

Lizzie disse...

Alteza:
perante vós assento o joelho direito no chão.

nnannarella disse...

Meu Arcanjo, tenho andado a folhear o meu moleskine d'epitáfios, mas não encontrei o que me satisfaria.
Suspírio de dilectude, porque me sinto a pousar em terra pousia...
Neste momento, descontraio-me à sombra d'um ocre armagnac, cor de algumas daquelas folhas das árvores de Boston e daquele das Amoreiras.
A ironia da história é que eu gostaria de ser cremada, depois de não precisarem de mim nas lições de anatomia...:)
Bem, a esta hora, que tal...

pára, viandante, e fuma um cigarro, que sobre o que aqui jaz adeja um espírito que ainda sofre d'abstinência...

Ora pois: fogos-fátuos e fogos-fátuos...:)

Lizzie disse...

Oh Meu Anjo, já estou tão atrasada e tu a fazeres-me rir assim...

Olha, referindo-me ao que já está, também muito apressado, lá em cima

Kentukys e Kentukys

mais mundo vivo visto pelos teus olhos.

Haddock disse...

literatura epitafial??
despertastes-nos a curiosidade, lizzie, embora já tenhamos visto uns exemplares memoráveis...
ainda não pensámos no nosso, mas como já avisámos que dispensávamos o arrepiante jazigo e que queríamos ser pózados e de preferência depositados junto ao nosso pé de laranja lima, não vemos verdadeiro interesse no epitáfio...


vénia...

Lizzie disse...

Capitão:
que boa ideia a vossa! Servir de adubo à literatura brasileira?
Nós gostávamos de ir para o fundo do mar já que temos a mania dos banhos. Uma questão de coerência.
E epitáfio escrito na água, é sempre flutuante.Mortas mas não fixas.

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