segunda-feira, 24 de março de 2008

A janela da viagem









As viagens tornam a memória indiscreta.
Ligo a ignição e lembro-me de muitas partidas: aquele momento irreversível de partir, porque mesmo que se arrepie caminho, já lá ficou como um selo: a intenção e o acto de deixar para trás o que lá se viveu.


Sei lá porque é que me lembro de forma viva e nítida do rapaz fardado de bancário, que indiferente aos balanços do metro, não despegava os olhos do livro obeso. Tinha ar de quem partia para o sítio onde nunca irá. Exilado discreto num campo de letras.







Quantas vezes parti de Lisboa? Quantas vezes em mim se transformou a cidade numa massa estanque, segura e sustida pelo Tejo, embrulhada num movimento cristalizado na memória. Neste caso só tem vida o que se vive. Quantas vezes lá deixei, paralizada a minha idade?
Não corras tanto, não vai ninguém atrás de ti, é um sussurro conselheiro vindo de um recanto de um neurónio escondido na sombra da lembrança. Volto a sorrir. Volto a mentir na rapidez compulsiva das rotações.







Vai com cuidado, não corras…
Corria só na liberdade que vivia naquela casa, férias e visitas, lá ao fundo do verde, ponto de cal na origem, na aprendizagem de correr solta.







Voltou a tornar-se memória, quando ainda a vejo pelo espelho retrovisor e ainda memória mais assente quando a curva a, ou as, apaga.


Passo a fronteira, agora morta de vigilantes, para onde não nasci com vocação de ser estrangeira. Só mudo as palavras de acordo com os olhos dos que me esperam.


Num sítio com cheiro antigo.







A pedra exala um perfume teimoso de tempo. Convento que se cansou da clausura e se abriu ao mundo. Andam por ali muitas eras com luz comum a condizer. Entramos num mundo sépia que não vivemos.






Já não nascemos a tempo de conhecer aquele vagar. Vamos ali pedi-lo emprestado. Sem horas, a não ser o anunciado cante a palo seco da Paixão, sexta-feira às três da tarde, por uma cigana doméstica no flamenco choroso.








Nem que bebesse uma pipa da adega a poucos kilómetros, onde existem portas que parecem famílias,






teria tal voz sofrida, rouquidão tão arranhada no sangue.



Há-de ser no sábado, que as mulheres deixam os maridos e filhos em casa e invadem por umas horas, o terreno do vinho em grande algazarra de cantos e línguas soltas. Vestem-se de freiras possessas por Diabo doido, e emborcam uma espécie de sangria até o corpo pedir dança à vista do monumental e sóbrio cruxifixo.








A chefe da confraria tocará o sino de recolher da festa sem nome fixo que se perceba.


Na cidade próxima, entre tapas, ouço da boca de um professor improvisado, a lenda medieva destas gárgulas, aqui amante fugidio,








depois de ter deixado a amante com um filho nos braços, mulher que mãe, se tornou indiferente a amores antigos e legítimos.






E perde-se o tal vagar com o regresso, motor ligado para o comum dos dias que reclamam pressas, horas marcadas.


Vive devagar, não vai o futuro atrás de ti.

Para corrida, já basta a do tempo.



7 comentários:

Lizzie disse...

Para que conste, e sem receber comissão, o carismático ex-convento franciscano do séc.XVI onde se repousam as canseiras, continua a chamar-se Convento de Nuestra Señora de la Luz e fica perto de Brozas que por sua vez pouco dista de Cáceres.
Tanto quanto percebi, ali à volta, cada vez que se tropeça numa pedra está a cometer-se um delito histórico.
Quem se exceder na prova dos vinhos, pode ir beber água da fonte de S. Gregório e aproveita para tratar também a asma, o reumatismo, as litíases renal e biliar, a úlcera gástrica, o torcicolo, a má circulação… e o que de mais cada um padecer ou se lembrar.

Emma Larbos disse...

A velha Extremadura. Grande bloco de pedra monocolor, toda gravada no horizonte e onde a todo o momento esperamos ver surgir almas antigas. A luz é intensa e a paisagem árida como a do alto Alentejo, só que mais pedregosa, povoada de blocos de rocha que parecem ter ali sido deixados cair descuidadamente do bolso dos gigantes primordiais.
Tem o clima espiritual dos desertos, outrora povoados de eremitas e outros espirituais que, reunidos em convento ou isolados em cabanas construídas com pedra solta, ofereciam os olhos e o espírito à intensidade da luz. A material, que diluía os contornos do quotidiano, e a simbólica que se revelava nos jejuns e nos silêncios ascéticos. Por isso, era fácil dar de caras com os demónios, que familiarmente povoam estas paisagens, se acototovelam com os homens e lhes esticam a perna em rasteiras imaginativas (conta o amigo Paulo, cap.11º,2ª parte, na Serra de Ossa).

Lizzie disse...

Mas que inspirado texto o teu, Mi Emma, que até te imagino de olhar vadio pelos mistérios daquela paisagem, que tão bem descreves, a tentar decifrar as loucuras situadas algures entre o céu e a terra.
E deixa-me também falar da noite que nesta altura ainda se faz cedo e é vagarosa.
Com a luz apagada, entra a dança das sombras nas paredes, dos arbustos e das aves que se atravessam à frente da lua. E os gritos delas, algumas corujas, outras mochos e outras que não faço ideia. Por acaso lembrei-me se não seriam fantasmas de santidade eremita, ou as almas apaixonadas das lendas escocesas, ou os doidos perdidos no vento da Mancha, aqueles que só andam à noite em peregrinação pelos campos.

Lá voltarei no fim do Verão, se puder.
E é pena que sendo um antigo convento franciscano, tenha tantos móveis. Devia ter uma decoração mais sóbria. Foi o que também acharam uns japoneses que lá estavam. Enfim, não há belo sem senão.

Emma Larbos disse...

Tens razão, em casa de franciscanos impõe-se a pobreza.
E os japoneses, com as suas arquitecturas despojadas também gostam. E eles estão por todo o lado. É incrível como não se pode ir a nenhum ponto turístico europeu que não se encontre logo uma centopeia deles, todos organizadinhos e caladinhos a sorrir e apontar as máquinas.

Lizzie disse...

E voltámos a encontrá-los ao pé das gárgulas, cheios de espanto e lá vai de clicar nos oblituradores, nem sei como é que as ditas não lhes caíram com as bocarras em cima. As que a tinham: achei graça a umas simétricas, de barba arrebitada, com grandes olhos expressivos mas sem a dita.
Os japonesinhos da terceira idade, num inglês muito cheio de gestos e vénias fizeram (-me) grandes elogios ao Mosteiro da Batalha, aos pastéis de Belém e a Sesimbra. Correm mesmo tudo. E adoram boquerones, claro.

Haddock disse...

finalmente uma história com moral séria, contrastando com as que nos têm sido dadas a leitura...
"festina lente", pois então...
prudência na pressa, mas nunca devagar (ou seria: "divagar"??)...
sejaide como forde, garantimos-vos, lizzie, que seremos cautelosos nas provas, de modo a evitar a água de s. gregório, cujas propriedades terapêuticas fazem adivinhar ser de mau paladar...


vénia...

Lizzie disse...

Capitão:
somos de pensar que melhor se divaga devagar que as pressas são normalmente adversas a grandes pensamentos.
E vasculhando olhai que todas as histórias têm moral séria, embora não me pronuncie se é boa ou má.Tal coisa depende de cada um que tem a sua.
E ficai vózes descansados que a fonte de S.Gregório não nos pareceu mal saborosa. Também quando nela bebemos estávamos cheias de sede, diga-se em abono da verdade.
Estávamos com esperança que nos lavásse de imediato a dor no nosso pézinho, mas se calhar só com a continuação já que ficámos exactamente na mesma.

Continência