sexta-feira, 22 de novembro de 2013


do antigo cofre das palavras

Conta-se que naquele tempo as mulheres ainda eram mais filhas da terra que do demónio.

E que se juntavam à volta dos castanheiros quando o sol se tornava pequeno, tímido quando não desaparecido. No que é hoje o mês de Novembro.


Os castanheiros eram as árvores onde se guardavam as palavras que as mulheres mais antigas tinham dito. Como se verá.

Neles também se escondiam as palavras dos poetas e dos astrólogos, aqueles que nos astros viam os futuros e as causas das consequências dos presentes.

Estas palavras só viviam nas vozes das mulheres e só elas sabiam ouvi-las porque as letras e os pensamentos ainda  eram pouco visíveis nos pergaminhos, nas tábuas ou nas pedras.


 As palavras tinham  tendência para habitarem o coração mais guardado das mulheres.

Diz-se que debaixo dos castanheiros se sentavam.

 A entrelaçar palavras que se transformavam em histórias e inventavam paisagens e mundos nunca vistos.

Tinham palavras que coloriam com luz, tão alegres como as asas dos pássaros.

As palavras ditas à roda dos castanheiros batiam à porta silenciosa e envergonhada das almas, entravam e varriam todas as mágoas e más lembranças.


Com elas as mulheres criavam beleza.
 Diz-se que eram criadoras para além da água suave dos seus ventres férteis.
É o que se diz!

Então, com as palavras também teciam canções.

 E também bailavam danças de roda sem juízo algum.



As palavras chegavam ao incrível ponto de já não se casarem umas com as outras e parecerem perdidas, sem rumo onde poisar o sentido.

Alguns homens viam-nas de longe e ficavam com medo das palavras que não conheciam.
 Há quem diga que temiam a verdade daquelas palavras soltas.

Outros sentiam-nas sábias.


Depois as mulheres voltavam para as suas casas e afazeres.




 E em cada ano guardavam uma castanha na arca do seu sustento.

 As castanhas mirradas tinham companhia nas rugas das mulheres.

Talvez as castanhas fossem cofres de palavras.

Quando alguma mulher morria, as filhas ou as irmãs enterravam as castanhas da falecida junto à nascença do tronco dos castanheiros.


Assim as mulheres seguintes podiam ouvir, falar, cantar, dançar,  as palavras antigas.


Depois, mais tarde, vieram aqueles homens que reuniram todos os deuses num só.


 e gritaram pelo mundo, esquecendo-se das suas mães na terra e no céu , que nas palavras das mulheres estavam todos os males do Mundo.


Os castanheiros viram chamas de mulheres. E alguns receberam as pedras que lhes falhavam no corpo a eles preso.


Mesmo assim, ainda hoje já tarde no tempo, em terras da Irlanda e mais a sul sem tocar no Continente,  algumas mulheres guardam uma castanha de cada ano.

A castanha em que estão todas as palavras inventadas. Talvez todas as palavras dos poetas mesmo que silenciosos.

 Talvez todas as palavras dignas de serem dançadas.


quinta-feira, 14 de novembro de 2013


do Tabaco à escada de serviço de Cristo.



Antes de mais, deixem-me dizer-vos que, apesar de fumadora, ainda que superficial sem conseguir nublar completamente os alvéolos, nunca fumei sem perguntar se incomodava os circundantes nem baforei os interlocutores ainda que mais fumadores que eu.

Não por snobismo mas por civilidade, acho que fumar e mascar pastilha elástica (coisa que,confesso, odeio sobretudo na versão betoneira, explosiva e visivel molde dentário) devem obedecer a regras de respeito pelos não aderentes às práticas.


Também se sabe que todas as ditaduras, descaradas ou não, visam impor modelos e comportamentos sociais novos . Arranjam-se bodes expiatórios e, não raro, bota-se meia (ou mais) sociedade civil a controlar outra meia. Das pequenas vigias se chegam a medos maiores.

No meio surge a hipocrisia: quem prendeu judeus, também lhes prendeu para uso próprio os bens. Os bens, ao que parece, nunca têm perfídia nem raça, nem preferência sexual, nem coisa nenhuma. Pois não! Adiante.

Como já toda a gente reparou, instalou-se uma verdadeira perseguição aos fumadores. Em Portugal, por enquanto, ainda não se lançaram as redes apertadas aos obesos, aos hipertensos, aos diabéticos, ou seja, ainda não se utilizou outra arma ditaturial que é a interiorização da culpa sobre a situação da saúde de cada um e, sobretudo, sobre o que tais fragilidades, bulimias e vícios custam ao Estado, logo aos contribuintes. Uma forma de interferir na liberdade, ao menos essa, da vida privada.


Tudo isto apesar dos fumadores, ao que me dizem que de fiscalista não tenho nada, pagarem oitenta por cento do custo do tabaco em imposto, imposto esse que na maior parte dos países vai integralmente para o orçamento da saúde pública. Noutros irá para espalhafatos ou obscuridades.

Segundo as minhas fontes, que são um simpático quiosque em Portugal e uma especializada Tabacaria em Espanha, cada vez as pessoas fumam mais, (consta que o tabaco é um escape para o stress e não só) tabaco mais barato de má qualidade, adornado de aditivos artificiais viciantes, produzido na União Europeia, pois claro, que os governos insistem em taxar cada vez mais em cada orçamento enquanto vão alertando, paternalmente e de lágrima ao canto da máscara, para os malefícios para a saúde e o bem estar. Próprio e alheio.


Sim, Senhores, já a Santa Inquisição não inscrevia o tabaco importado dos além-mares como vício de pecado mortal por este lhes manter os custos que estavam longe de ser pequenos. É só um exemplo.

Talvez esta como outras guerras, tenham em conta tudo menos os soldados.

Mas vem isto a propósito de em meados de Outubro esta que aqui vos escreve ter estado às portas da morte por num hospital o pessoal se ter centrado tanto na minha condição de fumadora que se esqueceu de diagnosticar a tempo e horas uma pneumonia galopante e sem paciência para sermões e problemáticas a que é alheia.



Era moda, por exemplo, no séc. XIX, os deprimidos, entre os quais Tchaikovsky, tentarem apanhar pneumonias como forma de suicídio. Felizmente, embora tentasse até gelar em lagos, o compositor que frequentava salões onde o tabaco imperava, nunca conseguiu apanhar nenhuma enquanto nos sítios condensados de gente mas com falta de ar fresco, como fábricas e tabernas e casas sem espaço atulhadas de gente, era uma das principais causas de morte.

Já vão longe os tempos em que o tabaco, na sua forma pura, sem lights e outros adereços, era considerado medicamento.

 Ideia copiada dos índios, grandes fumadores desde cedo e pouco atreitos a doenças respiratórias: ou morriam cedo ou duravam uma vida inteira sem grande tosse, asmas ou outras doenças da chamada civilização.


Como diz uma pneumologista minha conhecida, senhora de oitenta e alguns anos, com sessenta assumidamente fumados, o peso da mágoa, a fome,  os sobressaltos e as inseguranças matam estatisticamente muito mais.


Imagine-se que da primeira vez que fui à urgência, como adulta que sou, e face à primeira pergunta acerca da minha condição ou não de fumadora, respondi naturalmente, ou confessei, que sim.


Se tivesse ainda os 15 ou 16 anos que tinha quando roubava cigarros, para mim e para os outros, ao meu pai e às minha tias, teria dito que não depois de chupar rebuçados de mentol. Agora seria indigno esconder-me.

(Mas enfim, a bem da elegância, nunca tive o chamado " fumar operário", ou seja nunca segurei o cigarro entre o polegar e o indicador com a ponta do dito virada para a concha da mão, ou seja, vício escondido. Desculpem-me, mas se não falar em gestos morro.)

A idade torna-nos desbocadas e com pensamentos perversos como o de achar que esses cigarros Português Suave e SG Filtro, esporádicos e clandestinos, me fizeram bastante menos mal à saúde mental e física que as drogas que agora se inventam a cada oito dias (como a do balão), ou as bebidas com 70 e 80 graus, tudo servido ao mesmo estracto etário, ou menos, na via pública. Sem grandes alardes quanto à "morte lenta e dolorosa", qualidade dos espermatozóides ou fertilidades.


Com ou sem cheque ensino, sempre fui de opinião que educar é melhor que proíbir a não ser que se pretendam pessoas aparvalhadas logo à nascença. Por assim dizer.

(Claro que um mal não exclui o outro mas tudo depende em que lado os ilusionistas focam a atenção do público.)

Quando forem adultos, não sei em que termos a União Europeia fará então relatórios a contabilizar, como faz agora, o prejuízo na produtividade, por cada trabalhador quando se levanta para ir fumar um cigarro em plágio sem condena dos cálculos maquinais e financeiros de Henry Ford, um dos mais furiosos antitabagistas de sempre.

 Um dos protagonistas de mais uma batalha  de propaganda que então se instalou. Com Hitler e Churchill à mistura.



(Nos tempos que correm, quando colegas meus e eu nos levantamos para fumar um cigarro, quase nos sentimos Tommies (soldados ingleses da 1ª Guerra) nas trincheiras: esperamos que a raiva e a impotência face às circunstâncias vão no fumo que se dissolve pelo vento fora)


Isto sem falar numa seita religiosa que, quando as mulheres começaram a sair do aperto dos nós das gravatas e dos laços masculinos, quais serigaitas afoitas


(das botas e dos fatos de macaco haveriam de sair mais tarde ou quase ainda nunca), clamavam que o tabaco lhes haveria de fazer crescer barba e bigode assim como a dança as tornava prostitutas dado o desassossego da libido.


Continuando em matéria hospitalar, não escapei sequer à certeza de uma auxiliar de acção médica  de que , como fumadora, Cristo nunca me deixará entrar pela Sua porta principal porque Cristo não gosta de escravos do tabaco.

Como agnóstica respeitosa, duvido que Cristo ande por aí a falar destes assuntos, como mais um comentador político de serviço e duvido mais ainda que tenha tempo a perder com semelhantes minudências. Talvez até duvide da arquitectura das portas.


Já que é tão intima das opiniões de Cristo, ai o Pastor é que é? diga-Lhe que não gosto de café mas que bebo um whisky quando chego a casa, sentada no sofá, com gatos fumadores passivos  e, já agora é assim, sabe? a gente distrai-se e depois vive...com pitadas de prazer aqui e ali...e depois morre...todos...até os saudáveis...



fiquei a saber,também por outros, que os hospitais não têm dinheiro porque nós os fumadores, lhes sugamos a medula.

Sei lá se a eternidade se mede pelo fumo ou pela falta dele...você sabe, Dr.?



Não fosse já a prosa tão longa, escreveria mais.

Sobre a estética  do fumo no cinema.

 De como em Fritz Lang a intensidade dos pensamentos se media pelo fumo  dos personagens. De como geravam belezas dramáticas de cinzentos.


Ou, mais tarde, rebeldias em James Dean: o cigarro ao canto da boca como um desprezo magoado.

Ou de como as sevilhanas, operárias fumadoras e insubmissas das tabaqueiras, como uma tal María del Carmen García, foram desaguar em óperas e outras artes.


Ou de como, sobretudo a partir pós 2ª Guerra se desenvolveu, inspirada em épocas anteriores, uma linguagem codificada e teatral do acto de fumar nos salões de baile. Nos vários salões de baile. Nos vários escritórios. Nas várias casas. Linguagens de sedução e poder. De guerra e de paz. De revolta ou submissão.

Agora fumo muito menos porque não me apetece fumar mais do que fumo. Obedeço às indicações do meu corpo. A única entidade, conjuntamente com a alma, a que me apetece obedecer.

Fico-me, com tanta culpa que ouvi, com as palavras de um escritor inglês de que não me lembro o nome: o tabaco extrai sabedoria aos filósofos e fecha a boca aos tontos.

De qualquer forma, duvido que, qualquer dia, vos venha dizer por que porta entrei. Com ou sem cigarro na ponta dos dedos.