sexta-feira, 20 de setembro de 2013



De como
" O olho acostumado ao pó, depressa suporta a areia".



Foi deste provérbio judaico, avisado e avisador, que me lembrei, ali deitada no sofá, imóvel, presa nas placas eléctricas que me espalham durante uma hora diária, formigas histéricas pelos ombros e braços.

Depois das mãos, não sei para onde vão. Talvez infectem a televisão. Talvez comam o futuro do mundo. Não sei.


Também vou pensando que é inútil ter memória do que atrás aconteceu, qual enciclopédia. Mais importante, Senhores, é saber o PORQUÊ e o COMO do acontecido.


Tudo isto porque:

na televisão aparecem imagens da Novatada (praxes académicas para caloiros).

Corpos sujos, caras pintadas em simbologia tribal de que desconheço o nome, cola de contacto nos cabelos, serviços sexuais forçados, com e sem objectos, sem desejo nem remuneração que o amor é sentimento que parece ter ficado guardado na literatura antiga, aborrecida, obrigatória para se chegar ali. À Universidade.


Raparigas e rapazes, sobretudo raparigas, já sem fôlego e pouca roupa, rejubilam: passaram o heróico teste de vítimas, com glorificação nos respectivos facebooks e, para o ano, serão elas e eles os carrascos.


Segue-se uma entrevista a um Chef italiano.


Foi encarregue de confeccionar um jantar, anual e em Ibiza, para vinte e quatro pessoas de várias nacionalidades.
 O manjar custa UM MILHÃO de EUROS.

A repórter gagueja. A apresentadora no estúdio perde as palavras e faz contas: quarenta e dois mil euros por comensal.

 O Chef mantém-se seráfico e diz que não é caro dado o requinte. (Vá-se lá saber o preço da bofetada na Moral e na Decência nesta bolsa de descaro...)



Mostra os acepipes raros, que a mim, que sou de alimento, me deixariam cheia de fome, servidos em esculturas com diamantes e ouro.

Está certo que a televisão altera a realidade das coisas mas a mim as tais supostas esculturas lembram-me pechisbeque de loja de chinês, em versão de suposto barroco ibérico mas inspirado em imagem recolhida por máquina fotográfica avariada, editada em Photoshop por um amador míope mas eternamente sorridente.

O Chef acaba por dizer, sem nomes, que alguns dos vinte e quatro são personagens do futebol. Se comerão com a boca fechada, é questão que me intriga mais que me atormenta. Não fui convidada! Não percebo porquê!


Agora é o Toro de la Vega em Tordesilhas. Ou perto. O de hoje chama-se Vulcano.

Trata-se de festa em que o bicho é de tal forma torturado que até alguns dos defensores das touradas têm um ataque público de compaixão.


Alguns comentadores confessam que não conseguem ver as imagens. Eu também não!

A população justifica a crueldade pela orgulhosa tradição.
 Já vem da Idade Média.
 Garbosos mancebos universitários, porque os livros não ensinam tudo ou às vezes quase nada, dependendo do cérebro que os lê, ostentam as armas da tortura.

 A extrema direita e a extrema esquerda regurgitam palavras de louvor às glórias populares: uns pela identidade regional da raça, outros porque o povo é sábio e soberano.  Eterno, porque sem tempo. Infalível na razão e no impulso. Como convém.



A polícia protege os manifestantes pelos direitos dos animais, ou da civilização ou das duas coisas, das pedras dos festejantes. Uma Intifada de território consolidado. Desde a Idade Média.


Ai, Senhores, temo que se por ali fôr viajante, os meus olhos verdes me traiam a bruxaria secreta da cor e seja posta debaixo de lenha verde  que, como se sabe, era usada para prolongar os suplícios dos filhos do Demo. Ou os mal sentados no colo de Deus.


Menos mal, porque às 19.30, muitos em muitas cidades, foram lembrar que a tradição morre quando a cultura se espalha e a civilização deixa ouvir os gritos dos inocentes. Seja lá qual for o formato das cordas vocais.


Das notícias sobre o racismo na Moda e na Dança que começa agora a penetrar nas mentes mais distraídas, falarei depois.


Desliguei o aparelho formigueiro e, já com as mãos livres,apaguei a televisão.

Às vezes pedem-me frases ou pequenos textos para que os bailarinos lhes dêem corpo e movimento.


Desta vez adormeci o meu desvario. E lembrei-me de repente da Sophia:

Quando eu morrer, voltarei para buscar
os instantes que não vivi junto do mar.

(Cuando yo me muera, volveré para buscar
los instantes que no he vivido cerca del mar.
Que a Sophia me perdoe que era pessoa para isso)


Lá em baixo, na esplanada, estão alguns, tão novos e ainda entusiasmados, e que iam morrendo de susto com o desafio, que querem saber quem foi a Sophia.

 Fossem mais velhos, e mostrar-lhes-ia um do desencanto do Jorge de Sena. Mas ainda lhes é cedo. Embora já me seja tarde.

Mas enquanto conto o pouco que sei, aproveito para me esquecer das formigas e tomar um cacau quente.

À medida que o início da noite vai afastando as trevas.


quarta-feira, 11 de setembro de 2013


Da mulher que usava estrelas mortas no cabelo.

Não sei porque me lembrei disto agora.
Talvez pela luz de Setembro, pela cor do ar, pela brisa que acaricia o corpo como um amante delicado, pelo casaquinho de malha de algodão, por ter falado na casa, pelo cheiro dos scones no forno e a manteiga de cabra das Astúrias à espera, por o verde já andar cansado, por estar a ouvir as sonatas para violoncelo ( que é instrumento que tem som , beleza e veludo de Outono sobretudo quando entra em pas-de-deux com alaúde) de Zuccari, ou simplesmente porque a memória não obedece a mando de espécie alguma. Sei lá...


Na altura, eu andava demasiado ocupada com o bulício da descoberta, convencida, como toda a gente da minha idade e sobretudo aos dados a distracções, que o futuro não tinha fim. Pensando bem, nem princípio.

Por isso, entrei naquela casa como se um filme fosse, muito do lado de lá, se é que me faço entender.

 A medo. A personagem principal era senhora que com um olhar azul líquido,  bem capaz de cortar ilusões e vaidades logo à nascença. Como é comum no temperamento hiperrealista judeu. De medir a expressão dos corpos ainda que parados.


 De ter sublinhados mesmo nas letras mais apagadas e gastas que ninguém se dá ao esforço de ler.
 A senhora tinha a sabedoria e a sensatez de armazenar tudo o que o tempo lhe tinha dado.

Não me vou demorar na casa, uma daquelas que são construídas e decoradas para se viver o que se é e não só para se estar como se adereço se fosse.

 As casas a que John Dowd  tem dedicado metaforicamente pintura e onde vou alimentar nostalgias da aragem que não esqueço.


Naquela casa, a Senhora tinha posto em conversa todas as Artes que lhe tinham completado, ou construído, a vida como seguidora de Wagner que era.

 Arte que a incluía sem que desse por isso.
 Há pessoas assim: mesmo com pinceladas erradas, podem ser uma obra de Arte. Pois podem, quanto mais não seja pela Arte que discretamente acordam  nos outros.


Só anos mais tarde ganhámos maturidade para perceber que a memória, sorrateira, tinha filmado a personagem secundária que tinha aberto a porta. E mal sabia a personagem que haveria de correr mundo noutros corpos, acompanhada de muitas músicas e palavras, até estas em castelhano pedidas emprestadas a um poeta:

" Dibujaba ventanas en todas partes
en los muros demasiado altos,
en los muros demasiado bajos,
en las paredes obtusas, en los rincones,
en el aire y hasta en los techos.
..." (Roberto Juarroz)


Era criatura atarracada, um concentrado maciço de gente sem esquinas de ossos que se desenhassem.

 Mais criação de Paula Rego que de silhueta Dior, tão em moda no cinema em modalidade Sarita Montiel: muita pestana postiça, espartilho com peito de ogiva nuclear impaciente na espera de explosão, tranças matemáticamente geométricas, bronzeado cosmético, traje imune à poeira da pradaria.



Índia do Texas, era conhecida por Apache.
 Não que o fosse exactamente mas porque o nome Apache dava mais jeito que outros inpronunciáveis com aglomerados de vogais ou consoantes.

A Apache tinha sido adoptada pela Senhora quando era uma silenciosa empregada da limpeza numa companhia de dança do Novo México.

 A Senhora admirou-lhe o quase constante mutismo pouco subserviente e altivo e a forma como parecia desenhar movimentos imaginários nos bordados abstractos das mantas de lã com que se ocupava nos momentos em que os bailarinos transpiravam o chão que ela haveria de limpar.


Acabaram por ir para o Massachusetts.

A Senhora para a casa principal e a Apache para um anexo.
 A única mudança que Apache  fez, a partir de então, foi para a casa grande quando repararam que tinham idade para se sentirem mal à noite. Ou durante o dia. Ou quando a solidão se esconde melhor com companhia.

Soube que nunca pôde casar e parir até à exaustão uterina, como lhe era destinado pelo género do nascimento, porque tinha sofrido alta febre amarela.


 Na sua tribo considera-se que  tal infortúnio coze o cérebro para toda a vida e não há homem que queira uma mulher de miolos cozinhados. São melhores as mulheres de pensamentos crus.

Não acredito que fosse pela febre mas de facto, do pouco que lhe ouvimos da voz  arranhada, parecia que as palavras lhe saíam a arder.
Sei lá porque coisa, as primeiras sílabas saíam pujantes e as últimas não passavam de um murmúrio. Como o percurso da labareda que se dilui no ar.

Também não se ria porque tinha os dentes tortos com alguns medrosos de serem adultos. Mau agoiro para a sua gente habituada a usá-los como ferramenta de amor e guerra. O riso morava-lhe nos  ombros. Sacudidos.

A Apache já estava habituada às mil repetições das mesmas frases musicais.
Na casa, habituou-se aos diálogos surdos com livros que nunca soube ler.
 Aos movimentos solitários em frente ao enorme espelho onde a Senhora e a sala cabiam.


A Senhora deixou de estranhar as ausências da Apache, bosque dentro  quando a Lua ia cheia. E em equinócios e solstícios.

 Aliás, mais tarde, agradeceu as poções secretas feitas de ervas mágicas sobre as articulações gastas pelo movimento teimoso e sem parança.


Também deixou de notar o odor a petróleo com que a Apache massajava o cabelo, depois da touca pastosa de gema de ovo. Se um fortalecia o outro dava brilho e fortalecia ainda mais.
 A Senhora, às vezes, chamava-a Apache Sansão.

Quando a conheci, tinha uma longuíssima trança de prata reluzente enfeitada com folhas de hera.

 Dizem-me que eu disse na altura que ela andava com estrelas mortas no cabelo.
 Não me lembro. Mas devo ter dito porque ainda é isso que me parece. Se fechar os olhos e ela voltar. Lá do escuro do passado.

Sei que depois da lição, ao som de Zuccari,  entrámos um bocadinho dentro do bosque para ver as travessuras brincalhonas dos esquilos.

O sol já ia a meio caminho para o sono. As sombras eram já longas mais cedo.


No jardim, vimos a Apache ajudar a Senhora a sentar-se e a Senhora a puxar um pedaço de manta de movimentos para os ombros da Apache.
 A Apache já se ia esquecendo que tinha frio. E fome. E que a sopa ferve com água. Disse-nos a Senhora. E que ia mandar construir um muro ou vedação no limite do bosque.
 Suponho que era para a Apache ficar com as viagens presas ao chão.

Quando entrámos para o carro já estavam sentadas e acomodadas. A Senhora lia.


 A Apache olhava para lá da espessa cortina das árvores.

Hoje, a este som de todas estas cores e silêncios apetece-me chamar Setembro.
Só Setembro.
E nada mais que Setembro.