segunda-feira, 24 de junho de 2013

...



 Crónica da  Lua Cheia, passando pelo quase, sei lá, Museu Imaginário das Palavras.


Nesta noite em que os lobos cantam glórias e tragédias de solidão irreverente à Lua Cheia, nunca posso deixar de me lembrar do que tanto me (nos) deixou rasto na pequenez do que sou face a um mundo que, às vezes é tão grande que parece deixar as palavras num museu imaginário.



Por aqueles anos oitenta, as companhias privadas de dança, as orquestras e vários outros artistas de outras várias artes, viviam de mecenato de empresas, de universidades, sinagogas, igrejas protestantes desde o nascimento à ressurreição de Cristo passando pelo Baptismo.



Por uma cultura, estranha na Europa (com excepções) mais virada ao conceito de caridade ou voluntariado, de contribuição para a  Comunidade, era obrigatório fazer espectáculos em territórios esquecidos como hospitais, prisões ou centros de pessoas que desistiam de viver de forma gregária correcta e bom comportamento, como veteranos de guerras ou sem abrigo. Onde fosse considerado útil e preciso para além  do bilhete comprado e da palma correcta.




Foi assim que fomos parar a um hospital psiquiátrico nos arredores de Boston, situado romanticamente dentro de uma moldura de carvalhos, com cheiro a maresia e brisa que trazia, sobretudo aos de cultura inglesa, risos absurdos de duendes, fadas, piratas poéticos e outras criaturas soltas na floresta em início de Verão.



Já agora e para quem tenha interesse, acrescento que as performances teriam que ser curtas, calmas, sem gestos bruscos ou agressivos. Suponho que seria tal norma para evitar que a loucura lesse literalmente a substância das coisas.

 Talvez a loucura reconhecesse o seu início e fundamento. Nesse caso, imagino que talvez seja tão doloroso como para a sensatez mas não sei nem sou ninguém para saber. Ponto final.




A mim coube-me-me uma versão fleumática de Ferruccio Busoni sobre uma chaconne de Bach, movimento acompanhado por um finalista bolseiro de piano, russo de origem, boa sensibilidade sorridente mas muito eslavo na tempestade e confusão de carácter.


Levaria eu páginas sem fim a descrever cada um dos espectadores que me foi dado conhecer num lanche ajantarado, assim de perto e sem encenação cinematográfica ou literária, depois da performance. Era também costume confraternizar e ouvir  perguntas e curiosidades dos espectadores.As respostas, essas, ficavam muitas vezes encolhidas ou suspensas.

Destaco  um homem que nos incomodou porque não é fácil, convenhamos, com um olhar, ter todos os nossos labirintos da alma expostos e imunes ao segredos.
Imaginai o que é serdes lidos em versão integral sem revisão, sem sombra de refúgio.


Claro que me lembro de ser demasiado nova para manter uma conversa de alto nível político com George Washington,


 de ser também demasiado ingénua para ser conselheira sentimental de Zsa Zsa Gabor



 e que sabia eu de física teórica para discutir as linhas curvas do Universo já especuladas, em conspiração, pelos Templários que, por sua vez, estão na origem da Maçonaria?

Mas o que nunca nos passou pela cabeça foi sermos convidados para jantar e ter intimidades cúmplices nos aposentos privados da Lua Cheia.

Tratava-se de senhora na chamada meia idade, opulenta de carnes, Rubensiana da melhor colheita Barroca mas de fenótipo irlandês ou escocês, em que se pressentia uma sensualidade bastante insinuante, digamos até abrangente e generosa, em que nenhum género, masculino ou feminino, seria excluído da dádiva.



Por ela ficámos a saber que, pelas geografias remotas do Norte da Europa, depois de as sociedades se terem transformado de matriarcais em patriarcais, os homens proibiam as mulheres de olhar fixamente para Ela, Lua Cheia, porque, seduzidas, perdiam o tino e dançavam contra qualquer poder e ordem que lhes fosse estranho.


 Tomavam os amantes e os sonhos que o sangue lhes pedia.

Tornavam-se espelho da vida: desapareciam como a morte na lua nova, renasciam mentirosas e cheias de manhas estranhas à racionalidade dos homens no quarto crescente,


 viviam até á última gota dos sentidos e do desejo na Lua Cheia, rendiam-se ao cansaço, abandonavam-se à melancolia no quarto decrescente. As mulheres, como a lua, marcam os ciclos da vida.

A senhora, levantou-se da cadeira, ergueu o copo de vinho transformado em inocente sumo de laranja, recitou textos e poemas, cantou, e confessou de olhos brilhantes numa alegria como nunca mais voltámos a sentir em alguém I´m the Moon, i´m plenty of light, came to me, kiss my dreams...

Levantámo-nos à ordem de o fazer. Porque naquele país os tempos nem se atrasam nem se arrastam.


Entrámos no autocarro. Em silêncio, como depois de um culto solene em que todas as palavras seriam incompletas ou excessivas.



Nem o facto de nos terem dito que a senhora, antiga professora universitária de mérito e publicação, pensava ser a lua, que se recolhia inerte quando o humilhado satélite andava escondido e perdido no céu, que ia ganhando força, timida,até ao extase, retirou a magia do que não se conhece.

Sabe-se lá quantos, hoje ou sempre não a olharão, lá para o alto e sussurrarão de voz mansa ou violenta, o pedido, a propósito de tudo ou de coisa nenhuma, talvez, mais velho da História:

kiss my dreams 





segunda-feira, 10 de junho de 2013



De como a memória pode caber até nos intervalos das reticências...


ou quase...



credo, olha para isto... nem sei por onde começar!

 Todo este trabalho porque sou uma espécie... de ponto final parágrafo que fecha um longo capítulo. 
A seguir virá uma página em branco. Já não vou ter tempo de ler o título quanto mais a prosa que se seguirá. Nem que viva cem anos...



os quadros? Esses ficam! A minha mãe pediu que ficassem comigo até ela fechar os olhos... as curvas que as pessoas arranjam para contornar a morte...como se fosse figura obediente à chamada pelo nome... morte, death, muerte...  passed away, enfim...depois escolho os que vou levar para casa.


Vamos primeiro aos caixotes... não, não, a essa mala! Como é que se abre isto?
Olha... é do tio António! Deixou cá ficar tudo quando ficou surdo...de repente.

 Não fazia ideia que também se tinha registado em Portugal.




 É estranho...não, não é esse, esse era António Augusto de quem já falei no blog, é outro... Antónios eram tantos...até me perco...

este vio-o poucas vezes. Mas era marcante. Inspirava uma certa bonomia. Como todas as pessoas que são discretamente felizes...

 nasceu, mas só vinha a Portugal em visita.  Sei que viveu em Munique, em Chicago, no Kentuky, em Paris, , em  Barcelona , no Brasil, onde se cultivasse com entusiasmo a música geneticamente negra:




 jazz, blues e stomp...chamava-lhe assim, era estudioso de stomp...ain´t no doubt about it...





...devia gostar mas para irritar a parente do violoncelo dizia que Liszt, Chopin, Schubert eram para senhoras, para damas sonhadoras no chá das cinco... e... ria-se muito. Ela? Muito composta retirava-se, tocava violoncelo, imaginava o piano nas sonatas a dois e chamava-lhes filhos da puta...



lembro-me sempre dele vestido à anos quarenta. Ombros à Roosevelt, calças largas com partida no diafragma...suspensórios, chapéu incluído, claro. Só o tirava em casa ou na presença de senhoras. Aí podias ver o reflexo do tecto no lustro da calvice, tão polida como uma rigorosa lente de telescópio...sim, como esse (Pablo Casals)



sim, casou novíssimo com uma vienence, amor desenfreado à primeira vista. Andavam sempre os três: ele, a mulher e a sogra, viúva precoce e militante. Para todo o lado..., durante uma vida inteira. Dois pedaços de terra feminina a segurar uma massa de ar musical, deslumbrada.



 A velhota esperou por eles. Morreu aos noventa e muitos. Suponho que ainda andarão juntos na eternidade e até depois disso, sei lá...



a mulher era quase em tudo, há muita gente assim: quase alta, quase baixa, quase bonita, quase feia, quase saudável, quase doente, quase viva, quase morta e... quase cantora lírica.

 Uma soprano que se refugiava do si bemól. Disso lembro-me, dele dizer que ela se refugiava do si bemól. Uma espécie de fronteira. Imagina o drama:ela a aquecer a voz, a iniciar o lied e, de repente...o si bémol e ela a retirar-se, com o pianista suspenso em pena e espanto...

...era muito branca, quase transparente. Lívida. Diáfana. Muito estética Pré- Rafaelita. Se não fosse pragmática podia ser romântica, pois podia...




 o que era cirurgião apelidava-a de Angiografia Ambulatória,



 o meu pai chamava-a de Glicerina, a minha tia mais morena de Carne Mal Passada, e, quando me deram um coelho albino, a primeira coisa que a minha avó disse foi ai que Deus me perdoe mas é mesmo a figura chapada da austríaca!

...não, não havia zangas, era uma mania que tinham, essa  das alcunhas...

olha a tesoura da poda...  esta toquei-a... e o ralador de cenoura mais a colher... não tive outro remédio... e  o tambor de lata da manteiga de amendoim...com o algodão...



bom, um dia ele começou a explicar a forma como os negros escravos faziam a música, como inventavam instrumentos , as tonalidades...  e ,com ele a tocar gaita de beiços também ferrugenta e a dirigir , o António Augusto,  o Padre do Altar de Baixo, o meu pai  e mais não sei quem, começaram a tocar...

 chamaram-me para marcar o ritmo com a tesoura da poda e ... lá fiquei eu, aborrecidíssima e a pensar, se calhar, no Cat Stevens



 ou no Jim Morrison que eram mais bonitos que eles todos,  a abrir e a fechar a dita e nem te passa pela cabeça o que se pode fazer com um ralador e uma colher... lá razão tinha ele.. 
...o meu pai ficou com uma espécie de, sei lá, clarinete de cana de açucar...flauta não, parecido com clarinete rachado... 
   
foi uma sorte a minha cadela estar a dormir... ainda a requisitavam para ladrar o compasso. Maluca eu? Capazes disso eram eles e se aparecesse o si bémol nem o gato escapava, ele que não se refugiava a nota nenhuma nos miados...

essas pautas

 e os instrumentos...1800 e quanto?...



 bem  podiam ser emprestados ao Jordi Savall para o estudo que anda a fazer*... e essas bóbines...ele gravava tudo...e guardava tudo como um tesouro com histórias dentro



...mas olha que ainda tenho aquelas músicas na cabeça... ...nunca me esqueci  e lembro-me de pensar como aquilo se dançaria, como se transformava em corpo. Quem me havia de dizer...



e depois tocou aquela que a Ute Lemper canta muito. Reconheci-a logo quando a ouvi pela Marlene Dietrich. Sabes qual é? Quando vir o cd, lembro-me do nome... tenho-o debaixo da língua...aquela...



...o Tio António dizia que era uma espécie de hino nos cabarets intelectuais de Munique,




 a última cidade alemã,  a resistir à febre da lavagem moral nazi...onde até se tocava Mozart por oposição à onda de Wagner e Beethoven (coitados, o que lhes havia de calhar em sorte) que Hitler tinha metido na cabeça serem o expoente da raça...tanto que até dava instruções aos maestros como interpretar de forma a sair coisa heróica e guerreira...

 a última a expulsar as bandas de jazz, a música degenerada que levava pretos, brancos, amarelos às pintas ao apetite sexual animal...



 uns voltaram para Paris, londres, Estados Unidos, outros levaram sumisso...



 o Tio António nunca conseguiu encontrar um tal George que era one man show... pois, músicos pretos, donos judeus, travestis,





 ai a Carmen Amaya também? Então mais uma cigana para compor o ramalhete e  sujar o solo ariano...

uma vez contou que os músicos de um desses cabarés começaram a tocar e a cantar o Kyrie da Missa em C Menor do Mozart, com instrumentos de jazz, com voz de blues e...e...começou a chorar. Não sei se era memória liquida se um orgulho concentrado que não aguentou a barragem do silêncio da dor...não sei...bom...coño!



o que é que vou fazer?  Não sei... depois penso nisso...tanta coisa...tanta responsabilidade...
o resto fica para depois...antes que a Perúa Esquizofrénica...então, quem sai aos seus não degenera...

varra a História e mate a madeira que já não se usa, credo, para fazer nascer um reluzentinho alumínio...aquele que imita bem e é fácil de manter...sem ferrugem nem caruncho nem Tempo...







desce para eu fechar a luz...
...cuidado com o terceiro degrau... sempre foi traiçoeiro...

sabes que eles não usavam óculos



 porque isso de miopias e assim era coisa de gente com defeito de fabrico,



 de judeu enfezado e rato de biblioteca...fecharam os oculistas, quase todos de judeus...cuidado... e depois...como é que é possível...

*isto porque o infatigável Jordi Savall anda a fazer um estudo, cuja primeira fase já produziu espectáculo maravilha, sobre a interinfluência que se produzia nos barcos, entre a música europeia e a praticada pelos escravos negros oriundos principalmente de África. Desta mistura, mas em dança, já falei...sei lá onde...