segunda-feira, 20 de maio de 2013



...dos passos em volta do moinho decapitado, de  Kiefer, do pó da História, das escadas e do que assim-assim mais me lembrar.

Às vezes visito este escombro de moinho.





Fica muito perto da minha morada portuguesa. Mesmo ali.

E vou  quando o sol já boceja, cansado da insónia da sua luz. Antes que as estrelas entrem na dança das suas próprias sombras.



Ali moram pedras que talvez sejam o intróito da alma da terra.

Tanto que delas crescem árvores. Parece a teimosia de um sonho.


Na primavera e no verão dão uma farta cabeleira ilusória ao moínho.

( Disse-me uma senhora que lhe disseram que o moínho anda decapitado de telhado e descarnado de arranjo desde as Invasões Francesas.
 E que um moleiro ali jaz. Já pó ou quase nada por castigo de guardar o trigo para quem mais pudesse por ouro fugir da fome. Tal aconteceu com quase  todos os moleiros em quase todos os moínhos trabalhadores de quase todos os ventos.)

 No outono fica loiro arruivado. No Inverno, fica com as veias dos pensamentos à mostra. É um faz de conta despudorado, este, o dos neurónios das estações.

 O moínho tem uma escada e, logo à primeira vista como os amores inesperados e sem programação, me lembrou que os degraus assim dispostos são a a ligação entre a sabedoria dos antepassados e os futuros. Ou o cúmulo dos sonhos. Ou das utopias. Ou do fim da vida que é a morte.



A simbologia das escadas é coisa muito imensa em todos os tempos e espaços da Terra.


 Apenas um exemplo: os humanos rejeitam tanto a ideia de fim  que as construíam nos templos para ficarem mais perto dos deuses, esses seres perfeitos ao contrário dos seres contrários que são os demónios. Todo aquele que toca ou vê a face dos deuses é eterno.


 E pode voltar ao princípio mais esclarecido, forte e capaz como se acordasse estremunhado de um sono que não passou de uma vida entretida a ser mal vivida.

Talvez por isso todas as laudas heróicas em guerras ou amores ou nas duas coisas falem no acto de acordar. Ou despertar. Vem a dar no mesmo. Penso eu sem certezas nos étimos.

Em todas as línguas. E em todos os tempos. Ficará para outra prosa.

E a olhar ruínas e escadas do moínho sempre me lembro de um dos muitos e vários artistas alemães em vários tempos e artes




 que mais gosto e de quem já tenho falado:

 Anselm Kiefer de sua graça.



 Pintou muitas escadas. Em quadros muito grandes. Espessos na tinta, na terra, na palha e noutros condimentos naturais em desuso.

Há quem pense que vive no sono. Há quem o julgue já acordado. Ou simplesmente sonolento.

Porque acordou ou adormeceu para as artes num tempo (anos 60 e 70)  em que o ofício praticado na oficina de pintar era coisa de vão de escada, muito lá em baixo. Sem inteligência nem mente.

 Arte antiga de mãos sujas. Paredes salpicadas. No saguão da Europa. O continente moribundo que se tornou asséptico, virado mais para os serviços de camisa branca imaculada que para os mesteres.



 Mais vale um doutor deslocado que um carpinteiro por gosto.
 Mas enfim...porque

ao menos nos países mais novos, como, sei lá, o Brasil, a Austrália, a Argentina, os Estados Unidos, os degraus tinham tantos ventos, alguns fugidos de tantas terras, que se oficinava em qualquer patamar. sem preconceitos.

E aqui lembro-me do artífice russo Rothko da minha paixão. Onde mais descanso que me exalto. Por exemplo e porque me apetece.


Usava-se muito na Europa as Artes Minimal e  Conceptual. Sem desprimor da minha parte perante nenhuma delas. Na dança os corpos também não transpiravam nem se torciam na dor de tendões rasgados. Estilizavam-se na doutrina.

Mas voltando a Kiefer, na sua Alemanha e generalizando muito, viviam-se duas escadas. Uma de cada lado de um muro.

A leste deste não se podia dar atenção à forma porque o conteúdo tinha regras definidas pelos poderes e mandava nela, na forma. Chamava-se Realismo Socialista.


Do outro escondia-se ou ignorava-se ou desprezava-se o conteúdo para dar total liberdade ao jogo da forma. Chamava-se generica e popularmente Arte Abstracta.

Kiefer criou a sua própria escada enquanto de um lado e do outro foi sendo chamado de mau pedreiro. Os poderes apoiados em certezas mas intranquilos têm sempre medo da História.

E o abandono da História é sempre, e talvez, o acto mais antidemocrático que existe. Acho eu, ouvindo o gramofone pingado das notícias diárias.



E isto porque Kiefer foi aos princípios do séc. XIX e começou a destruir a escadaria germãnica. Não a do povo germanico mas a  heróica, filosófica e mítica apoiada numa dialéctica achada por Hegel que, com diversas arquitecturas, foi sendo aproveitada pelos poderes dois lados do muro:

depois do sonho mal acordado e preguiçoso da Civilização Grega e do espreguiçar racional mas incompleto de Roma , chegaria o verdadeiro despertar, de olhos bem abertos para combater o caos , a desordem, a irracionalidade no mundo:  a Civilização Germãnica.




Toda ela enquadrada nos valores protestantes da sobriedade, do trabalho, da abnegação.

 No sacrifício da indivídualidade (cuja mãe foi a Inglaterra) face à massa.
 A massa de gente forte dirigida por um líder que, paternal e impoluto, se torna num mito.


 E os mitos podem devastar o presente mas esse é sempre o primeiro traço, ainda que rasgue o papel, do desenho do futuro. Glorioso, claro.


Kiefer tornou-se incómodo, ou como agora se diz, contestado.

Como todos os que mostram sem cerimónias nem discursos indecifráveis, o espelho ácido às  memórias e às intenções.

E tal como Pina Bausch,


 correu mundo. Andou  pelos territórios fracos, aqueles que se deitam ao sol e adormecem na espera. Como Portugal.

A pensar nisto regresso para casa
. Ouço os passos forrados a botas na terra.
 Aqui faz a mesma densidade de silêncio que na galeria onde vi pela primeira vez alguns trabalhos de Kiefer. Um som suspenso da confusão exterior.

Acabo sempre por me sentar.


E ouvir Bach.

 Dele, o que me apetecer ouvir.

Porque enfim, valha-nos a existência de escadarias tão imensas que nem sequer se podem dar ao luxo de pertencer a nenhuma civilização quanto mais às fronteiras definidas de qualquer país.

Sei lá eu que geografia ou deus tem a alma.