quarta-feira, 17 de abril de 2013




Da efervescência hormonal à voz emprestada passando pelo aumento do decote.

Se a directora técnica da farmácia não me tivesse dito que na sua aldeia de mil habitantes, perto de Jaén e nos finais dos anos 50, um dos filmes  piores do mundo tinha estado em cartaz três meses, matinés incluídas, com sala cheia de gente que, em peregrinação a pé, de bicicleta ou em camioneta de carreira, fazia fila na bilheteira


e se no Parlamento, Rajoy, primeiro ministro de Espanha, não tivesse ameaçado sair daquela espécie de reserva artificial de animais incompatíveis, chefiada por uma mulher com hábitos austeros de farda, que dá pelo nome de União Europeia

e se não me tivesse lembrado das noites gargalhadas de verão que passámos a ajudar uma amiga actriz de renome a compor imagens peripatéticas de mulheres postiças com exageros nos amores representados
não escreveria este post.

Ora saí à rua naquela manhã fria em Madrid e deparei-me com uma enorme multidão a cantar a Violetera, ruas e avenidas cortadas ao trânsito, cartazes de filmes antigos nas fachadas dos cinemas, ecrãs gigantes, fotografias nostálgicas sublinhadas com tratamento contemporâneo de photoshop e um cortejo fúnebre que parecia reunir o acervo de todas as floristas da metrópole.



Ia a enterrar a plebeia Maria Antónia Fernandez, manchega conhecida por Sarita Montiel, produto tão de exportação como o touro Miura, o Cola-Cao,


 os caramelos Solano, a água de colónia Tulipa Negra, os romances de Corin Tellado, ou a gastrite crónica de Júlio Iglésias.


Pareceu-me que tal manifestação de pesar era mais uma homenagem a um certo espírito selvagem da sensualidade quente dada pelo sol descarado dos países do sul do que profundo luto pela propriamente dita.


E também me pareceu que tudo aquilo não passava de um reforço, para não lhe chamar grito, da identidade da alma colectiva que faz com que a força dos componentes do sangue não esmoreça, ontem e hoje, face a espartilhos circulatórios.

Sarita Montiel foi aquilo que em Espanha se chama uma hembra, ou seja, uma fêmea, de corpo inteiro.
Não se estranhe o termo porque em tal país há uma linguagem desabrigada de qualquer contenção em relação a tudo. Não há seda nas palavras.

Sarita determinou em pequena que haveria de ser famosa e receber aplausos muito para além daqueles com que as velas dos moínhos da Mancha a presenteavam. Queria glória eterna. Queria marcar o presente e o futuro como se de um mito se tratasse.


 Foi para Madrid com a mãe e a irmã, pessoas que sempre a acompanharam enquanto andaram por esta vida.

Para além da pobreza e do analfabetismo, levava um colo generoso sem intromissão de silicone, umas pernas esculpidas num dia em que a perfeição estava bem disposta, uma silhueta Dior irrepreensível nos montes e vales, um rosto e uma expressão esfomeadas de carícias que, por exemplo, a mulher, perdão, legítima esposa, de Francisco Franco nunca , nem na indisciplina dos sonhos, viria a ter. Ou a inspirar.


 Como se sabe, mulher honesta limita-se a cumprir o débito conjugal em benefício da reprodução da espécie.


Levava também uma ousadia palavrosa e uma atitude que nenhuma barragem de decência ou modéstia conseguia conter:

sempre falou, por exemplo, dos muitos homens que teve como animais de estimação mais adoptados que adoptantes, como sempre afirmou ser incomparavelmente mais bonita que as suas rivais estéticas, a saber, aquelas coisa insosas chamadas Ava Gardner


 e Elizabeth Taylor


 esta última nascida num país, a Inglaterra, que segundo o manual de instruções do regime Franco, era produtor endémico de perfídias como a desobediência ao Papa, a sodomia (maricones) generalizada e sobretudo de mentiras quanto à democracia em Espanha .


Depois do México, onde se chamou Alexandra não sei quê, foi para Hollywood.

Contou em entrevista dada em casa ( que Deus me perdoe mas era difícil distingui-la entre os 5000 bibelots que lhe serviam de moldura) que não percebia nada da "jodida y puñetera" língua e que por isso se limitava a reproduzir os sons que lhe ensinavam. Bem poderia estar a dizer, no western, a Gary Cooper que este cheirava a alho em vez de lhe confessar que era a primeira vez que vestia um vestido de seda roubado no saloon.
Não interessa: acabou por aprender. Mérito o dela.


Quando voltou a Espanha, estava no auge o No-Do. Tratava-se de um noticiário obrigatório nos cinemas passado imediatamente antes dos filmes.

 Neles se falava mal de quase todos os países, se provava que Franco trabalhava tanto que produzia mais horas que um relógio gregoriano, se enalteciam virtudes rústicas como o passar fome em nome do desenvolvimento da maior e mais avançada nação do mundo e da alta coragem dos toureiros no alto domínio das bestas.  A lista não acabava.


Também estava em voga um programa radiofónico, patrocinado por uma firma de cosméticos em que uma Doña Francis, matrona que nunca existiu, dava conselhos acerca dos malefícios da perda da virgindade antes do casório e de como as raparigas teriam que ser as  fortalezas contra as armadilhas do seu corpo tão em contraste com a natural necessidade biológica e expansiva dos rapazes e homens.

E mais uns discursos de um padre oficial (repreendido por Pio XII  nos excessos) que descrevia aos putativos pecadores, com tal riqueza adjectivada de pormenor, as torturas praticadas no inferno, que os estimados radio ouvintes chegavam a ver chamas no congelador do frigorífico, de invenção espanhola, obviamente, recém adquirido para colocar no topo a imagem recomendada da Virgem Macarena . Ou a do Rocío.


Sarita foi então protagonista do filme El ultimo Cuplé, de que falo lá em cima e que transformou Espanha numa panela de pressão de testosterona com explosão onde menos se esperava nomeadamente em seminários, tais foram as desistências de vocações bem como em processos disciplinares em quartéis e outros castelos defensores da moral vigente.

De nada valeram as medidas urgentes de Don Tancredo,  senhor patrono da censura, para evitar a introdução diabólica de Sarita no imaginário colectivo.


Bem pôde o cura radiofónio e apocaplítico citar amiúde S. Inácio:

O corpo humano não é mais que um saco de podridão que lança humores pestilentos por todas as suas aberturas.

 Foi tudo tão eficaz como colocar uma porta no meio de uma lezíria ou  uma barragem num oceano.


(Franco que era esperto, face a esta derrota resolveu utilizar-lhe a imagem para criar a folclórica Marca Mulher Espanhola no estrangeiro. Juntou-lhe uns toureiros, umas praias, uns flamencos e o turismo disparou.)

Sarita, desbocada, punha-se a dizer que todas as mulheres deviam sair para a rua, trabalhar, amar e etc.


Muitas mulheres honestas desceram os decotes, subiram as saias, cruzaram as pernas em espaços públicos, recostaram-se nas cadeiras das esplanadas, desceram as pálpebras, pintaram as faces de um róseo afogueado, tingiram os lábios de um carmim dráculeano.

Toda a gente se esqueceu que Sarita não sabia cantar embora fosse uma grande cantora. Ninguém reparou que naquele filme, por falta de orçamento, não tinha sido dobrada, em play back, pelas extraordinárias e escondidas cordas vocais de  Lilián de Celis, como era costume.


Sarita fez outros filmes insinuantes do género. Em diversas versões consoante o público. Em Carmen,   Sarita despe-se e vai mandando as peças para o guarda prisional, que, respeitosamente, está de costas.


Nas versões exportadas para Inglaterra e Estados Unidos, Sarita mostra-se ao guarda ferido de embriaguez súbita. O público remedeia-se com as desafiadoras omoplatas e veio espinal até à cintura da actriz.

Nas versões para Portugal e Espanha, Sarita parece despir e mandar todo o armazém de indumentária das Galerías Preciados para cima do infeliz mas, aparece à impaciente ,esbugalhada e fardada criatura, ainda de saia comprida e corpete como se da Branca de Neve se tratasse.


Depois da morte de Franco, em 1975, Sarita que já não tinha o fulgor passado, abandonou o cinema por se recusar a que o público visse o mesmo que o guarda prisional ( versão estrangeira) e ainda menos a cena atentatória ao sexto mandamento que se seguia naquele catre.

Sarita dizia que gostava mais da penumbra com a claridade sugerida do que da luz encadeante.

Diga-se em abono da verdade que era um prazer ouvi-la pelo dom, simplicidade e graça com que comunicava.


Fundou uma companhia em que cantava e dançava. Diz quem viu que fazia mal uma coisa e outra e que nada nos espectáculos vivia no presente. Não sei. Nunca vi nenhum.

Que cante em paz na sedução dos anjos enquanto conta histórias e cuida das violetas no jardim celeste. Porque duvido que, lá em cima ou nas profundezas, o Inferno do cura exista, pelo menos para ela, que mal não fez ao mundo.



segunda-feira, 8 de abril de 2013


Da sensatez numérica de Galileu ao engenho matreiro do barbeiro passando pela anatomia das pausas.

Não costumo ver debates televisivos nem de emissão portuguesa nem de espanhola  porque , na maior parte das vezes, me parece que o mundo parte do sítio onde estava hoje e vai desaguar no lamaçal onde estava ontem.



 Salvo raras excepções, tudo me parece pensamento encomendado, circular e relativamente simétrico, coisas todas elas que detesto.

Mas, por acaso, liguei a televisão num canal espanhol e surgiu-me um sujeito: bem posto, de provecta idade, doutor em economia, administração, filosofia, ciência política e mais qualquer coisa que eu, ofuscada por tal grandeza de expansão neuronal, confesso que já não consegui abarcar.


O senhor, apresentando estatísticas e infindáveis números  sentenciou que a bem da produção, competividade e desenvolvimento, todas as pessoas maiores de quarenta anos deviam ser dispensadas  (vulgo despedidas) de trabalhar a soldo, quer nas empresas quer no Estado.


Um oponente, rapaz novo, perguntou-lhe como iriam tais descartáveis sobreviver, etc, etc, ao que o sábio respondeu que este mundo anda cheio de oportunidades e que os tais tomem a iniciativa de formar empresas em casa, no banco de jardim,( debaixo da ponte), em qualquer sítio porque qualquer sítio é a morada adaptável de hoje em dia.



O último apelido do senhor era Pi, coisa por mim fixada por achar coerente. Se bem me lembro do liceu, Pi = 3,14, logo um nome numérico. Premonições do destino. Suponho.

Logo me lembrei de um velho, perdão, idoso, porsupuesto mayor, que conheci há muito tempo, tendo em conta que tenho bem mais de quarenta anos. O parece que foi ontem tem já a distância do longe.



Este Jewish Old Man, que assim se intitulava sem disfarces nem cosmética, era especializado em música litúrgica da Cristandade dirigindo ainda um rigoroso grupo universitário do chamado Canto Gregoriano.


Sobretudo para as pessoas ligadas à dança que simpaticamente visitam esta casota, devo dizer que três criaturas por fascínio, de cabeça ainda mal assente, entre as quais eu me incluía,  tomaram a incumbência de entrar pelos caminhos da Dança Binária partindo da vaga ideia que tinham de tal coisa, ou seja,


 da que era praticada nos ritos cristãos no período de tempo que intervalou entre o deboche bailatório do fim do Império Romano e o rigor ascético quanto ao corpo e demais instrumentos na Idade Média.

Proponhamos ainda misturar a solenidade com as técnicas da Doris Humphrey. Ele há alembraduras que não passam pela cabeça do Demónio. Felizmente.


Depois de explicar timidamente que não havia intenção pós moderna de aliar sem vergonhas ao Sagrado ( coisa que até esteve em moda mais por isso mesmo que por convicção fundamentada ) o Old Man Stillberg, sentado na sua cadeira de rodas, bateu com as mãos nodozas nos joelhos e disponibilizou-se, penso que divertido e gozão, a orientar as fedelhas no assunto porque, o que faz girar a vida é compatibilizar a experiência dos velhos com as ousadias dos novos.


Citou até um provérbio índio que diz que um homem velho e sozinho  mais não faz que remexer as águas do passado enquanto que  um novo, mesmo acompanhado, pensa poder segurar o vento.


E como diria uma velha senhora zangada que conheci, nos olhos dos velhos está o espelho do futuro dos novos ainda que o reflexo lhes pareça ferido de uma impossibilidade crónica.



Ficámos a saber que tudo aquilo, música e dança, se baseava em ordens numéricas. Complicadíssimas.

Mas, a seu conselho, não nos poderíamos prender a tal matemática. Já Galileu, ou a sua filha, não se sabe bem que génio se escondia atrás do outro, teriam dito que tudo na natureza pode ser explicado e provado pelos números MENOS... os pensamentos, o carácter, a criatividade, os sentimentos, os sentidos, os sonhos.


E como toda a gente sabe tudo o que disse e o que escondeu foi ao Tribunal insensato dos homens que, frequentemente, por fruto de ganâncias várias se esquecem, porque perderam, tais ingredientes bastante mais fluidos que a rigidez aritmética.

E, que afinal, até naquela época dos inícios, dentro das regras numéricas, chamemos-lhes limites, existia nos Cantos, nas Danças e nos Ritos uma grande vertente de improvisação, que é como quem diz liberdade.

Dizia o Velho, que gostava de dizer por ali fora, em peroração generosa de quem parecia já ter nascido professor, que a obsessão pelos números sempre tinha estado intimamente ligado às máquinas. Ao funcionamento certo, regular, sincopado sem as naturais arritmias da alma.


E que tal História tinha começado ( ou sido confirmada), com um barbeiro tornado inventor de sucesso. Do nome não me lembro mas dele existiram e  existirão, com certeza, muitas estátuas robustas pela geografia fora.

Tal criatura, no séc. XVII,I inventou uma máquina de fiação, de alta produtividade, em que as pessoas, principalmente crianças eram treinadas para lhe acompanhar o ritmo frenético.

Em tal geringonça morriam de exaustão, de doença, mas logo eram substituídos pelo capataz mecãnico de forma a que o número necessário fosse restabelecido sem que o engenho parasse.  Foi o início do conceito que a pessoa faz parte da máquina, é uma peça dela. Serve-a mais do que é servida.

O Senhor Pi=3,14 chamar-lhe-ia, penso eu,  o cumprimento de objectivos de Gestão anteriormente definidos pelas Administrações.


Soube mais tarde que existe a tese que Charlin Chaplin gritou sem voz, ironizou, pantomizou,  o sistema maquinal do tal específico barbeiro no filme Tempos Modernos. E não será muito difícil lembrar-me de outros.



Por acaso, alguns coreógrafos e bailarinos, adeptos do futurismo, logo da magnificência da máquina, tentaram espartilhar os movimentos em linhas rectas. Convenhamos que as máquinas não têm plasticidade. Não serão nem fisicamente filósofas da leveza.

Mas ainda bem que outros na mesma época, por antítese, libertaram o corpo: Isadora Duncan, Martha Graham, Doris Humphrey, Loie Fuller e cá deste lado do mar, Mary Wigman, Kurt Joos, etc, etc que é longa a lista.

Mas enfim, foram horas clandestinas (sob orientação para desprezar o supérfulo ), porque fora das obrigações fixas da jorna, passadas na imensa biblioteca pública, foram os corpos a beber os Cantos, a deixar percorrer as vozes como sangue que se vai transferindo.


Quem tinha Deus, reconheceu-O. Quem não tinha, como eu, ficou-se pela descoberta dos pormenores  nos corredores escondidos da Beleza.



Também aprendemos, porque nos foi subtilmente revelado pelo Old Man nessa nossa idade de todas as pressas e através daqueles Cantos, o valor das pausas.


 De como a luz de um som ou de um movimento e mais sei lá de quê, lhes iluminam a sombra. E vice-versa.


Pelo seu lado, dizia-nos o Old Man, que nunca tinha trabalhado directamente com bailarinos nem nos bastidores trabalhosos e experimentais dos ensaios, que nunca tinha percebido a necessidade de também a música se adaptar ao corpo, às pausas respiratórias, à linguagem muscular.


Pousava a mão antiga na região do meu diafragma e gracejava: nestes trabalhos conjuntos um músico tornava-se num melhor bailarino e um bailarino num melhor músico.


Por tudo isto, Debussy tornou-se para nós uma metáfora pela vida fora com o seu dito de que a música é o silêncio entre as notas.

Resumindo, fomos tendo a maior aprendizagem de todas: a de que uma descoberta é sempre o princípio de tudo o que ainda se desconhece.



Também percebemos que atrás do perfeccionismo está o medo. O respeito.



Não faço, não fazemos ideia de quantas parcelas resultou o número, que não conhecemos do que aprendemos. Nem o que a partir daí multiplicámos. Ou dividimos.

Ainda hoje,  vejo o Old Man no lado de dentro da memória.


 No gabinete forrado de livros. O cheiro a tempo. As mãos suspensas depois do casaco de lã a demonstrar as pausas, os dedos nas pautas sem lhes tocar, não fosse manchar os testemunhos do tempo. Pareciam pássaros magros, esfomeados, à procura de sementes.


 E a voz grave na arte de ensinar a fazer perguntas.

E o brilho nos olhos quando tudo resumido e cúmplice na estreia, lhe depositámos um ramo de orquídeas no colo.

Como se reunisse nele todos os entusiasmos e sabedorias que se recusam a morrer. Sem deixar rasto.

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e, já agora, a propósito de novos e velhos e concorde-se ou não

José Luis Sampedro
1917-2013


Porque até como economista, defendeu as excepções numéricas de Galileu. Talvez por isso, aos 62 anos, se tenha tornado escritor.
Talvez por isso se tenha tornado, aos 95, o ideólogo sem alardes próprios, para velhos e sobretudo para novos, do 15M, movimento mais de cidadãos activos e indignados que de bandeiras partidárias.
Talvez por isso tenha usado tantas vezes e com maiúsculas a palavra dignidade. Contra todas as chantagens e pressões mesmo traduzidas em máscaras de marionetas.