sexta-feira, 28 de setembro de 2012



Faz de conta que ao rato raquítico lhe deu para dançar valsa num dia de trabalho, andava o escritório atarefado sem tempo para tosses ou outros atrasos como títulos que nunca mais acabam.

Faz de conta que agora chego ao cimo da colina.
Faz de conta que me sento e respiro os olhos e os pensamentos na paisagem enquanto o Outono me lava.


Faz de conta que descanso.


Faz de conta que nasci para heroína e limpo as botas do sangue, não, sangue não! da lama da guerra em que ando metida. David contra Golias, como disse quando passei por casa da Bettips.

Faz de conta que olho para o lado onde na relva, os inocentes, chamemos-lhes assim que outra nomenclatura não me ocorre, dormem a sono solto.



Faz de conta que lhes passo os dedos pelos cabelos, que sorrio quando mais se aninham na posição saudosa em que o filtro da água materna lhes envia as mensagens do mundo em versão tão nublada que se torna irreal. Do lado de lá do coração que alimenta.



Até podia ter a ilusão que o Golias se tinha cansado. Mas não tenho. Porque este Golias há-de servir outro Golias Maior e este a um outro Imenso.


Portanto vai contrair os lábios, esbugalhar os olhos, desinfectar as feridas que a diminuta espada de David lhe provocou naquela caricatura de orgulho.


Oiço-lhe o ranger dos dentes, vejo a curvatura aterrorizada do seu exército em fila para o genuflexório. Uma massa informe de sorrisos previamente desenhados. Como na commedia dell arte.

Tinha intenção de vos falar sobre Françóis Talma,


o actor amigo íntimo de Napoleão e que poderia ser considerado, talvez, o primeiro consultor de imagem do poder. Senhores, era tão parecido em atitude pública com o Imperador que nunca se soube se foi ele que ensinou a criatura  à representação de tal pose de altivez ou se o actor, por favores de Império, o imitava como se tenta imitar Deus.

Também vos poderia contar a entrevista de um demógrafo que li. Muito velho. As fotografias pareceram-me uma pedra falante, ou um complexo rochoso visto das alturas de um satélite. Qualquer coisa assim.


Dizia ele que a economia, as finanças, hoje se destinam a eliminar a população em excesso, ao contrário dos antibióticos, das quimioterapias, dos retrovírus.

 Anda por aqui vida a mais e morte a menos

e a Terra não aguenta tal peso, tal cansaço  tanta boca a alimentar, a consumir.

Que os ratos, quando são já demais para a despensa, eliminam os mais fracos, matam quem já não produz força nova.

Um desperdício meno e andropáusico.


Sobrevive e manda  quem é mais ágil. Mais astuto. Mesmo que tenha nascido no canto mais sujo da caixa de sapatos guardada na prateleira mais bolorenta da arrecadação.

Os ratos educados,


ao que suponho, perderão tanto tempo com escrúpulos, com filosofias, com sensibilidades que hão-de ser impecilhos na fuga dos outros, tropeços ao alcance da vassoura.


Poderia ainda falar-vos de outra coisa que agora não me ocorre.

Fica para a outra vez.

Agora tenho que me levantar.
Tapar os ombros dos tais inocentes tão pouco atentos que nem sentem o frio da noite.
Talvez ainda não tivessem tido tempo de serem apresentados à geada.
Dar-lhes um beijo na testa.
Seguir caminho.


Faz de conta que vou ser eu.
Faz de conta que do outro lado da colina, fica a casa com lareira.


As cores doces e todos os argumentos, sei lá, da felicidade.


Nem me interessa se falo português, castelhano ou inglês.
Faz de conta que me falam as pernas, as mãos, a cabeça no encosto do sofá ou na cadeira de costura com a prancheta no colo enquanto o violoncelo de Benedetto Marcello canta em adagios ao compasso das gotas de chuva.

Faz de conta, como se calhar para quase toda a gente, que a espada é uma ficção que o corpo recusa.

Pronto, faz de conta.



quinta-feira, 13 de setembro de 2012



A insensatez do busto portátil de Beethoven

Mais vale o curriculum estável do Mar.


Sem cátedra. Com consulta às ondas, com marés sugeridas pela arte da Lua sob,
 ou sobre, a coragem do Sol.


A paisagem não tem fronteiras ou dogmas.

Prefiro ser escrava da Beleza do que dos que não têm História ou dos que a compram ou alugam a soldo de uma sabedoria masturbada de tão obviamente solitária no sentido da cegueira escolhida. Ou talvez não escolhida. Talvez mais obediente.
Servil. A curvatura do pensamento a que as palavras fechadas obedecem.



Porque, Senhores, com tanto pó que tenho nos pés, muito mais do que consta do bilhete de identidade, nunca pensei ver o que vi, espelho ou caricatura de tudo quanto vejo quando estou longe da filosofia do Mar. Mar assim dignificado de maiúscula.

Chega ao restaurante uma feminina criatura, trinta e tal anos, trajada de forma imprópria e pateticamente ostensiva para um cenário de duna e sol das duas da tarde.


Vem acompanhada por outra, a imitar a primeira mas em vesão contrafeita da feira de Carcavelos, duas peças cinco euros, ai que o cigano está maluco, venham cá donas que está na moda.  


Vem de face contraída, dois passos atrás da primeira. Será criada, secretária ou quiçá versão pósmoderna de afilhada.
Talvez demasiado honesta para ser puta mas pouco esperta para chegar a directora geral de qualquer departamento inútil sustentado por dízimas obrigatórias.



E sentam-se. Chega o empregado. Diz a madrinha, chamemos-lhe assim, de olhos fixos no telemóvel,  para a afilhada, faz de conta, pedir uma água com gaz e a afilhada pede ao rapaz uma água com gaz e o rapaz diz que só tem Castelo e a afilhada transmite à Madrinha que só há Castelo e a madrinha  diz à afilhada que  pode ser e a afilhada diz ao rapaz que está bem e assim por diante até chegar à pouca manteiga da tosta mista.

Senhores, já dizia Martha Graham que o movimento, a expressão nunca mentem. Torna-se dispensável o uso das palavras.

Por isso espantam-se ali ingleses, alemães, espanhóis e outros de linguajar de que não localizo geografia.

E envergonho-me eu, talvez a única que percebe e tem no sangue a língua, agora em elevado estado de decomposição, de Camões, dos marinheiros,

 das glórias, dos rastejos, dos fados, das gaiolas, do pão nosso de cada dia nos dai hoje, das tristezas dos jogadores de futebol, da lobotomia, da atençãozinha, do isso também eu fazia, do desculpe lá qualquer coisinha,do  faltei porque me morreu a décima avó - ninguém esperava estava tão bem coitadinha, dos Relvados, do sofrimento com o Paraíso à vista,



assim em forma de euro milhões com estadia na eternidade à direita de Deus ou do Diabo, tanto faz que com o mal dos outros posso eu bem e quinta feira é dia de cozido, ai o que eu gosto de farinheira e dos pregos da Portugália que o bife na frigideira está caro, feijoada eleitoral com boleia na camioneta, amor de mãe, feliz ano novo e muitas propriedades com  a energética, antioxidante sopa de cavalo cansado.
 E etc.

E Senhores, nem faltou um pequeno momento de cultura geral.


Alma alimentada no índice do Reader´s Digest, suponho.
Soava, naquela mania de encharcar tudo de música mesmo em lugar impróprio como se ali não bastassem os acordes da rebentação e do vento no caniçal,

o Air de Bach e logo a madrinha, numa confissão pessoal condescendente, declarou com voz de lei que gostava muito daquela composição do Beethoven e do Beethoven todo que, já agora, é aquele maluco que era surdo, se multiplica em bustos com cabelo desgrenhado, mau génio, sobrolho franzido, enfim, artista que nunca leu o Financial Times nem se submeteu a ´controle de qualidade segundo as directivas da União Europeia. Mas muito bom. Apesar de tudo.


E eu fico a pensar, Senhores, que Voltaire, que usava cabeleira postiça aos caracóis, pó de talco e outras toxicidades por maquilhagem, sapatos bicudos de fivela, pulga no caniche,

dizia que a vida das pessoas girava em torno dos governos e da religião mas que alguém ou tempo, ensinou a madrinha a matar as boas metáforas de uma e de outra coisa

e sobretudo, pois, sobretudo,

que os espelhos tanto reflectem quem nele se vê como todo o cenário atrás, o que sustenta a figura.
Uma espécie de ponto de fuga no desenho tragédia.

De mãos nos bolsos, Senhores, à beira de sempre,



 vou à mina da memória e fico à espera da nova taxa aplicada ao simples acto de existir, não vão os velhos, os músicos, os bailarinos,

 os poetas,

os plásticos,

 os cineastas... os cientistas, os investigadores ...e outros que tentam interpretar o caos, teimosos como são, esquecer-se de morrer.