sexta-feira, 17 de agosto de 2012


Prosa do ar viajante

Senhores,

daqui a umas horas vou fazer um pequeno desvio, vou passar por gosto e ritual esta ponte,


na esperança de ter um ataque de ilusão, daqueles que, mudando de território, parecem também eliminar as complexidades labirinticas e centricas do mundo.


Vou visitar a minha amiga Boopy


que sempre me lembra os pormenores bucólicos de Giotto e é criatura excelente ouvinte, dum silêncio sensato e sábio, duma calma que refresca os pensamentos mais vulcãnicos e exterminadores que imaginar se possa. Uma autêntica confidente sem o preço de culpas, sempre pronta à indulgência.

Como sempre vou-lhe desabafar : vê lá tu  Boopy (somos muito pouco informais no tratamento) se isto não é de gente doida, desaparafusada da cabeça. Ontem quando lá fui........................, como é que se explica? Achas isto normal? Lá  tive que escrever outro relatório para nada! Como os outros!


Depois de assim trovejar a alma, já com céu pouco nublado, espero, com as pressões amputadas no justo limite em que se mantém a consciência,


vou até à minha morada, acabar de fazer a mala, pôr o formão e o serrote de que sempre me esqueço, a cal, um ou outro livro que me entusiasma mas que acabarei por não ler, respirar fundo e partir.


Se nada houver em contrário que me trave os passos,


andarei pelos caminhos do som do mar, a viajar pelos grãos de areia


pelas trovas do rio, pai dos meus salgueiros, ou chorões, sei lá...


pela cidade das palavras apressadas.


Tentarei não correr, nem sequer andar depressa, não me submeter à luz obrigatória, racional , correcta do sol.
Quero antes sentir a lua na pele. Nas sombras.


E esperar pelo Outono.


talvez, com esforço, consiga o que uma senhora que conheci fazia, por hábito, por cultura: se uma pessoa se sentar e não correr, quando está à beira de ser o que a natureza cansada, extenuada pelo que não entende nem aceita já lhe pede, pode estender o tempo, alongá-lo como se ele quase não existisse.

Então, Senhores, com a Vossa licença, até um dia destes se não fôr mais cedo nem mais tarde...sei lá...do que agora.


quinta-feira, 9 de agosto de 2012



A gramática circular da vitrine


Contar-vos a história dos caixotes contentores destes livros que aqui vos trago, seria nem sei se longo se pouco exacto.


O que interessa é que, inesperadamente e sem aviso me aterraram no sotão, cheios do pó, daquele que entranhado, é prova do tempo.
 Do abandono.

Da espera.
 Da memória enclausurada.
Pareceram-me os caixotes cheios de livros mais afónicos  e aflitos que mortos. Resignados, não! Não consigo imaginar nenhum livro condenado à resignação. Por muito mau ou estúpido que seja.


Tirei o primeiro e lembrei-me, Senhores, sei lá em que ponto do cérebro andava aquela casa guardada.


Uma sala muito escura onde era sempre noite mesmo que na rua ferisse o sol de Agosto ao meio dia. Persianas corridas.  E cheirava a noite. Um cheiro gasto. Uma sala com asma, faz de conta. Móveis pesados e escuros. Se calhar estavam sempre a dormir.


E tinha uma senhora que cheirava a pão com bolor misturado, em açorda, com o cheiro da perfumaria da Praça de Londres, um bocadinho mais acima, que tinha um senhor gordo com as calças no peito. O senhor tinha camisola de alças atrás da camisa branca e mamas. Pois tinha. Juro que tinha. Grandes.

Às vezes a senhora também cheirava àquilo que a minha mãe me punha nos joelhos esfolados e que fazia espuma branca sem arder.

A senhora estava sempre sentada numa camilha. Era muito avó. Era muito mais grande que as minhas avós. A minha mãe disse-me que quando eu era muito pequenina , "como é que te lembras dela?", já tinha noventa e tal anos e morreu logo a seguir.


Eu tinha que lhe dizer boa tarde prima, pedir licença para entrar e depois  mandava-me sentar ao pé dela enquanto os grandes falavam de coisas que eu não sabia o que eram. Nem sobre quem. Nem coisa nenhuma.

Mas lembro-me de na camilha estarem papéis e dela mandar buscar livros que tinham sido do António e dela me mandar fazer desenhos.
Dentro de um destes livros que agora vos mostro estava este.


Não está assinado. Não sei se serei a autora desta manifestação da contemporãnea escola da Bad Painting. Ou expressionismo figurativo. Ou coisa assim. Agora não me apetecem rótulos. Muito menos pensar neles. Por pouco que seja.

Mas a senhora fumava muito. A minha mãe diz que acendia uns cigarros uns nos outros e tinha em cima da camilha uns pacotes com dez maços em vez de um maço só.

 Diz também que era muito alegre, conversava muito com muitos convidados mas fumava assim para morrer mais depressa. Porque era muito triste e os olhos dela tinham medo da luz. Do descaramento do dia.


Não sei se me lembro ou se invento lembrar-me quando tiro um maço que está a fazer companhia aos livros nos caixotes, que os maços eram amarelos.


Também me lembro que ela ralhava com o meu pai que encontrei no meio de outro livro.

Agora parece-me que o meu pai chegou ao livro através de outra vida. Quando uma pessoa cresce, parece que parte a vida às fatias e as pôe numa vitrine de que perdeu a chave.


Não é nada parecido com a pessoa deitada, com voz fraca, cheio de células sonsas que se instalaram nos orgãos dele a fazerem picnics e a fornicarem para multiplicar os filhos. Tantos que mataram a floresta e morreram de fartura.


Também estão lá livros brasileiros.

A minha mãe diz que deviam ser da Sophia, que viveu alguns anos no Brasil. Não me lembro nada dela. Mas parece que se me lembro da outra, me devia lembrar muito mais desta. Mas não me lembro. Já tentei mas não me lembro. Nada, nada.

Mas de certeza que não leu os livros do Julinho: nunca gostou de se levantar cedo e de fazer o que lhe mandavam. Eu também não devo ter lido até porque não sabia ler.


Agora sei ler. Ainda vai havendo muita gente que aprendeu a ler. Que sabe mais gramática que eu. Não é difícil, convenhamos.


E, por isso, ponho-me a pensar para onde hei-de mandar os caixotes.

A senhora tinha um apelido viajante.


O mesmo que eu tenho e no mesmo sítio: no fim do nome completo, lá para a área geográfica dos apelidos.

Os mais antigos também tiveram esse nome e viajaram.

Os livros ficarão muito tristes se lhes puser a tampa em cima.
 Nenhum livro gosta de ser inútil. Em nenhum tempo.



 Gostam mais de ser pegados para que as pessoas naveguem nas letras e nas imagens deles. Acho eu.

E por isso, por causa disto tudo, depois de ler alguns que nem li nem sei,


 talvez os mande para Inglaterra, para uma Universidade que tem um sítio dedicado a Portugal.

 É um sítio muito arrumado. Os livros são tão bem tratados que quando houve uma guerra com bombas a caírem do céu, meteram todos os livros debaixo do chão.


 Até meteram os livros escritos pela pena e punho do primeiro apelido viajante.

  Já disseram para eu escrever um texto sobre a senhora que tinha os livros em casa. Para as pessoas saberem donde vieram os livros.


Talvez escreva.
Talvez os mande para lá.
Talvez então me lembre como era a Sophia  com ph que nunca aprendeu as lições sensatas do Travesso Julinho.


Talvez.