segunda-feira, 22 de março de 2010

Pronto, Sr Doutor,



prometo-lhe solenemente duas coisas de uma assentada que não sou mulher para viver a prestações:

vou já para casa, para continuar o repouso que tanto me recomenda

e, prometo-lhe, aqui também em frente dos meus amigos, que, quando morrer, vou deixar de ter medo de injecções tanto na veia como dessas que se preparava para prescrever, dadas nos glúteos, que é assim como quem diz, mais prosaicamente, no augusto e reverencial rabinho.


Claro que um injectável passado através dessa lindíssima caneta de tinta permanente, perde parte do dramatismo, mas que quer…desmaie-me primeiro e injecte-me depois ou corre o risco de a caneta desenhar um envio para a consulta de psiquiatria, quiçá, com internamento compulsivo.

Tem razão Sr Doutor, é melhor eu continuar em casa, estendida na chaise longue, longuíssima,



e, talvez, para compor a altiva figura, recorra ao meu antigo bastão herança do avô de terras muito estrangeiras.



Não, não exageremos, ainda não estou em estado de imitar a Srª Dona Palmira Bastos:

fique descansado que não me vou pôr no meio da sala, a bater com o apetrecho no chão e a gritar para as minhas cadelinhas e para o Gato Ernestino de Loyola que as árvores morrem de pé. É que embora os animais não possuam uma caneta como a sua, enfim, nunca fiando…se é que me entende.


Vou continuar a ouvir músicas


que me travem a dor, que parte em viagem, da região lombar, segue para o sacro, faz pic-nic familiar com toalha aos quadrados no Pinhal do Colo do Fémur, segue depois , assim tipo regata no Tejo, por aquela fita de nastro chamada Canal Ciático, vai até à bomba de combustível situada na aldeia de Santo Joelho, lancha, oh que opíparo lanche,


no estabelecimento para casamentos e baptizados situado, no lugarejo de Tornozelo de Cima que fica ao pé do Casal de Aquiles e vai ver as vistas a Metatarso de Baixo.

Oh, que linda paisagem, oh que portentoso miradouro!



Claro, Sr. Doutor, que vou continuar sossegada e voluntariamente paciente,



sem esforços nem tropelias, claro!



Olhe, vou continuar a ler leituras atrasadas (desculpe o pleonasmo, mas deve ser efeito secundário da medicação).



Ai aquelas prosas do inglês de 1300. E os relatos de viagens do andarilho castelhano de 1600. Como já eram mal educados e revoltosos nessa altura, coño, ai desculpe que me fugiu a língua para nuestros hermanos.

E mais os outros todos, nossos contemporâneos e tão interessantes nos seus retratos do mundo.

Às vezes até me esqueço de comer, mas convenhamos que cozinhar interrompe o repouso, assim com lavar a loiça, não é?



Farto-me de dizer isso. Só de olhar para um simples tacho, Sr. Doutor, chegam-se me umas dormências cervicais... só passando por elas...


E vou continuar a estabelecer as ligações entre Giotto e Rothko. Veja lá que os acho parecidos num certo misticismo da cor e arredores dela.

A evolução da História numa linha que nunca se interrompe.


E vou, também e já agora, prosseguir com os filmes.

Imagine que numa das primeiríssimas peliculas (lá estou a castelhanar outra vez) do Hitchcock, aparece um actor que é tal e qual o empreiteiro que me faz as obras em casa. Ai que parecido que é! Até no eterno palito alojado na comissura labial direita.

E o tique de puxar as calças quando se fala em dinheiro, perdão, orçamento rectificativo.

Há figuras e extraordinários métodos contabilísticos que até na ficção nos perseguem, não é verdade?

Claro que também tenho todo o Baryshinikov e outros e outras de todos os tempos e escolas, mas em dose que não lance a dor em viagem.

Pois eu sei, Sr. Doutor, tudo se paga e ao ver os fabulosos grand jete, e toda danse d´élevation, ai Sr Doutor, ponho-me mais virada para la barre par terre, perdoe-me o tecnicismo corporativo linguístico.


É que o chão é sempre o último lugar para a queda.



Quem diz chão diz sofá. Ou chaise longue. Ou cama de rede entre as árvores. Ou banco de jardim. Ou relva. Ou mesa de refeição com gambas ou cogumelos cozinhados por terceiros. Ou assim coisa do género. Mais ou menos.


Ulcermin? Tenho lá, tenho. Costumo ir roubá-lo ao cão que sofre do estômago. Nunca me rosnou por causa disso. É de personalidade generosa. Ou caritativa.

Pronto, Doutor está na hora marcada para mais uns RX. " Não mexe, não respire, pode respirar".




A continuar assim deixo a carne na osteo-radio-marquesa e da próxima vez apareço-lhe aqui só em esqueleto. Ao menos vê logo tudo e a cores. É que a fotogenia óssea a preto e branco nunca foi o meu forte.

Então muito obrigada.
Tomo estes de doze em doze ou de oito em oito?
Depois das principais refeições? A ver se não me esqueço.

Saiba o senhor que costumo ser cumpridora de repousos e outras recomendações.


Então bom dia e obrigada. Mais uma vez.

Com licença… ai...

Ambrósio, pode trazer o carro, Ambrósio!

terça-feira, 9 de março de 2010

Da melancolia e da incerteza na alma de uma torneira


Neste momento, estou à espera do destino.
Metida dentro de um saco com o carisma do El Corte Inglés. Reciclável.

Podia ser pior. Podia-me ter calhado um daqueles sacos verdes com asas, sem nome, vendidos a granel para as feiras ou para as lojas chinesas. Aqueles plásticos derivados de petróleo proletário e indigente.
Perguntarão: que diferença faz a uma velha torneira o saco onde repousa?
Tal como os humanos, tenho as minhas inúteis vaidades. E pergunto: que diferença vos faz, depois de fenecidos, jazer numa caixa de pinho ou num polido mogno maciço cheio de enfeites, sedas e bordados?
Mas enfim…
Sou vulgaríssima.
Sempre andei pela mediania, conservadora na forma, eficiente na função.


Foram-me comprar numa loja de imprescindíveis para a construção.
Não tenho assinatura de artista, nunca apareci nas revistas com as palavras contemporary design ou architectural antes ou depois de interiors, em rosto de apresentação, papel couché e paisagem asséptica de qualquer forma de vida.
Felizmente, fui parar a uma casa vivida, com o desarrumo de quem não se estaciona, como que pendente, num tempo suspenso entre pontos indefinidos.

Mas dizia eu que sou de figura mais rústica, mais parecida com as que constam das páginas que senhoras folheiam, à hora de almoço, fora da roda da repartição, enquanto sonham com uma casa lírica no campo, com vista para o mar ou para a montanha, paisagens de fuga ou de ligação à matriz da calma que perderam.

E claro, também nunca apareci em anúncios publicitários na tv, daqueles em que torneiras parecem engenhos da NASA, com voz off calma, grave e séria, a mesma que anuncia colchões ergonómicos e outros produtos topo de gama.

Tenho manípulo para mãos que gostam de agarrar e sentir o que possuem e tal como muitos orgânicos, como o David Bowie e os cães dálmatas, tenho um olho de cada cor.

Ouvi este desaire a quem me escolheu: parece o David Bowie! e mais:
as torneiras misturadoras devem ser hermafroditas
…imaginem,
como se não nos chegasse esta imobilidade de liga metálica que, pensam os humanos, ser desalmada e estéril de vontade e sentimento.

Como se não nos chegasse esta impossibilidade de gritar contra o destino mesmo quando pressentimos a má sorte.

Ouvi dizer que a mesma coisa acontece aos animais em montras vítreas de lojas, agora chamadas de Pet Shops. Assim em inglês, aqui, até parece que o negócio fica mais paliado nas intenções.

Bom, mas lá fui, num saco branco com letras azuis, Fernandez, Rodriguez y Rodriguez todo para su hogar, conhecer aquela que haveria de ser o meu anjo ou o meu carrasco(dualidade que, pelas telenovelas mexicanas que ouço lá dentro antes das notícias, me parece ser muito frequente nos humanos): a chave inglesa.


Se foi ela que me instalou e me deu vida, também foi ela que me arrancou dos tubos que me foram íntimos durante tantos anos. Abriu a bocarra dentada, exclamou um peneirento “oh dear, isn´t this a disgusting old thing?” e sem piedade quebrou-me os laços.

Não sei se sabem, mas fui feita para controlar a insensatez e a loucura da água.

Fui, do ponto de vista dela, um muro de repressão, um psiquiatra implacável, uma guarda da escuridão, um silêncio enclausurado.
Levei anos a fechar-lhe lentamente as portas. A apertá-la. A sentir-lhe o desespero da fuga impossível. Um embate cego no meu corpo rígido.

Levei anos a sentir, no centro de mim, as brigas entre as moléculas aquecidas pelo esquentador, Don Vulcano, espécie de deus dos infernos com peito de fogo, e as frias, geladas, vindas da terra.

Atendendo às ordens que recebo nos manípulos, vou dando mais razão a umas ou a outras, se bem que, aqui, tenha sempre sofrido de parcialidade a favor das quentes.
Sobretudo à noite (que de manhã , usando-me para duche em modalidade meramente essencial, mal tenho tempo para escolhas) quando o ritual do calor se esmera em pormenores mais arrastados e estéticos, se me permitem a ousadia da consideração.

Mas, quando as solto, às quentes, vejo, através destes meus olhos estáticos e focados, aparentemente, em coisa nenhuma, os rostos de prazer, a mudança de cor dos corpos brancos, o vermelho nos dorsos e a neblina que os torna quase irreais como a fotografia que a minha vista ainda conseguia alcançar, lá ao fundo, quando a porta estava aberta.

E, pela forma como a água bate nos corpos, vou vendo como perdem a rigidez, como se tornam num tecido mais almofadado, mais solto.

Depois, a pouco e pouco, fui ficando cansada, com o corpo invadido por calcário, uma espécie de mau colesterol.


Fui perdendo força face à eterna juventude da água. Comecei a deixar passar uma gota mais endiabrada, depois outra, mais outra, numa cadência cada vez mais apressada. Invadi-lhes o silêncio.


O meu exterior, que nunca foi luzidio, foi-se tornando mais baço, apesar das esfregas de Doña Rosa, a que diz que uma cama por fazer, uma loiça por lavar e uma torneira manchada, maculam qualquer casa, por mais limpa e arrumada que esteja.


Durante anos sacrificou-me com um pó áspero. Depois com um creme branco, cheiro a limão. Agora com um gel verde que cheira a flores de plástico vindas de um paraíso telegénico.

Por sacrifícios, verifiquei, com a minha congénere do lavatório,


algum absurdo irracional e insensível no comportamento humano: quando faltava a água nas canalizações, incrédulos e revoltados,


giravam-nos os manípulos até ao máximo como se assim, nós a fossemos, magicamente, buscar onde parou.


Ninguém se preocupa com o ronco de asfixia que emitimos, ninguém percebe que o ar nos mata. Repetem a tortura, ansiosos, de minuto a minuto até termos… ataques espasmódicos de tosse . Aí riem-se, mesmo quando a água, vestida de branco, é expulsa de forma violenta, aos sopetões, molhando-os.

Agora estou aqui, de estomas expostos, neste vazio cheio de memória, situada num ponto chamado espera, aquele que termina quando se inicia uma linha chamada futuro.

A linha, que na superfície do Universo, tem sempre uma direcção incerta.


Mesmo para uma simples, modesta e servil torneira misturadora, talvez digna de reciclagem, como eu.


Pertencerei sempre ao silêncio das coisas comuns.