terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Vem este porque se falou, num jantar, em burkas e outras prisões, porque me lembrei de mulher ousada, porque adoro um bom e demorado banho de imersão com suaves sais e, porque também os costumes e vestuários de, e no, banho, marcaram os valores de cada povo e época, porque falei com um coreógrafo muçulmano, rapaz ainda novo e de talento mas que recusa bailarinas, porque são sempre indignas, nos seus elencos, aqui boto só uns pedacinhos soltos e apressados de uma longa história.

Curiosidades acerca dos banhos que têm medo dos olhos do ar

Diz-se, que nestas coisas nunca se pode ter absoluta certeza, que Ingres pintou este quadro ( muito romantizado) chamado de Banho Turco, inspirado numa carta pretérita de Lady Mary Wortley Montagu.

Em breve apresentação, posso dizer que Lady Mary foi uma, entre algumas mulheres inglesas com existência no séc. XVIII, que nasceram mais fadadas para a aventura e para a descoberta, do que propriamente para seguir os recomendados rumos femininos do seu tempo.
Desde cedo foi autodidacta, mulher expandida pela necessidade de conhecimento, hábil espadachim em argumentos proibidos a cérebros decorativos e domésticos.

Casou com um diplomata. Foi para terras árabes. Meteu o nariz onde não era chamada, muitas vezes trajada de homem e, provavelmente sem saber, deixou, em forma epistolar, larga literatura descritiva sobre hábitos, danças, movimentos, corpos.

A sua descrição de movimentos admitidos nos arábicos banhos públicos femininos, ainda inspira algumas práticas nas artes performativas contemporâneas.

Lady Mary fazia-se sempre acompanhar de um repórter de imagem, desenhador-gravador, a soldo das suas investigações pelo exterior, coisa que Ingres e outros haveriam de agradecer.


Lady Mary, dada a comparações entre mundos, descreveu curiosas diferenças entre o Ocidente e as Arábias:

se enquanto em Inglaterra, homens, mulheres e crianças se banhavam, trajados de grosseira túnica, quando não quase nus e conjuntamente, nos rios ou banhos publicos, em algazarra festiva executando até dança em forma de tosca galharda,


nas Arábias os homens separavam-se rigorosamente, por vontade de Alá com intermediação atenta de Maomé que passava mensagem aos doutos, das mulheres.

O curioso era que, nos rios, os homens ficavam a montante e as mulheres a jusante.

Evitava-se, assim, que os homens fossem contagiados por eventuais fluidos femininos, produtos óbvios das forças do mal.


Mulher menstruada que fosse a banhos em tal estado, era açoitada por ser veículo da poluição demoníaca. Não merecia limpeza.

Nas “piscinas” dadas à higiene, reservadas para as mulheres, não podiam entrar nem cristãs nem judias. Qualquer uma delas era ainda mais filha legítima do Demo do que as árabes.

Era sabido que os judeus mandavam purificar, através da água, todas as zonas do corpo, sem excepção alguma, e que tal como as cristãs, se entregavam ao hábito devasso e tentador de esfregar as costas alheias em grande mistura de idades.

Como se tal lascívia não bastasse, tinham estas, ainda, como natural, movimentar-se sem guarda das visões descaradas sobre os sítios onde se “é mulher”, copulando em desvario insane dos sentidos.

Lady Mary, já naquela altura, defendia que o deboche atribuído à Europa e Américas, era mais coisa de propaganda negativa que facto de geral acontecimento.

E descreve as ordens decretadas sobre tais movimentações, evitando-as profilacticamente, emitidas por um grupo de juristas íntimos da vontade de Alá e Maomé.


Resumindo,

deviam as mulheres andar em passos curtos, nunca se agachar ou dobrar e nunca afastar as coxas, nem mesmo dentro de água, sendo que esta também tem os seus olhos;
também não deveriam tocar com as suas próprias mãos no seu próprio corpo de forma a fazer despertar fervores no Infame, nela.


Em qualquer circunstância, deveriam ter a consciência de que nunca estavam sozinhas.

Mulher que não tiver gente que lhe vigie as tentações e preciosidades, deve saber que Alá está, até, na mais ínfima porção de ar.

Mais legislavam que as mulheres que se despissem na frente de cristãs ou judias, ou mesmo árabes, ou para elas olhassem nos olhos, deveriam ter os cabelos cortados rente após o que seriam açoitadas até à morte.



Alá fez saber, por intermediários, que a mulher que denunciasse outra às autoridades, cuspindo-lhe três vezes, teria entrada no seu reino.

Em algumas zonas, de Diabo mais aceso, os juristas, determinaram que as mulheres deveriam usar longo manto de cor opaca e em tecido que, molhado, não colasse às formas do corpo, bem como um capuz com rede para que os olhares, mesmo só árabes, onde também, tantas vezes mora o Maligno, não se trocassem.

Só o marido


teria acesso a visões de rosto e outras partes, não devendo elas olhar-se no todo ou em parte.



Estranha, contudo, Lady Mary que algumas meninas mais promissoras em formas, fossem retiradas às famílias para, em palácio, serem educadas a praticar o maneio da anca em dança do ventre, ou a retirar com langor, dançando, as suas vestes ou a tomar, como parceiro dançarino, um pilar ou vara, para deleite de juristas, reis e teólogos.

Se bem que muito mais imunes ao pecado, também os homens não podiam olhar para os outros homens, nem despir-se à frente deles, nem com eles terem contacto físico de alguma espécie.



Flaubert é mais completo na descrição do varonil banho, mas é por Lady Mary, salvo erro, que ficamos a saber que os homens árabes depilavam as vergonhas com uma mistura de cal viva e trissulfureto de sódio acreditando, à semelhança dos cristãos, ser debaixo desse piloso manto que o Diabo inscrevia alguns dos seus símbolos e sinais.
Eram também obrigados a usar uma espécie de capacete rígido nas partes, não fosse o matreiro Diabo, fazer das suas.
(Diziam os doutos que aí está a prova da perversidade das mulheres: anda o Demo nelas e nada transparece aos olhares.)

E se um homem olhasse para outro, desprezando-lhe as misérias ou cobiçando-lhe a riqueza, seria condenado a que, durante quarenta dias, Alá ficasse surdo às suas preces.

Na movimentação para dentro ou fora da água, nunca deveriam virar o traseiro para Meca, pelo que, suponho, se viriam a tornar peritos na manobra de marcha atrás.

Não sei se Lady Mary Wortley Montagu, ainda continua a escrever os seus relatos. Se continuar, talvez ao longo destes séculos, tenha mudado a forma mas não o conteúdo.

Talvez o tenha acentuado quando em 1980, o douto Khomeini, hiperbolicamente, tenha mandado abater centenas de mulheres por andarem "nuas", ou seja, vestidas à "ocidental".


Lady Mary talvez tenha tido uma segunda morte quando viu (desculpem-me a violência) enforcar em festa, no Irão, no Iraque, na Palestina, milhares de cães e gatos como simbolos malditos da nudez moral judaico-cristã.

Talvez, e seja qual fôr a civilização, só tema o pecado quem muito bem o conhece.
Talvez só tema os olhos do ar quem nunca aprendeu a respirá-lo.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Vem este a propósito de mesmo agora ter desligado o telefone após conversa castelhana em que falei de um actor esquecido, ou mal lembrado, e de uma mulher a ele incognitamente ligada, e de ter estado há pouco tempo numa casa onde não ia à trinta e muitos anos, ou quarenta, ficando eu na dúvida, por instantes, se a tal casa encolheu ou se fui eu que estiquei.
Ora cá vai a

Parábola dos Constantes ou de como Raimunda voltou à sala de cinema e eu à Casa do Corredor Infinito.


Em nome da veracidade histórica, devo dizer que, supostamente, apenas o princípio e o fim desta prosa são verdadeiros pelo que não me resta outro remédio senão imaginar o meio. Que me perdoem mas todo o ser tem direito a recheio entre a data do seu nascimento e a da sua morte. Que me desculpe o poeta que queria todos os seus dias só para ele.

Raimunda nasceu em imberbe séc.XX, no México, em vila mineira que só vem no mapa por pura generosidade de cartógrafo e por em tempos idos ter prata em relação inversamente proporcional às viúvas e aos orfãos.


Em grande festa e com expectativa de fugir dos dias monótonos, tal vila era visitada por um cinema ambulante, com pianista de instrumento desafinado e tradutor incluídos, que ainda era cedo,ali, para se ouvir som da bobine.

Raimunda aí se apaixonou perdidamente por Tom Mix,


pai mudo de todos os futuros cowboys cinematográficos sonoros, e que, durante a sua existência sempre tentou meter a personagem na sua própria vida, dando, por exemplo, nomes aos carros como dava, nos seus filmes, aos cavalos, também eles heróis protagonistas de aventuras.


Raimunda, como muitas outras, largou o México para desembarcar em Madrid, que, pelo menos, ficava na Europa e tinha língua comum embora mais áspera e menos enrolada na dicção. Provavelmente trazia o seu mundo numa mala de tamanho reduzido e um vaso com cacto espinhoso na mão.

Imagino Raimunda a conseguir emprego doméstico honesto, em casa de fidalgo doutor ou engenheiro, vagamente excêntrico, como usavam, e usam, ser os citadinos da referida metrópole.

Talvez fosse tão bonita quanto feia. Talvez se destacasse pelos negros e brilhantes cabelos tratados a máscara semanal de petróleo, sumo de limão e gema de ovo como era uso antes do Pantene pró V Cuidado Clássico, e pelo olhar melancólico e sonhador de quem tem cantos mariachis gravados na saudade,


agravada pela morte do cacto, vitima da invernia madrilena e da gasosa La Casera com que o filho mais novo do doutor ou engenheiro, dado à química, o regava à espera de o ver carbonicamente inchar.

Fosse como fosse, parece-me a mim que lhe ficou bem marido rotineiro encontrado na missa dominical, embora de compleição e aventura contrárias às de Tom Mix, dono de loja modesta de ferragens.


Vou-lhe chamar José que é nome ancestralmente estável e tolerante.

De facto, José nunca usou outras calças senão as de terylene com cós nunca mais de um centímetro abaixo da linha do diafragma.
Nunca vendeu parafusos, porcas, cavilhas, torneiras de meia polegada ou três quartos, creolina e tinta acetinada, massa vidraceira e chaves de grifo, dobradiças de balanço e meio balanço, sem o mesmo modelo de bata de sarja cinzenta.

Também me parece que sempre tolerou a malagueta com que Raimunda apimentava, por distracção genética, o gaspacho, bem como os rombos nas lâminas de barbear, provocados pelo escanhoar frequente das pernas e a caveira pendurada ,conjuntamente com cruxifico e Santa Guadalupe, no fio de ouro que trazia ao pescoço. Herança de uma das suas avós.

Como me disseram que Raimunda, lá para o fim da história, apareceu viúva, não me custa acreditar que José perdeu o animo de viver quando partiu uma perna em visita indignada ao AKI, sucumbindo definitivamente quando uma estante lhe aterrou na cabeça. Em pleno IKEA.


Jazia o idoso José com um irónico saco de parafusos, para a montagem do móvel, aos pés.

Mas durante a sua vida, Raimunda, foi razoavelmente feliz.

Dona de casa, nunca lhe faltou sustento nem abrigo.
Nem dinheiro para a sombra Max Factor nas pálpebras, nem para o creme hidratante Lander, nem para o perfume Túlipa Negra, com finalização lavanda, quando não alfazema.

Teve tempo para fazer várias colchas de renda para a cama folheada de mogno da mobília vagamente estilo Luís XV e remotamente Império (os pés em vez de patas de leão tinham efígies de touros Miura), enquanto ouvia os folhetins românticos na telefonia.



Tinha, ainda, disponibilidade mental para atribuir às vozes masculinas mais românticas, a figura física de Tom Mix à excepção de quando tais personagens tombavam, por desgosto agravado e passivo, em sanatórios para tuberculosos ou doidos. Raimunda gostava de homens fortes com sentimentos mais passageiros que definitivos.

Imaginativa, quando, ao domingo, se sentava no Seat 600 de José, para primaveril ou estival pic nic no Paseo de Recoletos ou na Casa de Campo, sentia o cavalgar indómito e solidário dos cavalos do Cowboy.



E neste campo fico-me por aqui que não é bonito entrar nas fantasias mais privadas de ninguém mesmo quando se lhe inventa a vida.



Já muito entrada nos anos, Raimunda tornou-se espectadora assídua do programa de Doña Carmen Sevilla na televisão. Está nele a actriz e cantora tão à vontade e coloquial, que todas as histórias dos bastidores do cinema que desfia, nos parecem contadas ao ouvido, ali, no sofá que partilha connosco.


E Doña Carmen anunciou, um dia, que em determinado cinema de Madrid para tal vocacionado, se iria mostrar antologia fílmica de Tom Mix.

Raimunda, já viúva e muito muito idosa, tomou-se de decisão, apanhou o autocarro e foi sozinha ao cinema.


Viu filmes.

No fim da sessão, um arrumador viu que Raimunda não se levantou do seu lugar. Dirigiu-se-lhe para lhe saber do estado de saúde ou de qualquer outro incómodo.

Raimunda apresentou ar indignado, furibundo. Declarou que enquanto não apresentassem o verdadeiro Tom Mix, o seu, não se levantaria.

Muito lhe explicou o jovem arrumador que tinha visto o Tom Mix e que outro não havia. Muito ela negou, com certeza e birra.

Impotente, o dito arrumador chamou a directora das antologias que, com feminino, filial e paciente trato, convidou Raimunda para a próxima leva de filmes, oferecendo-lhe postais vintage do actor e outra documentação, sandes e bebida a gosto.


Passadas umas horas, já a noite era madura, Raimunda vencida mas não convencida, lá foi, com segurança de acompanhamento, para casa.

Em conversa teimosa, a anciã contou o princípio desta história à directora. Com ar vagamente filosófico, a referida directora contou-me o fim.

Ia Raimunda triste porque talvez não tivesse percebido, nem a tal coisa é obrigada, que a memória distante é coisa ainda um pouco menos absolutamente certa e verdadeira que a vida e que, um simples e mítico corredor de infãncia ou a imagem de um actor, talvez não passem de uma chave que acabou por perder a porta, algures, no emaranhado transitório do tempo.


quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Porque já algum tempo não a via, porque dei com o Stabat Mater de Pergolesi, no blogue da Frioleiras, porque ontem à noite, na boa tradição espanhola, abri presentes, sendo o dela inesperado e atento à memória que conserva de mim, pelo respeito e afecto que lhe guardo, aqui vos vou falar, tentando não sair do que já assumiu em público

Da mulher que transformou em tudo as grandes quantidades de nada


Agora, a brincar, tratamo-la pelo sugestivo nome de Maricruz, que o verdadeiro dela, é bastante mais laico, operático, sensual, leve e sem tanta carga de sacrifício.

Nasceu de um cruzamento de famílias da mais pura aristocracia espanhola mas como todos os realmente mais antigos, nunca fez disso alarde ou aproveitamento.

Fez-se bailarina de precoce e sobejante talento, até ter sido seduzida pela explosão da Movida em Madrid que, como a muitos outros, haveria de quase a matar.

Deslumbrada pela liberdade, após anos de clausura numa mentalidade fechada e cega ao resto do mundo, como era a Espanha de Franco, tomou-se de amores vadios, mais por obrigação do que por desejo ou impulso amoroso. Chama-lhe agora a “ditadura da fornicação”.

As noites, as drogas, os delírios desordenaram-lhe a disciplina a que a dança obriga.



Nos ensaios, faltavam-lhe elasticidade, coordenação, memória, expressão convincente.

Apesar de tudo, nada que lhe conseguia tirar o espírito de observação de pormenores, a inteligência, a cultura sólida nas Artes, o senso de humor imaginativo.

Uns anos mais velha que eu e de patente mais alta, não me esqueço do respeito quase militar que lhe tinha, tão habitual no mundo da dança, nem o que sempre lhe hei-de agradecer: a critica que me fez, frente ao espelho enquanto se maquilhava, em relação a uma das minhas facetas, enfim, artísticas.

Ainda hoje, quando ponho em prática tal aspecto me lembro dessa chamada de atenção para evitar repetir os erros.
Ficou como uma voz presente no fluir das ideias.

Foi despedida e desapareceu de palcos e estúdios.

Vimo-la uma vez, na rua. Parecia uma patética boneca apalhaçada de corda, às voltas sem sentido, de sorriso estático, olhos parados e sem focagem certa. Morta na decisão e na vontade. Não nos viu. Fingimos não a ter visto.

Passados anos fomos a Toledo ouvir o Stabat Mater de Pergolesi, na portentosa Catedral.

Por visão periférica de defesa, tão estrategicamente desenvolvida nas mulheres, outra e eu sentimos um olhar fixo em nós.

Era ela. Quase irreconhecível. Sem maquilhagem, cabelo sem corte definido no desenho, com boas cores, face mais arredondada sem vestígio de esqueleto, sorriso aberto, discretamente vestida, cordão com crucifixo ao pescoço acompanhada por outras da mesma feição.
Só passados alguns segundos o nosso cérebro atordoado chegou à conclusão óbvia: deviam ser freiras sem hábito.

No fim levantou-se, soltou pressa para distribuir abraços, não sem um ou outro prosaico mui cabrón, e pecador hijaputa que, como é sabido, em Espanha, nem as mais altas espiritualidades conseguem dobrar a língua terrena.

Contou-nos depois, com uma calma e docilidade que se sentiam genuínas, que um dia tinha entrado na Igreja de Santa Maria del Mar, em Barcelona,

se sentou sem reza, e que sentiu uma luz de paz, vinda das janelas em ogiva, entrar-lhe pela alma dentro. Um dilúvio de alívio e consolo. Uma leveza como se não existisse.

Que pensou ser tal sensação de arroubo místico consequência do gin tónico ingerido, dos múltiplos porros (charros) fumados, para além de alguma cocaína a puxar para a clarividência.
Que foi dormir e que quando entrou numa das habituais festas, achou tudo vazio e estranho de sentido, utilidade ou satisfação.

Que se viu como imagem num catálogo de imensas e variadas solidões.


Que sentiu uma urgência premente de voltar à Igreja.
Que percebeu a sua pertença a uma ordem estável e intemporal, a um princípio de superior grandeza, muito para além dos caprichos volúveis dos tempos e dos espaços, uma espécie de fio condutor e comum a todas as coisas,


que se sentia lavada dos acessórios excedentes do mundo, que foi fazer um retiro conventual para espíritos confusos e se sentiu bem naquele espaço simples partilhado,

dividido sem necessidade de encher o encontro de palavras desperdiçadas.


E que não, não eram freiras carregadas de obediência austera, não viviam fora da vida nem sem riso.

E durante a nossa conversa, a gargalhada foi farta quando brincámos ao tipo de santas e santos que gostaríamos de ser, quando a imaginámos no andor de procissão em honra da nova canonizada de Espanha, quando metemos cunha antecipada e precavida para a nossa entrada no Paraíso, contávamos com ela para apresentar as nossas virtudes e suavizar os nossos mundanos pecados





e outras heresias várias que nos vieram à cabeça.


A sua Irmandade dedica-se, por vocação e não por alimento, castigo ou suplício próprio ao serviço social dos grupos marginais.

Escolheu ela a prostituição. Mais a feminina que a masculina porque para esta há frades próprios com mais conhecimento de causa.




Não lhes impõe a fé. Não acredita em pacotes de catecismos.

Acha a fé não ser descoberta imposta e que toda a gente tem um Deus à sua medida e acredita no que mais lhe convém, mas aconselha, ouve confissões em forma de desabafo terapêutico e tenta salvar as crianças introduzidas naquele meio pelas próprias mães e pais afectos ao mercado.

Foi assim que já a vimos, livre de qualquer linha ideológica encartada, em debate televisivo. Conversa crua e desmistificada como só em Espanha consegue ser.


Torna-se Maricruz incómoda para a esquerda quando diz que algumas o são de livre vontade, gosto, orgulho, vocação e defende a reabertura de sítios próprios e protegidos para o comércio em vez das andanças aleatórias pelas ruas, tantas vezes manchadas de sangue e tortura, como a calle Montera


frequentada por clientes, a maior parte estrangeiros de poucos recursos ou indígenas marginais ou sem abrigo, onde se pratica sexo em plena via pública, sem reserva nem higiene.

Fiquei a saber, depois, que cada vez se fala mais português ali, cada vez mais chegam carrinhas Nissan Vanette e Ford Transit carregadas de operários sazonais da construção e cada vez mais prestadoras de serviço de língua oficial portuguesa disputam, violentamente, o espaço na calçada.
E quebra ela a direita ao responsabilizar os homens, sempre neste campo considerados inimputáveis pela sua natureza naturalmente activa e pouco racional, pela procura, para além da hipocrisia purificadora e irrealista dos costumes.


Voltei a encontrá-la na semana passada e foi jantar lá a casa.

Conversou de coisas sérias, algumas pouco entendíveis para espíritos agnósticos como o meu , riu, brincou,bebeu aquele "nada anémico sangue de Cristo” de Peñarubia da boa colheita de 2002, olhou para fotografias em que figura, com a vaga distância de quem reconhece um antepassado distante.

Teve a Graça rara de dividir a vida em duas, de assistir à sua própria ressurreição

Antes de sair, era hora de ir de missão, vestiu um casaco coçado nas partes mais roçadas e da pasta foi tirando caixas de preservativos, seringas, pastilhas de desinfectantes intimos, embrulhos toscos com os nossos presentes para a Noite de Reis, até encontrar um cd de edição limitada, nem mais nem menos que o Stabat Mater de Pergolesi cantado por umas religiosas húngaras, que fez questão de oferecer.

Ao entrar para o elevador cantámos-lhe em coro a célebre canção kitsch-trágico-mórbida

Esperame en el cielo, corazón
Sí es qué te vas primero…

Ao que respondeu com uma bênção em versão balética.

Durante momentos, a casa pareceu ter uma luz mais calma, mais repousada, como costumam ter as casas atravessadas por quem tem o dom de ser naturalmente feliz.