Curiosidades acerca dos banhos que têm medo dos olhos do ar


Em breve apresentação, posso dizer que Lady Mary foi uma, entre algumas mulheres inglesas com existência no séc. XVIII, que nasceram mais fadadas para a aventura e para a descoberta, do que propriamente para seguir os recomendados rumos femininos do seu tempo.
Desde cedo foi autodidacta, mulher expandida pela necessidade de conhecimento, hábil espadachim em argumentos proibidos a cérebros decorativos e domésticos.
Casou com um diplomata. Foi para terras árabes. Meteu o nariz onde não era chamada, muitas vezes trajada de homem e, provavelmente sem saber, deixou, em forma epistolar, larga literatura descritiva sobre hábitos, danças, movimentos, corpos.
A sua descrição de movimentos admitidos nos arábicos banhos públicos femininos, ainda inspira algumas práticas nas artes performativas contemporâneas.
Lady Mary fazia-se sempre acompanhar de um repórter de imagem, desenhador-gravador, a soldo das suas investigações pelo exterior, coisa que Ingres e outros haveriam de agradecer.

Lady Mary, dada a comparações entre mundos, descreveu curiosas diferenças entre o Ocidente e as Arábias:
se enquanto em Inglaterra, homens, mulheres e crianças se banhavam, trajados de grosseira túnica, quando não quase nus e conjuntamente, nos rios ou banhos publicos, em algazarra festiva executando até dança em forma de tosca galharda,

nas Arábias os homens separavam-se rigorosamente, por vontade de Alá com intermediação atenta de Maomé que passava mensagem aos doutos, das mulheres.
O curioso era que, nos rios, os homens ficavam a montante e as mulheres a jusante.
Evitava-se, assim, que os homens fossem contagiados por eventuais fluidos femininos, produtos óbvios das forças do mal.

Mulher menstruada que fosse a banhos em tal estado, era açoitada por ser veículo da poluição demoníaca. Não merecia limpeza.
Nas “piscinas” dadas à higiene, reservadas para as mulheres, não podiam entrar nem cristãs nem judias. Qualquer uma delas era ainda mais filha legítima do Demo do que as árabes.



E descreve as ordens decretadas sobre tais movimentações, evitando-as profilacticamente, emitidas por um grupo de juristas íntimos da vontade de Alá e Maomé.

Resumindo,
deviam as mulheres andar em passos curtos, nunca se agachar ou dobrar e nunca afastar as coxas, nem mesmo dentro de água, sendo que esta também tem os seus olhos;
também não deveriam tocar com as suas próprias mãos no seu próprio corpo de forma a fazer despertar fervores no Infame, nela.

Em qualquer circunstância, deveriam ter a consciência de que nunca estavam sozinhas.
Mulher que não tiver gente que lhe vigie as tentações e preciosidades, deve saber que Alá está, até, na mais ínfima porção de ar.
Mais legislavam que as mulheres que se despissem na frente de cristãs ou judias, ou mesmo árabes, ou para elas olhassem nos olhos, deveriam ter os cabelos cortados rente após o que seriam açoitadas até à morte.

Alá fez saber, por intermediários, que a mulher que denunciasse outra às autoridades, cuspindo-lhe três vezes, teria entrada no seu reino.
Em algumas zonas, de Diabo mais aceso, os juristas, determinaram que as mulheres deveriam usar longo manto de cor opaca e em tecido que, molhado, não colasse às formas do corpo, bem como um capuz com rede para que os olhares, mesmo só árabes, onde também, tantas vezes mora o Maligno, não se trocassem.
Só o marido

teria acesso a visões de rosto e outras partes, não devendo elas olhar-se no todo ou em parte.

Estranha, contudo, Lady Mary que algumas meninas mais promissoras em formas, fossem retiradas às famílias para, em palácio, serem educadas a praticar o maneio da anca em dança do ventre, ou a retirar com langor, dançando, as suas vestes ou a tomar, como parceiro dançarino, um pilar ou vara, para deleite de juristas, reis e teólogos.
Se bem que muito mais imunes ao pecado, também os homens não podiam olhar para os outros homens, nem despir-se à frente deles, nem com eles terem contacto físico de alguma espécie.

Flaubert é mais completo na descrição do varonil banho, mas é por Lady Mary, salvo erro, que ficamos a saber que os homens árabes depilavam as vergonhas com uma mistura de cal viva e trissulfureto de sódio acreditando, à semelhança dos cristãos, ser debaixo desse piloso manto que o Diabo inscrevia alguns dos seus símbolos e sinais.
Eram também obrigados a usar uma espécie de capacete rígido nas partes, não fosse o matreiro Diabo, fazer das suas.
(Diziam os doutos que aí está a prova da perversidade das mulheres: anda o Demo nelas e nada transparece aos olhares.)
E se um homem olhasse para outro, desprezando-lhe as misérias ou cobiçando-lhe a riqueza, seria condenado a que, durante quarenta dias, Alá ficasse surdo às suas preces.
Na movimentação para dentro ou fora da água, nunca deveriam virar o traseiro para Meca, pelo que, suponho, se viriam a tornar peritos na manobra de marcha atrás.
Não sei se Lady Mary Wortley Montagu, ainda continua a escrever os seus relatos. Se continuar, talvez ao longo destes séculos, tenha mudado a forma mas não o conteúdo.
Talvez o tenha acentuado quando em 1980, o douto Khomeini, hiperbolicamente, tenha mandado abater centenas de mulheres por andarem "nuas", ou seja, vestidas à "ocidental".

Lady Mary talvez tenha tido uma segunda morte quando viu (desculpem-me a violência) enforcar em festa, no Irão, no Iraque, na Palestina, milhares de cães e gatos como simbolos malditos da nudez moral judaico-cristã.
Talvez, e seja qual fôr a civilização, só tema o pecado quem muito bem o conhece.
Talvez só tema os olhos do ar quem nunca aprendeu a respirá-lo.
