segunda-feira, 23 de novembro de 2009

E este segue em forma de pagamento de promessa à minha jacartiniana sobrinha e pode conter, para as mentes mais resguardadas ou sensíveis às reais situações do mundo ou ainda alérgicas a lamas policiais, palavras ou situações chocantes. Vou tentar ser breve que, a bem dizer, tudo isto dá infindável prosa.

Da mulher que, inventando-se, se esqueceu de morrer.


À laia de preâmbulo e como toda a gente sabe, a Monroe não nasceu Marilyn, nem loira, nem rica, nem famosa, nem ajuizada, nem de pai absolutamente certo.

A sua mãe, chamada Gladys, que lhe sobreviveu muitos anos, alguns dos quais internada em hospital psiquiátrico, já tinha herdado da sua própria geradora uma esquizofrenia exuberante, pelo menos segundo as classificações da época.

Embora por outros motivos aparentes na superfície, Marilyn também passou por internamentos vários.

Gladys mostrou uma fotografia do suposto pai a Norma Jeane (ou Jean) Monroe Mortensen que haveria de ter consequências funestas no futuro. Por parecença no fenótipo de homem, Marilyn veio a convencer-se ser filha de Clark Gable, afirmando tal coisa a quem a quisesse ouvir, para grande espanto do actor. Foi uma das suas primeiras invenções.
Segundo testemunhos de várias famílias de acolhimento, já em criança, Norma vagueava entre a tristeza, a confusão e a fantasia desafiadora.
Por estas e por outras nunca ninguém soube quando Marilyn falava verdade ou mentira, quando inventava calculadamente tragédias e infelicidades para cativar e comover o sexo oposto ou quando acreditava piamente nas vidas que de si construía.

As únicas declarações que manteve estanques em toda a curta vida foram o desejo de ser fada do lar, submissa ao ser superior que é um marido e Chefe de Família. Era feroz adepta do tão publicitado modelo de família dos anos cinquenta.


Fez diversas e detalhadas descrições, de uma suposta violação em criança, para justificar a sua muito precoce voracidade por homens.

Casou aos dezasseis anos e contam terceiros e também ela (chegou a auto classificar-se publicamente como rainha dos felatio), que enquanto o marido estava na guerra, não houve mancebo, de preferência fotógrafo, que lhe escapasse.


Cedo começou a tomar analgésicos para paliar as dores fruto dos problemas ginecológicos resultantes de inúmeros abortos feitos em sítios pouco habilitados para o efeito. Mais tarde, teve-os naturais. Nunca chegou a conseguir o que mais queria: um filho. Tal impossibilidade fê-la cair em actos do maior delírio.
Ao longo da instável existência, a discrição acerca da sua vida, da dos outros, e sobretudo da sua com a dos outros, nunca foi propriamente virtuosa.


Tal falta de contenção face a segredos e o hábito de seduzir e partilhar qualquer leito com qualquer homem que lhe aparecesse à frente, pode ter levado ao seu assassínio embora para o grande público se lamentasse o suicídio.

Marilyn foi construída e construiu-se como o protótipo de mulher famosa, bonita, frágil, traída nos amores. Uma espécie de aristocrata da infelicidade com brasão desenhado nas chagas da desventura.

Durante a sua vida e após a sua morte foram vendidos, em todo o mundo, milhões de romances de cordel sobre a deusa com penas mortais.

De facto, Marilyn sempre viveu dependente de várias drogas. Para além das analgésicas, recorria excessivamente a comprimidos para dormir (sofria de insónias crónicas) e para matar a ansiedade. Misturava-as com álcool e por diversas vezes entrou em coma.
Eram desesperantes, para colegas e realizadores, os seus atrasos (chegava a ser maquilhada enquanto ainda estava a dormir), e as omissões de memória.

Um exemplo da decadência global do seu estado, foi na festa de anos de J. F Kennedy, quando cantou o famoso “Happy birthday, Mr. President.”


E começa aqui o enredo policial.

Já era dado adquirido no meio, que Marilyn era amante simultãnea de John Kennedy e do seu irmão Robert. E de Frank Sinatra, com ligações ao sucessor em poder de Al Capone, Giancana. E deste a quem era favorável a extrema direita.
(Segundo alguns investigadores a figura central desta renda era a voz de oiro, angariador do vasto rol de mulheres que os presidenciáveis irmãos partilhavam e mestre de cerimónias nas festas de famosos com orgias de poder a todos os níveis.)

A meio de uma das festas, dada em casa de um cunhado dos Kennedy, Marilyn foi para casa. A meio da noite foi encontrada bastante morta e em rigor mortis na cama, agarrada ao objecto de que era dependente: o telefone. Telefonava a quem quer que fosse a qualquer hora.



A polícia fotografou o quarto. De forma exaustiva. Foi feita autópsia com o veredicto de suicídio (suponho que por negligência de vida )dadas as doses de álcool e barbitúricos concentradas no fígado.
Mas, um professor da especialidade inglês, em honra da veracidade anatomo-patologista-forence levantou o pó da certeza.
O estômago de Marilyn estava limpíssimo. Nem comida nem resquícios de comprimidos ou cor dos mesmos no dito órgão. Parece que, com tal dose capaz de matar, o coração pára antes que todas as pílulas se desfaçam. Mesmo quando passados em almofariz e diluídos em líquido, deixam rasto por onde vão passando.

Não haviam sinais de injecção intramuscular ou endovenosa.

Perguntou o Douto Professor Inglês, onde estava a análise toxicológica ao cólon. Não existia porque o autopsiante se limitou a olhar o e a verificar que Marilyn tinha o órgão massacrado por obsessivos clisteres , como era prática corrente nas actrizes e modelos como forma de perder peso.



Indignou-se o inglês com tal negligência já que eram muitos os assassínios discretos praticados dissolvendo as mortais drogas na água utilizada para a prática.

E se o autopsiador fez longo relato dos pêlos públicos da famosa defunta, não lhe examinou o canal vaginal.

Por não ser sítio muito exposto ao comum dos olhares, também era forma corrente de, através de injecção, administrar o mortal princípio activo, levando-o a espalhar-se sangue fora.

Mais tarde, juntando todos os elementos, muitos se viraram para o assassinato por um destes dois últimos meios.



Por outro lado, ouvindo quem estava na festa, comparando horas, chegou-se à conclusão mais apurada, dado o estado de rigor mortis, que Marilyn por lá andou, de copo na mão e passeando-se, já finada.


E nas fotografias do quarto não se vê nem copo nem garrafa de líquido por onde Marilyn tivesse empurrado para dentro de si os comprimidos.
E mais muitas coisas que agora não me ocorrem.

O processo foi fechado e reaberto várias vezes e, parece que só em 2025, poderão ser de acesso à investigação publica documentos reveladores. Alguns dizem que a História vai trocar anjos e demónios.



Talvez tudo seja tão irónico como o corpo esventrado de Marilyn dias a fio na morgue, sem que, no meio de tanta fama e utilização, alguém o reclamasse para lhe dar definitivo descanso. A família desprezou-o, os famosos ignoraram-no.

Como muitas outras vezes em que o Ícon era massa disforme, o seu controverso ex-marido, Joe Dimaggio, encarregou-se de a chorar e lhe fazer o funeral. Toda a vida, apesar da violência gerada nos ciúmes doentios, lhe tinha chorado o lado mais recôndito dos desaires.



Tinha visto mais da mortal Norma Jean que do ambíguo produto Marilyn.

De qualquer forma, talvez ainda se continue a ouvir em todos os plateaus, teatros e famas em qualquer parte, o que tantas vezes ela disse:

“Em Hollywood, pagam-te mil dólares por um beijo e cinquenta cêntimos pela tua alma”



A preços da época, claro!

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Vai este a correr e como modo distractivo e inspirador, já que a seguir tenho que redigir relatórios obrigatórios em nome da boa produtividade numérica mas não qualitativa, e que poderiam resumir-se a
Outubro: os ovos soltaram as pernas e fugiram;
previsões para o próximo ano: as galinhas emigrarão com mochila definitiva;
conclusão: não há condições para a confecção de Bacalhau à Brás.
Mas, não aceitando os destinatários, de todo, tal catástrofe aviaria e sendo necessária prosa digna de função ajuizada, resolvo sacrificar-vos à minha idiotice, ou seja,

De como, abrindo arcas, pode sair a mais alcoviteira e idiota das prosas


Estimadas Leitoras (que aos Leitores já lá vou):

Se vos olhardes ao espelho em corpo inteiro e maldisserdes a magra fatia de beleza com que a natureza vos brindou, não esmoreceis. Outras mulheres, varridas, não desfazendo, pela vulgaridade como nós, se tornaram beldades dignas de qualquer arrebatamento do coração mais duro.


Assim, se achais vossos seios escravos da infeliz lei da gravidade, fazei como Jane Russell e Marilyn Monroe (quando me passar esta onda de estupidez, abrirei a arca séria que contém alguns despojos desta última):

ide-vos ao congelador buscar gelo e antes de aparecerdes frente a olhares ou toques públicos, deitai-vos em decúbito dorsal, mais conhecido pelo plebeu “de costas”, e passai, pelo menos duas horas, com vossos seios envoltos na mais gelada e sólida das águas. Isaac Newton perderá toda a razão.


Se mesmo assim, vossos mamilos se apresentarem frouxos e planos, não desespereis: na impossibilidade de voltar aos anos 30, 40 ou 50 para romaria a uma loja de Hollywood, podeis sempre dirigir-vos a um estabelecimento na lisboeta Rua da Conceição, a das retrosarias, e coser botões de forma compatível, no vosso soutien. Marilyn e outras, sempre os usaram e não foi por isso que deixaram de ser estrelas.

Se quiserdes realçar as vossas femininas curvas, não compreis vestidos já feitos. Contratai um costureiro como Travilla e ele vos coserá, au moment, o tecido esticado sobre a vossa pele. A mesma Marilyn, bem como Rita Hayworth, copiaram a ideia de Madame Julliette Recámier, a melhor amiga da napoleónica Josefina.

Mas, notai, que Lauren Bacall,


se tornou céptica de tal metodologia, quando teve que ajudar Marilyn, antes de esta subir ao palco, a despir o famoso vestido vermelho, por uma inconveniente e urgente necessidade fisiológica, natural mesmo em imortais.

Se quiserdes ter um andar bamboleante em que bem se note a ondulação calma de vosso modesto traseiro, comprai sapatos de salto alto e, the most important of all, cortai uns milímetros tão só e apenas num dos sapatos.

Não chegareis a coxear e ficareis exuberantes no passo.

Se fordes, damas e agora também para cavalheiros, de cara arredondada, vulgo bolacha,



dirigi-vos sem demora ao dentista e fazei extrair os molares.

Quase todas as estrelas o fizeram. Porque não nós, simples e baços minúsculos planetas perdidos na vastidão do espaço?
E se, a vossa pele, também para cavalheiros, vos parecer terra em fase de árida secura e sem o macio da melhor seda da China, , untai-a durante três horas com espessa camada de vaselina ou banha de porco.

Se, a bem da vossa sensualidade, homens e mulheres, for vossa intenção baixar as pálpebras, aí tomai uns bennies, ou seja, uns comprimidos hollywoodescos, que vos darão sonolência de olhar baixo, mas sem que Morfeu vos vença. Nada mais apelativo ao desejo próprio e alheio que um olhar semi-cerrado e lãnguido.



E, leitoras, para subir as nossas maças do rosto, esse fruto tão nosso, podeis colocar, com cola apropriada, uns pachos de compressa, entre a parte superior da gengiva e a bochecha. Se vos disserem, ao falar, que tendes som de conversa debaixo de água, é porque o vosso interlocutor sofre de surdez ou a vossa interlocutora de inveja.

Se não falardes, tanto melhor: nunca se viu uma distinta estrela, que use este método, ser de palavras inteiras. Uma certa interioridade calada potencia sempre fascínio e langor românticos.


E para lábios carnudos, relevantes e apelativos, pintai-os, numa mesma sessão, com cinco tonalidades diferentes. Entre o claro e o escuro. Tornai-os discretamente policromos. Conseguireis, assim, fazer recuar umas partes e salientar outras.
Mais uma vez, Marilyn, sempre os transportava na mala de porão que era a sua necessaire.



E não vos esqueceis, damas e cavalheiros, da exigência de Marlene Dietrich quanto a fotografias: o foco de luz deve sempre ser colocado numa linha obliqua por cima da vossa cabeça.


Explico melhor: imaginai uma linha recta que passa encostada ao vosso queixo e continua de forma a tocar na ponta do vosso nariz. Mais acima, quando já vai longe da vossa testa, pode então ser colocado holofote.

Tal estratégia fotográfica, de preferência a preto e branco, eliminará a maior parte das vossas rugas e imperfeições.

A sombra terá o condão de esconder o que a luz denuncia.


Agora, umas breves palavras, em exclusivo, para os meus leitores:

Cavalheiros:


Se os vossos ombros forem mais estreitos do que as regras do poder da masculinidade impõem, usai casaco largo com proeminentes chumaços.

Não vos envergonheis já que tal invento, veio de um alfaiate presidencial com mestria na arte de disfarçar as debilidades do presidente Franklin Roosevelt que, como sabem, era seguramente, mais raquítico que qualquer um de vós.



Se estiverdes em informais mangas de camisa, usai suspensórios com a linha deles a passar o mais junto possível do vosso largo pescoço ( para o alargar é absolutamente necessário livrar a nuca de cabelo, se o tiverdes). Tal conjunto, tornar-vos-á os ombros mais rectos e potentes, bem como vos salientará os músculos peitorais.


E por falar em vigor peitoral, se fordes daqueles infelizes de abdómen saliente e com, enfim, uma espécie de pneus na cintura, usai calças de cós alto.

Disfarçareis assim o hábito de beber cerveja a rodos e fora de horas e, com o cinto, ou suspensórios, na linha das ultimas costelas, as flutuantes, vislumbrar-se-á o V do tronco atribuído a Adão e a Tarzan própriamente dito ou mesmo a Luso Tarzan, o Taborda.


E, sobretudo, não devereis esquecer nunca os ensinamentos de Frank Sinatra: homem que é homem e não ser duvidoso, hesitante ou amaneirado, cultiva a imagem máscula, predadora e resoluta do gangster dos anos vinte e trinta.

Para conselhos mais específicos e personalizados, podem os leitores enviar fotografia de 10x15 em corpo inteiro, frente, perfil, três-quartos e costas para

Aviário das Galinhas Emigrantes, apartado 2010, Lisboa Codex




Os meus mais glamorosos cumprimentos.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Vem este a propósito de ontem ser dia de romarias negras floridas, de parte do muro da minha morada ter caído por pressão de um salgueiro cheio de hormonas de crescimento e de em consequência disso, me ter lembrado e, por coincidência, visto


O homem que parece uma nuvem feliz dentro de um fogo escuro ou de como há cabeças que não sentem a falta do corpo ou corpos que não sentem a falta da cabeça.

É por ali tão distinto que apenas o nome próprio lhe chega e basta: Chico.

Conheci-o através de um empreiteiro, mestre sisudo e honesto de obra particular, sem serviçais fixos.


Andava Chico no ofício intermitente de ser ajudante de pedreiro, quando não intervalava com abertura de covas no cemitério ou com ressacas semanais debaixo do alpendre da sociedade recreativa sem direito a banda residente mas em cuja heráldica figura lira desenhada a regra e esquadro.

O empreiteiro disse-me, sempre a olhar para o lado esquerdo do chão, como ali fazem todos os homens quando falam com mulheres que lhes dizem o que querem, têm livros e não aparentam medo nem curvatura, que Chico era maluco mas boa pessoa. E de absoluta confiança na propriedade alheia.


Ainda hoje, quando falo com ele, empreiteiro, e para fugir à visão do eterno palito no canto da boca, me distraio perguntando se tal esquerdino hábito não terá reminiscência nos modos de etiqueta dos salões valsantes do séc. XIX, já que por ali, também todas as mulheres quando falam com outras mulheres, que vêm da cidade, não aceitam ordens nem sabem cozinhar a horas e com receita de obrigação, tombam a cabeça para o lado direito.

(Isto não vem para a narrativa mas apeteceu-me)

Chico logo me impressionou pelo porte e figura: alto, bem fornecido de musculatura sem adiposidade extra, limpo, cabelo como flocos de neve negra, olhos risonhos com pestanas naturalmente arrebitadas, bigodinho vintage-galante cuidadosamente aparado,




camisa de quadrados decentemente abotoada até ao último botão na fronteira do colarinho, botas rústicas castanhíssimas de biqueira aguda, boa educação, fácil trato e melhor compostura.



De facto, Chico remete mais para a figura mítica de obreiro americano, em folga de baile dominical, que herói da boçalidade socialmente cultivada naquele meio varonil.

Ali, é uma espécie de aspas de homem.




Logo na primeira tarde de serviço, era ela ainda recém nascida, Chico saiu deixando ao Deus dará do sol de verão, uma montanha de cimento fresco e uma bocarra aberta numa parede estratégica.
Algures, lá para os lados da faringe dessa bocarra, apareceram a mãe e a tia de Chico, cuja figura era mais ou menos esta:


Com palavras confusas e descordenadas, andavam à procura dele ainda acreditando na sua fidelidade a compromissos.

Eu vim a saber, elas não sei, que Chico tinha sido chamado pelo presidente da junta de freguesia para ir abrir a cova onde haveria de ter repouso eterno o cunhado, vogal na assembleia municipal e bombeiro voluntário. Se a memória de pormenor institucional não me falha.

No dia a seguir, ralhou-lhe o empreiteiro com palavras duras por massa cimenteira desperdiçada e obra atrasada e eu mantive-me sisuda e Chico não se defendeu nem atacou, limitando-se a encolher os ombros e a sorrir.

Mais vezes Chico voltaria a desaparecer a qualquer hora, sem aviso nem justificação.

Depois de liminarmente o ter despedido, haveria de quebrar e voltar atrás na minha zanga.

Apesar dos eternos lençóis brancos sobre móveis e entulho no chão, lembrei-me dele sentado à entrada do portão à espera, a afagar um gato irascível ou a contorcer-se em artimanhas para não ferir em obra um canteiro de viçosas buganvílias, a lanchar na mesa da cozinha com modos de cavalheirismo aristocrata, a desenhar e a fazer cálculos certos e rápidos de uma escada em madeira, a folhear, fascinado e perguntadeiro, livros de figuras estranhas, nunca sem antes pedir licença.
Neste, por exemplo Chico comoveu-se com a mestria e nele se demorou , por não conseguir olhar de frente, sem medo, o mar verdadeiro.



Emudeceu e ruborizou quando lhe saiu programa descarado.


Dava gargalhadas noutros


Mas todos os dias, volta e meia, lavava cuidadosamente as mãos e abria o livro na página onde fixava os olhos nesta sacralidade oficinal, percorrendo-lhe o rosto com as pontas dos dedos, como se, por artes mágicas, lhe desse relevo e vida.



Mas, houve um dia em que o empreiteiro, com o compêndio corcunda de hérnias discais e artroses hortícolas que era a sua mulher,


me apareceu desgostoso e em grande agitação de palito: o Chico tinha sido levado por militares.

Andava o casal empreiteiro, em casas onde tinha andado empreitada, a pedir o favor que se confirmasse, por testemunho, que o Chico não roubava, que não brigava, que não insultava, que não feria, que não matava, que não tinha relógio, que não sabia de dever fixo nem eventual, que era um desgraçado sem cabeça e que, apesar de tudo o conheciam desde nascido e lhe tinham amizade.

Chico tinha ido preso.

Anos atrás tinha ido à tropa sendo colocado num quartel do norte. Teve licença para ir passar o fim de semana a casa, que era, na altura, uma vivenda em Lisboa, com as funções de guarda, jardineiro e o que mais de biscate fosse preciso.

E o Chico nunca mais voltou ao quartel nem deu notícias de paradeiro. E “calhou” voltar para casa da família, um casebre escuro, onde a única luz é o fogo do álcool que sai da violência das bocas, onde se amontoam crianças avulsas nascidas pelo mero impulso da natureza, sem pontualidade nas letras, homens e mulheres indolentes e animais, também eles, a improvisar sobrevivência.


Ficou preso uns tempos.



Consegui saber que, enquanto aguardava decisão, foi de bom comportamento, que fazia continência com sorriso e não com riso desafiador, que levantava os ombros como resposta a qualquer chamada de atenção, que rezava, que pedia duas, três, quatro hóstias nas missas, que disse que tinha visto Deus num livro em casa de uma senhora, que mudava de meias, religiosamente, duas vezes por dia.

Foi solto com diagnóstico psiquiátrico palavroso.



Foi colocado como coveiro no cemitério.

Disse-me, ontem, sempre a sorrir, que estava bem ali, naquele trabalho. Que não gostava de estar ao pé de gente que fizesse barulho. Que a prisão tinha sido boa, que está cá fora porque é maluco.

Por uma fracção de segundo, li-lhe na noite profunda das pupilas, uma sabedoria astuta:

uma certa teoria empírica, algures, entre a ficção e a realidade.