sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Boto este como explicação mais detalhada do meu “desastrado nascimento”( como referi em comentário abaixo) bem como aos seus arredores dele.

Mais digo que vai dedicado à Senhora Minha Mãe, talvez das pessoas com um mais doce sorriso que conheci e que, a rir, coraria de vergonha se soubesse os dislates que neste, como noutros sítios a duas ou três dimensões, este seu rebento vai disseminando pelo mundo.

Resumo, o mais discreto possível, de um alvoroçado 21 de Setembro

Para vos ser franca, ainda não me lembro de ter nascido.


Tudo o que sei me foi contado pela fonte fidedigna das recordações de Minha Mãe, pessoa absolutamente imprescindível ao acto, e por outras pessoas, que em acontecimento funesto relativamente recente e de reunião forçada, como costumam ser os funerais, ao reverem-me após anos de ausência minha ou delas, me falaram de mim como se fosse eu a defunta.
Assim me senti, embora cordialmente sorridente de mobilidade vertical e sem apoios ou efeitos cinematograficamente especiais.

Algumas dessas pessoas são de tal forma idosas, que me parece recuarem a minúcia da memória até do momento em que foram elas próprias concebidas.


Como se sabe a velhice é uma espécie de espelho que apenas reflecte o fundo da sala onde está colocado

Mas continuando, dia 20 minha mãe foi de esperanças já adiantadas mas ainda não muito urgentes, de Lisboa para o Alentejo a fim de assistir a um casamento mais aos tradicionais festejos religiosos, em alguns aspectos pouco respeitosos dos dez mandamentos, cujo dia grande é 21 de Setembro.


Por a noiva e o noivo serem parentes do meu pai, por um lado e da minha mãe por outro, juntaram-se ali, de forma mais ou menos contrariada, as duas famílias.

E digo contrariada já que por razões várias, os casamentos e mais ainda os baptizados, eram considerados obrigações a que bastavam só os directamente interessados assistir. Normalmente os colaterais achavam que tinham mais que fazer ou onde se divertir.

A maior parte ficou alojada em casa farta de salas e quartos.

Em edifício contíguo, tomaram poiso uma trupe de flamenco de Sevilha, um grupo musical e dois fadistas levados de Lisboa, todos contratados pelo padrinho do noivo como forma de animar o casório. No dizer dele, com noivos tão enfadonhos e bispo tão monocórdico, começaria logo a meio da homilia um coro de ressonadores, prolongando-se copo-de-água fora.

Uma das ciganas flamencas, olhando para minha mãe, tirou uma moeda da bolsa e meteu-lha na mão informando-a que ia dar à luz no dia a seguir e como o sol se ia alinhar com a estrela não sei quantas, era nascimento especial e mais que nunca deitasse a moedinha (“la plata”) fora e que sempre se lembrasse da gitana Maricarmen.


À tardinha, minha mãe foi com meu pai ver uma das procissões.
Deu dois passos, escorregou e estatelou-se na calçada, com a pança como amortecedor.

Devo ter tido o meu primeiro ataque de mau génio, tal foi a agitação que lhe fiz sofrer. De facto, os pontapés tornar-se-iam, quando virada a arruaceira, uma das minhas especialidades.

Por insistência alheia, mais que por disposição própria e contra a sábia vontade de meu avô muito estrangeiro, minha mãe foi assistir à sessão de fados, garrafas e jazz familiar num dos salões.

Refilei furibunda quando quando uma senhora amiga da parentagem e de voz de oiro entoou o seu “Não sou fadista de raça”. Nunca ficou ofendida com a confidência de minha mãe: cantas bem mas eu já não te podia ouvir…

Ia alta a noite quando o Fernando Farinha cantava os “Belos tempos” e da minha mãe desaguou farto rio com foz no tapete de Arraiolos, começando as contracções.


Estando os dois médicos disponíveis com o espírito nublado por néctares frutados da zona, meu avô muito estrangeiro e calmo dispôs-se a fazer o parto.

Algumas damas de ascendência judia argumentaram que nunca tal se tinha visto: partos eram coisas de mulheres e a que ali estava não tinha nada de ovelha, égua ou vaca.

Pressionado, meu pai mandou que fossem chamar a parteira que morava na rua de baixo. Veio o mensageiro aflito com as novas da irreversível bebedeira da perita.

A tia A. Mandou buscar e limpar um berço ao sótão.

A prima H., disse que era tão velho que tinha caruncho, ao que a outra, aproveitando o ensejo para lavar a paciência que nunca tinha e só recentemente a passou a ter de forma definitiva, lhe chamou estúpida, que o caruncho atacava madeira e não carne. Os ratos que lhe saíssem da farta e armada cabeleira é que talvez gostassem de carne fresca. Por isso, até morrer a H. era conhecida por Pompadour.

A prima A.L., espanhola, virando-se para o meu avô muito estrangeiro manifestou o desejo que dali saísse varão. Já por demais históricamente enfadado e recorrendo a tradutor tal avô ripostou-lhe um velho dito da sua terra: quando um espanhol se arranha, sai mouro. Trocaram-se mimos, eternos, de cariz rácico-político.

Entre contracções, minha mãe bem se lembra da pouco conclusiva contenda.



Já tinha chegado mensageiro do avô muito estrangeiro com uma senhora espanhola, sua empregada e refugiada da Guerra Civil, caracterizada por chamar a propósito de tudo e de coisa nenhuma, gran hijoputas aos franquistas e gran cabrones aos republicanos, o que feitas as contas, dá a mesma categoria e estatuto social aos dois.

Soavam as alvoradas fogueteiras, ouvia-se o primeiro desfile da banda filarmónica, abria-se em dor a minha mãe, quando eu perdi, e para sempre, o mais suave e puro aconchego. Nunca mais lhe ouvi o lado de dentro da voz.



Disse-me a espanhola comadrona, que protestei logo de forma tão sonora e rápida, que nem da ritual palmada precisei.

(Durante toda a minha vida, nunca larguei esse grito, embora de forma silenciosa, quando o despertador toca. Trauma evidente de quem é obrigado a levantar-se mais cedo do que a sua natureza pede.)

Foi comunicado que era absolutamente uma rapariga, perfeita e limpinha.



Ao tal ouvir, um másculo e conhecido figurão do toureio e criação de touros, disse, com a elegância e desprezo que sempre notei em tal tribo:
estas fêmeas só dão gado rachado!



Após tradução, que o tom cheirava a despeito, o meu avô muito estrangeiro presenteou-o com um valente murro nos “quêxos”. Tombou-se-lhe a virilidade pela força bruta, respeitosa e alta do afecto.

A prima C., conhecida pela Dama das Camélias



mulher votada ao melodrama pessoal e alheio, como forma frustrada, mas recorrente, de sedução ao sexo oposto, desejou que eu não morresse, coitadinha, como o meu irmão antecessor.

A irmã dela



que não precisou de compaixão para casar cinco vezes com maridos por ela escolhidos (e após rejeitados), entre vários pretendentes, entrou em conflito histriónico com tal pessimismo e alvitrou que havia de ser saudável, brava como o primeiro choro. Com sangue na guelra.

A vitima Camélias chorou mais uma vez de infelicidade sem que ninguém lhe valorizasse a grandeza da alma, a irmã mandou que se abrisse uma garrafa de bom vinho, símbolo do Outono, bebendo-o e partilhando-o em sonoras gargalhadas.

Os noivos maldisseram-me



por ter causado tanto alvoroço e noite passada em branco pelos convidados e por uma parte dos padrinhos não estar na cerimónia, ou sejam os meus pais.

O bispo,


bocejante,e eclesiástica e teológicamente acostumado a observar e reflectir sobre as consequências do pecado, disse que com tanto fado, música e multiplicação de ceias, pouco ou nada se dormiria.



Com ou sem nascimento.

Por quem teve alguma curiosidade de me ir ver, fui chamada de batata albina, obeso anjo barroco, hermosita, olhuda, beautiful blonde baby, careca, grandalhona, sweetest, pastel de nata inchado,berrona, miúda, gaiata, niña, nova menina, mamona,cara de papa Nestlé.

Minha mãe pôde finalmente dormir

quando os sobreviventes foram para o casamento e depois do meu avô muito estrangeiro ( pouco crédulo em coisa alguma mas respeitador das pátrias tradições e provavelmente desejando assim melhor sublinhar a sua ascendência no meu nascimento) me oferecer uma pedra alentejana em honra da mística e das cerimónias de 21 de Setembro em Stonehenge.


Que eu tenha dado por isso e até hoje, a moeda da cigana e a pedra do avô muito estrangeiro, nunca se deram mal, lá na caixinha, onde, em silêncio, trocam histórias, seguramente muito mais sábias, antigas e futuras que as minhas.



Disso, não haja qualquer sombra de dúvida!

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Segue amanhado à pressa, para variar e ainda com uma certa nostalgia na ponta dos dedos, feita de descoberta vestida de viagem nos olhos e mais de outros silêncios, sorrisos e histórias de quem, vindo de férias, ainda se senta

À sombra das palavras magras



Não nos dêem euforias estivais, aglomerados de gente como raspas nas placas de aparite juntas com cola da marca Gregário,
festas de risos estridentes, ritmos em decibéis Sonotone suados em óleo de coco,
nem corpos secos e encolhidos à pressa em ginásios,
nem bebedeiras obrigatórias, mais por moda que por gosto ou necessidade,
nem pandemias de altifalantes em débito de música ligeira em bares, restaurantes e paradouros.

Para nós, a praia, deve ser um prazer lento, saboreado na calma.

Com vastidão para ainda se sentirem os fantasmas de quem espera quem partiu, de quem parte para não voltar, de quem volta com vontade de partir, de quem, ficando, parte sempre.
Cada grão de areia deve ser um átomo de lembrança colado na pele do nosso romantismo.

E, já agora, sempre vos digo, que apesar de achar que o tal romantismo residual, de preferência na modalidade britânica ou germânica, é mais sentimento próprio de invernia, nesta rica e variada geografia lusa e em pleno Agosto, nos amanheceres e entardeceres, é capaz de fazer descer do céu um manto vaporizado de fazer inveja ao mais revolto espírito oitocentista.

É hora de sermos envolvidos por um casaco de lã, de os pés se esconderem em chinelos quentes. Também se gozam férias da estação corrente. A geografia dá-nos outra latitude.


Mas, continuando, todos os dias, naquela praia e no vale desse manto, sai um idoso arquitecto inglês, que, quando conheci, confundi erradamente com D. Sebastião.

Talvez ao contrário do imberbe monarca, há qualquer coisa nele que transmite uma felicidade digna. Estado raro, raríssimo, na história de qualquer humano, como é por quase todos sentido e sabido.

Quantas vezes tanto a felicidade como a solidão se alimentam de concessões forçadas.



Visita-nos uma actriz espanhola. Incógnita e despida de todas as armaduras da guerreira incisiva, mediática e desbocada que costuma ser.
Desta vez, penso, vou, emagrecer as palavras dos desacordos que com ela costumo ter.

O mar argumenta mais alto.

Ela exclama um coño, que belleza más pura y selvage!
E fica em silêncio como quem se abriga em si própria.

(Tivessem os pensamentos dela, nossos e dos outros forma e andariam alados e soltos muito para além do horizonte. É de facto voo que a paisagem pouco populosa permite.)

Também não fez muito barulho El Pepe, que lhe é espécie de filho recente, quando apareceu com o meu Royal Highness na boca.

Ay, como está la intelectualidad esta que anda el Thomas Mann el la boca de los perritos…! Le encanta Ibsen. Se ha tragado en un santiámen mitad de la Casa de las Muñecas!


Bom assimilador de técnicas de arte dramática, El Pepe, mata liminarmente qualquer palavra mais gorda de responso. Thomas Mann não chegou a ser por ele engolido. Deixou o acto devorador para mim. Com capa ligeiramente ponteada a dentes caninos.
Mas assim se interrompeu a dieta de palavreado. A bulimia de desaforo continuou à vista de um nórdico escarlate sempre em plena exibição dos músculos varonis.
Em consequência da visão, seguiu-se um pequeno momento do mais puro Almodôvar.




Cena diabólica que, parece-me, fez, por decência, o mar baixar a maré.

Pudibundo e sensato, El Pepe adormeceu.

À chegada de uma outra visita em forma de italiano hidrato de carbono, transformou-se a casa numa espécie de ONU esquizofrénica.




Voz mais ajuizada propõe que se jante em casa, já que ir dar espectáculo de disparate vadio para o restaurante, muito frequentado por espanhóis estranhamente discretos, ingleses absurdamente sorridentes e alemães incrivelmente descontraídos, seria um atentado à paz e ao silêncio mundiais.

É minha função acender o carvão.

Não há nada de mais produtivo que discutir movimentos artisticos enquanto se descascam batatas e se cortam os talos às hortaliças.

Ao fim de uma hora a natureza morta dá lugar à bem viva.



A senhora do quiosque dos jornais, na vila, que, pelas exclamações, se percebe ser devota de Deus, do Pai do Céu, do Filho, do Espírito Santo e da Bem-Aventurada Virgem Mãe de Todos, indica que o sr. X é um bom jardineiro. E barato. De mãos postas, olhos no ensolarado firmamento:

- Graças a Deus Nosso Senhor que ainda há pessoas decentes neste mundo!


O ponto de exclamação tem a forma de um profundo suspiro.

Numa prateleira do seu estabelecimento, o Galo de Barcelos desceu a sul para acompanhar várias Nossas Senhoras de Fátima de tom esverdeado, ali mesmo ao lado das Pastilhas elásticas Gorila , tudo encimado pelo cartaz a anunciar as Festas da Nossa Senhora da Guia: procissão primeiro, Vanessa Soraya depois. Grandes êxitos: "estou louca por você", "não faz mal na minha vida".

Bom, mas abre-nos a porta o sr. X. Um homem ainda relativamente novo, de poucas palavras, olhar vago e algo ausente mas a irradiar uma bonomia quase enternecedora. Viemos a saber tratar-se de um ex professor de português, agora com profissão exilada nos jardins. Trocou, diz, a guerra pela paz. Prefere a boa educação da terra, o disciplinado crescimento das plantas. A sabedoria ancestral dos ciclos.

(Igual que en España! Mis alunmos son mayores y me llegan a confundir Isabel la Católica con Maria Antonieta! Y danza Moderna con Contemporanea.Fíjate!)

Fascinados pelas suas Van Goghianas botas, vamos à feira de Santana.


A vendedora delas tem um elevado sentido de justiça económica: percebemos que custam 50 euros para americanos, 30 para espanhóis e 20 para portugueses. Assegura que iguaizinhas, nas sapatarias da moda em Lisboa, custam 200. Duram uma vida. Cosidas à mão.

Só no fim me pergunta qual o meu número: 37 mais ou menos.
- Amori, só tenho despois do 40, mas, Cara Linda venha cá, põe-lhe umas palmilhas e anda com os pés à vontadi, minha Santa. Ai a americana é sua amiga? Disse-lhe que eram 50 éros, mas enganê-me. Até lhe faço 15. Mais o sebo.

(Estamos nosotros de Marruecos?)

Ao som daquele mar, que dia e noite parece um animal desesperado e voraz, vêem-se noite fora, chá e whisky dentro, filmes mudos em resma de DVDs


com cenários e expressões quase reconhecíveis em recantos daquelas paragens.



Com memória a impulsionar o corpo, vamos mimando movimentos, gestos e truques antigos. Abrimos os baús nos sotãos dos músculos.

Em silêncio. Com sorrisos respeitosos, que o corpo começa a ser já uma matéria adormecida, embora ainda não patética, convenhamos.

O tempo é uma entidade hiper-realista e dramática.

O fecho do porta bagagens tem o baque de sentença. Estrada, auto-estrada, fronteira. Passadiço para nação oposta.

Madrid vai-se recheando de gente regressada, de histórias . Animal que se sente ferido mas, diz a História, há-de renascer sempre do seu próprio sangue.


-Manaña, reunión a las dos. Lástima!


Limpo e penduro a tábua que o mar deixou na areia. Como um inacreditável presente. Soa a tesouro ou milagre. Quem diria à árvore que iria ter uma fatia de si gravada, que viajaria oceano fora, que seria enxotada para uma costa de areia fina e clara, entraria num carro para repousar numa parede branca?


Não, acho que não me esqueço de nada. Tenho as chaves, o telemóvel do serviço…

E, trago uma mala a viajar, romanticamente, pelas veias.


Onde a sombra guarda os segredos.