quinta-feira, 25 de junho de 2009


Pina Bausch
27- 7- 1940
30-6-2009
Ainda era cedo, tão cedo, para nos ensinares a dançar o teu último silêncio. Agora, resta-nos imaginar o teu novo improviso na arquitectura teatral que nos deixas na memória.
Soltamos o cabelo, metemos as mãos nos bolsos, arrastamos os pés, baixamos a cabeça, desenhamos circulos imaginários no palco, desatamos um saco de palavras onde, lá no fundo, brilha uma das tuas preferidas: melancolia.
No fim talvez, mas só talvez, chegamo-nos à boca de cena, sorrimos e gargalhamos palavras que voam como pedras ariscas:
Auf Wiedersen, Frau Philippine...
e fica-nos nas mãos, sempre indeciso, quase sempre confiante, o fumo do teu cigarro.
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Digníssimas Paciências,


já que olharam para mim,aqui, abaixo do suposto título, sempre vos digo que gosto de me sentar aqui! Ao fim da tarde.

Gosto deste ritual que dá alguma ordem ao meu tempo. Alguma obrigação na contagem das horas.
Pois gosto!

Meto-me no metro, saio, entro, saúdo com vénia a senõrita Maria de los Angeles, (assim consta da modernice no cartão que trás preso na nascença do farto seio esquerdo) que me parece uma rosa nascida na imensidão do oceano ou, desproporcionada como um milagre, das areias do deserto.

Peço-lhe que me sirva o primeiro copo de vinho branco.

Ela, por despudor de mulher cansada da virgindade que lhe vejo nos olhos, chamar-me-á duque e guapo o que na língua de Vossas Paciências soará a bonito.

Virar-se-á para a restante clientela e abrirá as portas à desventura, com sucessivas gargalhadas pouco dignas para a espécie feminina que Deus quis discreta, pacata e comedida nos modos.


Perdoem-me este desperdício moral de lhe contemplar a redonda e exuberante figura, mas faço-o como espectador de um remoto filme italiano em que Sofia Loren me povoava de assalto as fantasias, como uma pantera em ágil salto na selva ardente dos meus desejos.



Não sei que idade terá a supra citada señorita Maria de los Angeles, mas da semente que o tempo lhe lançou no canto exterior dos olhos, já se espraiam sulcos como um delta.

Além de olhar para a señorita, gosto de me sentar de forma a ver o edifício em frente.



Dele sairão, não tardará nada, jovens em catadupa, como se fossem vida a sair do forno do futuro.

Todos magros, elegantes, garbosos. Parecem andar em bicos de pés sobre a superfície do mundo.

As mulheres dali saídas não têm a anca roliça predisposta à maternidade como a Maria de los Angeles, nem o busto levantado em direcção à generosidade da amamentação. Não terão o garbo flamejante e virtuoso das nossas sevilhanas, manchegas, castelhanas, leonesas, valencianas:


Não, não têm!

Alguns entrarão aqui, sem sequer olharem para mim.

A juventude ainda não ganhou o cuidado de medir com quem se cruza.
Cumpro um meu outro ritual: o de me perguntar se existo para o qual conto em voz alta de um até dez.

Que me perdoem tal atitude mas nunca se viu nem ouviu nenhum defunto, ou em trânsito pelo limbo da passagem, necessitar de contagem tão básica.

Como diria o Generalíssimo Franco, qualquer espanhol de raça, quando morto, entra directamente no clube da sabedoria de Deus. O que deve pressupor, perdoem-me Vossas Paciências, a elevação ao processo demonstrativo de teoremas.

Estou portanto vivo, já que Maria de los Angeles, confirma que não me enganei na contagem e asseguro a Vossas Paciências, que não me recordo nem do teorema de Pitágoras. De todo!

Tenho ainda sabedoria terrena!
Bom,mas às vezes sai de lá, do edifício, um grupo de mais velhos.

Atravessam, entram e ficam ao balcão.

Não vou falar da que tem tal amplitude de testa, que se lhe adivinha a extenção da séria inteligência.
Nem do homem que exilou o cabelo da cabeça nas faces.

Nem da outra que tem o dom de se multiplicar, já que, não raro, enquanto bebe o seu copo de horchata, aqui, está ao mesmo tempo na televisão gigante pendurada na parede e no cartaz a preto e branco da montra da farmácia da Drª Dolores, a anunciar a poção alquímica que lhe dará, eternamente, a cútis lisa de púbere.


Dirá mais respeito a Vossas Paciências, a que só, de vez em quando, aparece na companhia deles.

Afigura-se-me ela cara de almôndega ampliada e mal guisada, na qual se implantam, em geometria regular e frontal, duas ervilhas.

Ouço-lhes as conversas, que nós os anciãos ainda vivos, para desgosto dos governos que nos pagam a pensão a subtrair ao Orçamento Geral do Reino,

temos dotes de, quando o tímpano se nos vira fibroso, ouvir com os olhos e ver com todos os outros sentidos.

Dizem que pareço uma figura de Toulouse-Lautrec.

Que sou encarnação de Sua Excelência D. Quixote, coisa impossível que a estadia no além, que conste na reportagem dos espíritas, não encolhe ninguém e como podem ver sou de baixa estatura.

Que sou figura romanesca já que de verão e de inverno uso, por cima deste pijama às riscas, este meu sobretudo e este meu chapéu bem como as alpergatas a que a globalização, na descoberta do exotismo tropical, chama agora de havaianas.

Alguém pergunta à almôndega como se diz tío, que é assim que me chamam, em português.

Ela responde que neste contexto se diz gajo enquanto lambe os lábios dos resquícios de limonada em que é obviamente viciada.

Levanto-me e, na minha voz funda de baixo, repito: Gaíxo.
A almôndega vira as ervilhas para mim e sorri: ga jo, repete.
Senorita Maria de los Angeles, em surdina e inclinando o busto generoso em direcção à almondega ervilhada, a despropósito informa-a que continuo inofensivo, que sou sempre bem educado e cordial.


E preocupada com este seu velho servidor , diz-lhe que não me exija esforços que se me pode dar avalanche do dom da palavra.

Já dizia o Caudilho, paz à sua alma, que quando as mulheres cochicham entre si, anda o Diabo à solta.


A almôndega diz que coitado, sabe-se lá qual terá sido a vida, como estaremos na idade dele.


Como patriótico e em prol do desenvolvimento do turismo e sendo ela estrangeira, por traição dos Braganças, reprimo o desejo de lhe dizer que, quando atingir a minha provecta idade, se parecerá, se a imaginação me não engana, com um pastel de carne envolto em massa folhada.

Em vez disso, levanto-me, faço uma vénia e cumprimento-a : Gaíxo, enquanto penso que mais valia que aprendesse a fazer as bainha das calças, é aquilo figura que se apresente? ou, já agora, fosse escrever patacoadas naquilo a que a santa língua castelhana chama de ordenadora, filha humilde da computacíon.

Diz a da testa alta, empatica e superlativamente, que tenho cara de inteligentíssimo;




a que se multiplica acha-me distinto e bonito e o do cabelo exilado solta uma interjeição que os modos jesuítas em que fui educado, me impede, por vergonha e respeito, de repetir a Vossas Augustas Paciências.

Pagam e vão andando para a porta.

A almôndega diz aos meus insignes conterrãneos que lhe fiz lembrar uma das canções portuguesas que mais gosta, se a memória não me falha, uma tal de Loucos de Lisboa, capital de uma província de Espanha, cantada por uns rapazes internados na Ala dos Namorados.

Pede que lhe lembrem para trazer quando voltar á capital do reino. Ou então a Balada para um Loco de Piazolla, um dos súbditos do imenso império espanhol.

A almôndega vira-se para trás e fixa em mim as ervilhas, que sinto como petardos em suposta guerra de independência e levanta o braço em irreverente saudação:

Gaíxo, Lisboa, olé, respondo-lhe.

Quando sorri, a almôndega entra em metamorfose para empada de vitela. Valha-lhe isso.

Vossas Braganças Paciências, vão-me desculpar, mas acendeu-se o néon dos refrigerantes La Casera, o que significa que tenho que pagar, despedir-me da rosa encantada que é Maria de los Angeles e fazer-me ao metro.

Encantado por este bocadinho na Vossa companhia! Foi um prazer!




Uno, dos, tres, cuatro, cinco, seis, siete, ocho, nueve, diez!

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Segue este por ter estado a ouvir conversa estapafúrdia e baralhada de quem vive de olhos fechados às artes, culturas e sentimentos inerentes, ficando assim sentadinho em cima de mitos que tiram, NESTE TEMPO, beleza aberta ao fruir da vida.

Não sei como a conversa começou mas estavam duas damas e um cavalheiro indignadíssimos com a descoberta que o filho de não sei quem, adolescente ainda no início, andava com intenções de ser bailarino e, ainda mais grave, se punha a inventar movimentos a pensar num colega da escola, mais velho, com quem nem sequer tinha trato. O cavalheiro alvitrou râguebi antes que a larva se
tornasse
“borboleta”, uma dama confirmou com um redondo “o mais possível”, a outra assou-se e eu reprimi a veneta de lhes enfeitar a cara, em gesto repentino, com a torrada de pão de Mafra.

Já nem sequer vou falar de “borboletas”, que quem usa tal nome para classificar bailarinos do sexo masculino, dancem dança ou não, e desculpem-me a provável altivez, não merece prosa.

Passo então à

Teoria geral mínima dos sussurros imaginados



Para os gregos só haviam nove musas, todas irmãs entre si, filhas dos amores entre Zeus e Mnemosine. Só sei o nome de uma, e a custo, que Terpsicore, a que ficou com o pelouro da dança, não é nome que me seja fácil.

Quando foi inventada, mal sabia ela que iria ter muita importância no principio do séc. XX. Mas isso pertence a outra história.

Não sei quais os métodos que usavam para proteger e inspirar os artistas.




Só sei que as personagens paralelas inglesas, são fadas disfarçadas de mulheres (Elizabeth I estendeu tal disfarce também aos homens), que entram nos sonhos dos criadores enquanto estes estão a dormir e que, uma vez acordados, lhes dizem ou mostram o que por aquele mundo escondido viram.

Têm o dom de quebrar as faltas de imaginação chamadas bloqueios.




Só quem consegue “ouvir” a sua fada, perceber-lhe a linguagem, tem dotes para ser artista.

Para algumas tribos índias da América do Norte, é Musa, a rapariga ou o rapaz, que, pela extrema ligação à Mãe Terra, tem sensibilidade para revelar aos simples distraídos, os pequeninos, ínfimos pormenores em que se deve reparar, para tornar a vida mais feliz. Fazem-no através de gestos e expressões aparentados com dança.

(Como curiosidade, sempre vos digo que são criaturas nascidas surdas-mudas.)

À sua maneira, esteticamente diferente da nossa, ligam a beleza e a arte à felicidade.

Por experiência própria e alheia, acredito mais nestes dois últimos grupos do que nas nove irmãs gregas. Sem ofensa.

Na correnteza da opinião comum ocidental, só existem Musas e nunca Musos. A arte, durante séculos e para algumas damas e cavalheiros, ainda hoje, é exclusiva do poder intelectual masculino. Assim como se liga Musa ao interesse sexual.

Átomos de Freud se volatilizaram para o passado e para o futuro na visão da coisa.


Na realidade, exceptuando casos em que o poder de alimento espiritual se aliou à paixão física, como em Andrea del Sarto ( que ao longo de toda a obra não utilizou outra musa que não fosse a sua mulher Lucrezia)



ou Rubens, Bach, Mahler,Liszt, mais influência tiveram, e têm, as moléculas de Platão.
Miguel Ângelo, Caravaggio, (para além da moda renascentista de qualquer ser, artista ou não, suspirar, em sociedade pública, pela sua musa ou muso), Oscar Wilde, todos eles homossexuais, tiveram em algumas mulheres grandes Musas. Como as têm tido grandes estilistas.

E, já agora, Henry James, Edith Warthon ou Kate Chopin, estes todos heterossexuais, contemplaram, como motor de obra, pessoas do mesmo sexo.

Talvez o caso mais flagrante seja o de Martha Graham: grande devoradora sexual do sexo oposto, confessou a sua paixão por algumas bailarinas inspiradoras. Coreografou a partir delas e para elas.

Maurice Bejart, foi coleccionando musa e musos, na minha opinião, sempre com bom gosto.



Foram assexuadas as inspirações e motes lançados por Lizzie Siddal (a tal rainha do desmaio conveniente e delambido, dos pré rafaelitas),


por Alma Mahler, por Marlene Dietrich, por Greta Garbo e, imagine-se,até por Sharon Stone, a do instincto temperado com sangue frio. São arquétipos de imagem e personalidade idealizada.


Deixando os exemplos, que são tantos e intemporais, volto à experiência própria e alheia próxima em diversas áreas e de forma espremida e resumida .

As Musas, ou Musos, nascem do nada. Tal como acontece nas outras paixões, não se procuram: encontram-se.

Não têm a carga afectiva do compromisso amoroso, embora muitas vezes, e por sorte, se juntem os dois destinos como já disse.

Aí, criar inspirado e para, é um acto de amor inteiro.

Mas em geral, e na realidade, são os criadores que lhes atribuem os dotes, que lhes inventam aquilo que precisam. São uma espécie de ferramentas de estimulo. Têm a riqueza da síntese.



Olham-se os gestos, o olhar, a forma de dizer palavras, o conteúdo do que dizem, a forma como se movem na rua, no restaurante…por aí fora e tornam-se a materialização de uma fonte de ideias.

Algumas, imaginam-se mais do que realmente são porque nunca se chega à fala, ou entendimento empático, com elas. Funcionam como modelos absolutamente abstractos. Muitas e muitos são-o sem nunca suspeitarem que o foram.



Outras são pontas de fios que se vão desenrolando. Existe o fascínio pela grandeza que se vai descobrindo. Preenchem o que faltava escrever, desenhar, ouvir, dançar.

Nada impede que coexistam num harém sem regras nem hierarquias. Se algumas são descartáveis, outras acompanham as obras até ao fim. Ficam na memória como uma doce lembrança. Com a ternura de um agradecimento.




Muitas vezes é secreto o palco onde se movem. Mexer-lhes,analisar, pode tirar-lhes o encanto e a magia.



Podem haver acordos tácitos onde nunca se pergunta, por maior que seja a confiança, o que vês nele ou nela. É coisa do foro intimo das obras. Pequenos tesouros encantados cheios de segredos que as fadas nos contam ao ouvido.



Mas enfim, não valia a pena perder palavras a explicar que, se calhar, também as borboletas escolhem um canto da paisagem onde vão roubar a cor.


E a torrada estava óptima.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Da contemporaneidade produtiva

das Folhas

hermafroditas



Não, não é nada. Levanto-me já!

Não Minha Senhora, não é preciso chamar o 112 nem ligar para nenhuma linha de apoio à vítima. Não se incomode. Muito obrigada.
É que, sabe, não fui habituada a papéis, a dizer faz todo o sentido com ar grave e a toda a hora, nem a escrever competências, valências o que para mim, que sou disléxica, é um drama.

Ai Minha Senhora, sei lá se se escreve com ^ ou com ~ ou se com coisa nenhuma (sou lá eu algum dicionário espremido). E os critérios de normalidade, critérios de satisfação e critérios de superação?

A vida muito arrumadinha em grades exelianas, num papel branco, timbrado e com selo que aqui, veja lá, se parte sempre do princípio que toda a gente engana antes de já estar farta de ser enganada.



Mas, dizia eu que, ainda não haverá muito tempo, o meu Mestre, que é assim que eu chamava ao chefe por já ter o dom de se rir de tudo,

mais uns quantos, cá nos ajeitávamos, cada um a fazer o que tinha de fazer, encantados da vida, empurra hora daqui, encolhe-a dali, sem mendigar feriados e pontes como agora fazemos.

Mas deu-se, minha senhora, um estranho fenómeno nunca visto nem na Mancha espanhola nem no Entroncamento português: sentimos uma ligeira pressão nas portas que se propagava em ondas ao nosso cérebro, perturbando-lhe a paz do trabalho.
Vou-lhe explicar:

verificámos corresponder tal pressão, a resmas de papeis sedentos de escrita com palavras e expressões que nós não conhecíamos nem nunca tínhamos ouvido falar.

Instalaram-se eles, os papéis, aqui no sítio onde estou. Acredite ou não, começaram a reproduzir-se entre si e em regime de hermafroditismo como só conhecia nos caracóis.

Minha senhora, imagine a avalanche branca, dirigida por umas quantas canetas voadoras e umas quantas teclas esquizofrénicas mail-listicas a que acresce um comportamento maníaco compulsivo, ao som de uma voz de comando correspondente a um deus que eu nunca vi, nem me viu a mim, a menos que seja omnipresente e omnisciente como aquele mais antigo de que sempre ouvimos falar e que acreditando nele, ou não, imaginamos.


Viu os Pássaros de Alfred Hitchcock, viu? Tal e qual, mas em folhas.

Minha Senhora, antes que os papeis me travassem os movimentos das pernas e dos braços e me invadissem a cavidade oral, porque não sei se já lhe disse que têm micro ventosas com super cola três, corri ao Mestre que, quanto mais velho fica mais gargalhadas dá e é conhecido por já ter privado com muitos deuses e contei-lhe da invasão.

Estava calmo apesar de ter centenas de folhas a choverem do tecto.

Ele cruzou as mãos atrás, lá para as bandas da nuca e disse que já não tinha idade para se satisfazer, nem superar, nem para suspirar por feriados nacionais ou municipais e que tinha pegado num papel anti corpo chamado reforma e que o tinha mandado para o ar à espera que fosse aterrar na secretária de deus nacional, porque ao contrário dos outros, muitos estrangeiros, este novo deus nem sabe, sequer que ele existe.

Apesar das preces.
Superem-se agora vocês!
Disse o Mestre.


Depois o Mestre falou como um tribuno travestido de filosofo com laivos de apóstolo.

Começou por citar Tomasi de Lampedusa , ou... teria sido Monsieur de La Palice?
É preciso mudar para que tudo fique na mesma.

Porque é sempre mais superado o que mostra ser do que aquele que é.



Aconselhou a evidência: vale mais correr, limpar a testa e exibir suspiros dramáticos e nada fazer que muito trabalhar com afinco e discrição.

E mais disse o Sábio, Minha Senhora:

que palavras simples não chegam aos céus. Com qualquer gestão de competências na micro estrutura organizacional tendo como objectivo a maior rentabilidade inter departamental numa contextualização macro económica, qualquer janela se abre para o universo destes novos deuses.

Porque o Mestre disse, ainda, que é preciso escrever bem ainda que ninguém perceba o que está escrito.

Como sempre, quando constata factos, limpou os óculos à fralda da camisa de riscas ou quadrados. Sem gravata. Nem botões de punho.

Quando voltei aqui, os filhos dos papeis eram agora pais de outros mais novos e destes mais novos já tinham nascido outros mais novos ainda, parecendo-me estes já, por sua vez, completamente grávidos.



E saiba que, se anteriormente, ao pedido de esmola de dias entre os feriados, bastava a atenção única do Mestre, expressa em rabisco rápido debaixo de um simples autorizado, sem inconveniente de serviço, são agora precisas as benevolências de sete intermediários do tal deus que nunca ninguém viu.

Ai Minha Senhora, foi aí que tombei no chão e assim me encontrou:

imagine que um desses papeis, bailando gozão à minha frente, porque se na minha atabalhoada letra manuscrita se lia distintamente 3 dias de ...érias, não se deu por entendida a letra inicial, e portanto não podia o emérito intermediário passar ao seguinte o que não estava claro. Sob pena de também ele não satisfazer ou superar.

Está certo, Minha Senhora, que sou dada ao disparate, ao absurdo,


mas juro, por qualquer deus antigo, exista ele ou não, que nunca me passou pela cabeça, pedir três dias de Lérias entre feriados, por exemplo. O F inicial, sempre me esteve no espírito. É, hoje em dia, letra recorrente no meu pensamento.

Pronto Minha Senhora, olhando para estes meus objectivos pessoais inseridos na produtividade da estrutura de rentabilização do oxigénio, ainda tenho a margem de três suspiros fundos como limite máximo de libertação de dióxido de carbono.

Vai-me custar o nível de superação, de excelência, já que ainda ontem os meus pulmões desordeiros e individualistas, se lembraram de chegar às quatro emissões profundas e dez superficiais.

E, o que é mais grave, é que me esqueci de as anotar na folha de serviço inventada por deus e onde se distinguem os conteúdos funcionais entre o acto de suspirar e o acto de respirar fundo. Como é que apresento agora a estatística pormenorizada dos meus actos respiratórios?

Um funcionário excelente não respira. Um bom respira uma vez por dia e nunca durante as horas extraórdinárias. Um suficiente não contém três ais. Um mau hiperventila porque, se calhar, até fuma.

E, como também vou ter que avaliar a formiga que está abaixo de mim na hierarquia, ando num dilema angustiante: em que categoria entrará o bocejo?

Deus considerar-me-á apenas num nível satisfatório, mas enfim… ninguém é perfeito…e ainda não tenho idade nem sabedoria para me rir de tudo como o Mestre mas também não sou assim tão nova que sorria a um qualquer deus avulso sem ter prova da sua divindade.


Fico à espera que me entre porta dentro uma outra folha de papel, desta vez benigna, de F já considerado entendível, que me permita, para a semana, rolar estrada fora e estrada dentro, imaginando que vou sentada numa mota de cowboy, livre, no saboreio do vento



enquanto, agora, vou ouvindo música que faz todo o sentido nestas árduas circunstâncias invasivas.

Boa tarde, Minha Senhora, e muito obrigada pela sua gentileza…

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E, já agora, deixo a nossa triste figura, quando às 14h e 52m, soubemos, embora não oficialmente por falta de selo branco, que nos eram concedidos, os tais três dias de férias.