quinta-feira, 23 de abril de 2009

Por ter ouvido, hoje e quase todos os dias, que não sou, felizmente, surda, conversa complicada, novelesca, como que embrulhada em papel de jornal e suspirada entre duas senhoras com maridos corriqueiros na tradição, mas a sonhar com cavalheiros postiços de telenovelas, segue a propósito

Guinness dos amores imaginados



Estava eu refastelada no sofá a ver, sem atenção alguma, a rotina noticiosa e enfadonha do Tele Diário, quando ouvi que Corín Tellado se tinha finado, aos oitenta e alguns anos.
Espantei-me e espevitei da letargia sobretudo porque pensava que a senhora, de tão residual e dinossáurica me soar, já tinha falecido, eventualmente, várias vezes.



Nunca, e mesmo nunca, nem na naturalmente escondida adolescência, li nada que tivesse escrito porque nunca me seduziram as histórias de amor vocacionadas para a utilidade do lençol e renda do enxoval, olhos de “carneiro mal morto”, beijos com pôr do sol ou lua cheia à beira mar como cenário paradisíaco. Sei lá se por mau feitio ou exigência de criatividade.




E, já agora, ao folhear fotonovelas, logo os meus olhos rejeitavam os cortes de cabelo arrumados e rígidos de laca e as poses estereotipadas em categorias como a patente ansiedade, desgosto, expectativa e paixão assolapada sem esquecer as cabeças juntas a ilustrar a palavra FIM.

Parece-me que fiz mal, já que Vargas Llosa, tão recorrentemente chamado a emitir opinião, rivalizando, lá e nos tempos que correm, com Saramago no patriarcado do saber, em assuntos que vão desde o preço da batata para assar ao índice Dow Jones, lá apareceu a garantir tratar-se de uma grande senhora das letras espanholas.

Grande em retratar antropologias sociais do amor




e enorme em produção, chegando mesmo a entrar, e sem esforço de feijoada em inauguração da Ponte Vasco da Gama, para o digno garante de proezas que é o Guiness Book.
Vem logo a seguir ao Cervantes e Lope de Vega e só porque estes são, ou eram, obrigatórios, nas escolas.

Não estando interessada nas diatribes do desporto rei, em zapping, aparece-me a dita escritora, ainda em estado vivo, em última entrevista.

Não tivesse eu ouvido, de voz clara e sonora, que nunca se apaixonou, nem amou verdadeiramente, nem sentiu necessidade de tais estados na sua longa vida e teria zappado outra vez. Mas enfim, coscuvilhice é coscuvilhice. Raridade é raridade.

“Não tem problema nenhum escrever sobre o que não se conhece”, coño guapa, não inventou o Júlio Verne tanta aventura sem sair de casa?

Ao menos ela, nem que fosse na padaria e nas revistas cor de rosa, ia buscar mote para as prosas. E em fecundidade de inspiração, nunca ninguém a convenceu não se tratar de um clone de Balzac.

Fiquei a saber que começou a escrever porque sempre achou que dar produtos de sonho às mulheres pobres e infelizes era uma espécie de terapia para dias de destino invariável.
Localizou as suas intrigas, na alta sociedade.
De vida em subúrbios com homens orgulhosa e masculamente suados, de bofetada embebida em álcool, este já era enredo sem surpresas que as espanholas de norte a sul estavam fartas.



Nada melhor que vidas imaginadas de ricos, bonitos, famosos e distantes para entreter os pobres.



E nada melhor, também abrangendo as ricas reais, que atenção e ternura para lhes mostrar as bestialidades que tinham em casa. Híja mia, se só comeres carne nunca saberás o sabor do peixe. Conhecendo-os, podes fazer o gosto ao paladar. E ver a solidão em que vives, que a companhia não se compra nem se joga na bolsa.


Mais foi dizendo que nunca acreditou no amor eterno, mas sim no respeito e admiração mútuas. E confiança solidificada pela prova dos anos em comum. Sem isso, ay híja, basta ir ao cabeleireiro da esquina, para ver a realidade das famílias felizes.



Perdeu todos estes ingredientes na sua relação conjugal, quando o marido, à semelhança de tantos outros maridos de outras tantas mulheres, anos fora até hoje, inclusive, não aceitou o facto de ela ganhar mais que ele.

Se fosse portuguesa diria que tinha descoberto, na impossibilidade de cumprir o seu sonho de ser repórter de guerra, a árvore das patacas. Sendo asturiana usou expressão que me escuso de botar aqui por tão… enfim, por ultrapassar a comparação gastronómica.

E cedo ficou multimilionária. Logo após o segundo livro e depois ao ritmo de dois livros por semana, cinquenta ou mais páginas por dia, com finais felizes de casório obrigatório e longamente preparado, antes da morte de Franco



e do saltitar desvairado e compulsivo nos três ou quatro anos após o enterro.
Assim, num caso e noutro, mandavam os editores espanhóis a bem do politicamente exigido e correcto.
Para países sem sobressaltos, seguia texto menos acentuadamente bipolar. Coño, outra vez, se antes a censura proibia que as mulheres tomassem a iniciativa de dar beijos, depois era obrigatório follarlos primeiro e beijar depois. Pediam-lhe a inversão do sentido anterior: primeiro sexo, depois afecto.




Foi por estas condicionantes que, acha ela, se tornou mestre na arte da subtileza e da manha, ou seja, na de compor os argumentos como queria que fossem compostos, escapando às malhas das diversas imposições.

Coisa que dado o seu temperamento assumidamente frio e calculista não lhe custou nada, apesar de ter o benemérito nome de baptismo Socorro, que tem diminutivo de Socorrín podendo ainda ser abreviado para Colín.
Garante que foi a primeira escritora ( talvez em Espanha, digo eu irónica), a pôr as mulheres ao volante, a verter álcool para dentro do seu próprio copo e a acender o seu próprio cigarro.


Para se distrair da função literária, escreveu baixo pseudónimo de que não me lembro, vários folhetos pornográficos também imbuídos de algum didactismo, para mulheres (e homens) de fraca ou retraída imaginação. Diz que se vendiam, às escondidas, como calamares e que ensinaram às mulheres a palavra proíbida no corpo e no espírito: orgasmo.


Acaba por dizer que as artroses, a gota e a diminuição da função renal lhe impedem a escrita tão produtiva quanto a sua imaginação. Vira-se de frente para a câmara e diz-nos olhos nos olhos, que não é estranho, sendo velha como é.

Ainda de olhos descarados e fixos e à laia de confissão, diz que acha alguma da sua obra francamente enjoativa, mas alguém tinha que a fazer. Que muitas mulheres, ao longo do tempo, e agora por mail, lhe escreveram a agradecer as horas de descoberta e evasão.

Vira-se para a entrevistadora, boceja, pergunta se já chega, diz que está cansada, a jornalista agradece, desaparece a imagem, é substituída por uma espécie de cortina lisa cor de rosa em que surgem letras pretas:

Colín Tellado
Astúrias, 25 de Abril de 1927-11 de Abril de 2009

Levantei-me e fui fazer chá. Por trabalho, tinha, ainda uma meia hora, para reler umas passagens do De Profundis de Oscar Wilde.
Lá, fora todo o mundo,suponho, continuava no seu passo.


Entardecia em Madrid. E acendi a luz.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Podia falar de como as procissões da Páscoa em Madrid se transformaram em manifestações políticas.
Podia contar como pessoas conhecidas da dança e do cinema, expuseram a nu as falsas promessas e as mentiras de propaganda do ministério da cultura.
Podia descrever como uns idosos de um lar de terceira idade perguntaram directamente à ministra da saúde onde está o dinheiro, cêntimo a cêntimo, dos impostos pagos ao longo da vida.
Ou como perguntaram a uma televisiva e colunável rapariga espanhola qual a diferença entre as prostitutas de rua na Casa de Campo, e ela, ao vender os dotes a um conhecido
machote, ultra milionário e infantil futebolista português.
Ou de como, por ocasião da morte de Colin Tellado, vi a última entrevista que deu e, como mais uma vez me espantei com a diferença entre o ser e o parecer

Mas não!
Já que falei, no Alien, numa senhora apelidada de “avisada” , aproveito para, suavemente, me vingar, aqui.


Segue prosa sobre

a águia raquítica especialista na teoria prática da ausência de palavra ou... da palavra a mais.


O meu relacionamento com a Senhora começou mal : ao ver-me recem nascida, comentou que ali estava um bom exemplar de neta “saco de batatas” com cara de tolinha albina, não havendo dúvidas quanto à verdade do parentesco, dado o nascimento com fonte genética no cabelo loiro quase branco, sinal no pé esquerdo e cor dos olhos. Tal e qual como vinte e cinco anos antes lhe tinha nascido filho, agora moreno e pai.

Foi avisando que aos sete anos já eu pesaria cem quilos. Chegada a altura, mudou a avaliação do peso para o de mero esqueleto, embora com cara de bolacha Maria, a caminhar para aula de anatomia. Coisas da natureza.


Um ano atrás, tinha sentenciado a uma das inúmeras filhas, mãe orgulhosa de rebento, que nunca se tinha visto em tal maternidade lisboeta, um bebé com tanto aspecto de rato engelhado de laboratório. Sempre lhe pendeu a comparação para a ciência.

Parecida fisicamente com Geórgia O´Keefe, nasceu cedo no séc. XX. Em Portugal.




Trazia no sangue a matemática dos genes de judia alemã e a altivez de um metro e cinquenta do descamento espanhol. Que lá do alto me perdoe, mas valeram-lhe os genes portugueses para lhe impedir a pulsão para a prática de vários assassínios em série.
Entre filhos, netos, genros e noras, os que já morreram, finaram-se de morte natural. Que fique claro! A prova está em que tanto eu como o Rato Engelhado de Laboratório estamos vivos.

Em criança, por ofício paterno, viveu algum tempo em Berlim.

Quando voltou a Portugal, ia pelos quinze anos, apaixonou-se por rapaz mais velho. Casou com dezasseis e iniciou uma vida reprodutiva de tal ordem que teve uma neta mais velha que o seu último filho. Dizem que, aos lanches, a casa parecia uma confederação de grávidas e afins.



Consta que disse não querer ter mais pela simples razão que havia uma óbvia e notória perda de beleza nas crias: se a mais velha era lindíssima, o mais novo parecia um cigano cruzado com atleta de boxe. Aqui para nós, ainda hoje se nota a oportunidade da observação.

Também adoptou gémeas fugidas da 2ª Guerra Mundial. Sobre a que sobreviveu já botei post.

Achava indelicadíssimo estar de neura ou mal arranjada em frente de fosse a quem fosse. Aí, levantava a mão e declarava que "não estou de palavra".

Retirava-se, então, e passava horas a resolver equações matemáticas como quem faz palavras cruzadas ou ia sentar-se, muda ,no jardim na companhia dos seus cães. Onde está? Anunciava-se o estado irredutível: não está de palavra.






Perdia a palavra quando, por exemplo, o marido, irmãos dele e dois filhos, emudeciam para tocar algum instrumento jazzistico. Sugeria que utilizassem um qualquer descampado sem ouvidos nem olhos humanos ou animais nas redondezas. Das poucas coisas em que ela, eu e demais convergíamos. Não pela falta de qualidade mas pela frequência. A ausência de palavra dela, e só dela, felizmente, acabava por surtir efeito.






Odiava diminutivos e linguagem tabitate para as crianças.

Era especialista em alcunhas: quando uma neta beata casou com um sacristão dizia, sem pejo algum a Rosário e o Terço vêm cá jantar.

Mas apesar de ateia convicta, o Rato Engelhado e eu, não escapámos ao castigo institucional quando à vista do casal, entoámos o
Avé
Avé
Avé Mariiiiiiaaaa
em reprodução do hino de Fátima.

Tinha a Senhora dois irmãos que andavam sempre juntos. Um muito alto, o outro muito baixo. Chamava-lhes o Sobe e o Desce.

Isto são só dois parcos exemplos.

Era de disciplina militar.

Vendo que um dia eu declarei oficialmente não gostar de feijão frade, industriou o filho,eu sei que foi ela, para que não me fosse posta outra coisa na frente até o comer. Achava obsceno que com tanta fome no mundo, alguém se desse ao luxo de rejeitar algum alimento.

A tal prova leguminosa resisti, estóica, já que o Rato Engelhado, o tal com quem eu tinha extenuantes sessões de mútua pancadaria, me levava, de contrabando, bolachas, fruta, pão e outros víveres. Também a minha mãe. E a minha outra avó. Não cheguei a emagrecer mais ainda. E não comi o feijão.
Retribuí a atenção quando o petiz foi torturado com arroz de manteiga. Pelas mesmas vias, também manteve o peso.

Achava que para mandar era preciso ter conhecimento de causa. Cedo os filhos foram chamados a desempenhar tarefas. Nunca se saberia o futuro: ou mandantes ou mandados, era bom que soubessem os custos dos variados ofícios..


Em boa verdade, exigia mais das filhas do que dos filhos: as mulheres eram os pilares da familía, logo (raciocínio dedutivo de que era tão adepta) as bases da boa saúde de qualquer sociedade. Dotadas de mais inteligência, cabia às mulheres orientar as fracas cabeças dos homens. Para o bem e para o mal.

Talvez por isso, tenha dito na cara de Salazar, que muitas ditaduras têm origem no poder dado às governantas. Também causou espanto no serão, o seu dito que confundir ideologia de direita (que ela assumia) com fascismo se pagava muito caro.

Ficava sem ser de palavra à vista de um genro simpatizante da PIDE e de outro militante clandestino do Partido Comunista.

Emudeceu e virou-se para a resolução de teoremas durante vários dias, quando, em conversa familiar, o Rato Engelhado e eu comunicámos, de forma natural, não estar nos nossos projectos constituir família. Só quando velhos, lá para os trinta anos (teríamos então catorze, quinze, não tenho a certeza).




Queríamos, sim, estudar e ir livres para o estrangeiro. Não éramos os primeiros. E cada um para seu lado.
Passámos a ser designados pelos Vagabundos Degenerados.

Eu, mais tarde, passei a Belzebu em forma de escocesa militar enlutada quando, já estrangeirada, lhe apareci de cabelo vermelho com um centímetro de comprimento, vestido negro, eye liner e botas estilo tropa. E perfeitamente satisfeita com o "demasiado autónomo" e altivo estado de solteira. Tal como o Rato Engelhado. Sabia-se lá em que mundos, cada um em seu pólo, estes dois insubordinados e delinquentes andavam metidos.



Com tais aspectos, acordou-se-lhe, no ADN, o Muro das Lamentações.

Coisa estranha para quem era fiel ao princípio pombalino de “enterrem-se os mortos, cuidem-se os vivos”. Detestava a passividade dos lamentos. Era conhecida pela rapidez com que tomava decisões em momentos difíceis.

Desprezava, no tempo das guerras e noutros, a caridadezinha hipócrita da consciência tranquila.




Preferia arregaçar as mangas e cozinhar grandes panelões de confortável e nutritiva sopa. Dizia que não lhe caíam os parentes na lama ao sujar as mãos.

Ao longo da vida foi ficando cada vez mais magra e pequena. Talvez por, como ela dizia, engolir os desgostos. Além tinha que os engolir. Alguém tinha que dar o rumo ao barco. Alguém, no meio de sonhadores e doidos, tinha que manter o pragmatismo.



No seu funeral, muita gente lembrou o aspecto duro. O apoio às crianças anónimas. A coragem das noites e dias sem dormir para acompanhar doentes. Os conselhos e auxílios dados em segredo a pessoas aflitas. A mania de, em cada aniversário, dizer que não chegaria ao próximo. O demolidor senso de humor. Negro. Negríssimo. Escuro de breu.

Quando foram à sua casa, foram encontradas fotografias e documentos da evolução de um saco de batatas-esqueleto-insubordinado e de um rato engelhado de laboratório, guardadas numa gaveta fechada à chave.

À beira da morte, tinha confessado, mas não aos próprios, serem os seus netos preferidos. Os mais guerreiros. Os mais briguentos mas os menos sonsos. Confessou as preocupações e sobressaltos: os animais selvagens estão mais sujeitos a perigos que os domésticos.




A mim sempre me fez lembrar uma águia depenada e raquítica.

Ora tome lá, já que dizia que mesmo morta, tomava conta de tudo, que agora sou eu que


Não estou de palavra!

(Sobretudo porque este ainda está mais comprido que os outros.)