Exuberante pincel do caos.

Talvez por andar a competir com os relógios e em imaginação visual rodoviária, ocorre-me que a dança americana, no séc. XX, desenha duas grandes, entre outras, auto-estradas das quais derivam estradas, estradinhas e os chamados caminhos de cabras, todas vias destinadas a povoar o mapa do mundo.
Uma, mais antiga, chama-se Martha Graham, a outra partiu desta e chama-se Merce Cunningham.
Merce começou por ter aulas de piano e dança no ensino secundário com uma senhora simultaneamente professora e performer de vaudeville.
Foi correndo vida e estudos até que Martha Graham o viu e, deslumbrada, o levou para a sua Companhia.

Abreviando, começou a construir coreografias ainda sob o tecto de Martha Graham e por ela influenciado, embora já entrasse em dissidência com a portentosa mestre. Esta punha todos os acentos na transmissão das turbulências da alma e


Dado a observações um tudo nada obsessivas com o corpo, reparou que os bailarinos Clássicos tinham as pernas mais fortes que o tronco, considerado rígido e sem flexibilidade, e os da Dança Moderna, muito entroncados, ostentavam perninhas sem vigor.
Durante toda a vida, desenvolveu exercícios para que se fortalecessem de igual modo as duas metades. Sempre trabalhou para ter à frente torsos flexíveis em cima de pernas potentes. Foi uma das suas particulares peocupações e características.
Agora vem a parte mais interessante.
Chegamos aos anos cinquenta, altura em que fundou a sua própria Companhia. Dizem as más línguas, que com uma forte componente autoritária. Dizia que aceitava a entrada de qualquer bailarino, mas os escolhidos só saíriam quando ele quisesse.

Merce, conjuntamente com outros artistas, John Cage como guru, e baseado no famoso dito de Albert Einstein, que ambos veneravam, de que “não há pontos fixos no espaço”, virou-se para a teoria oriental do caos:
desordem aleatória que move toda a natureza. Sem pensamento. Sem racionalidade. Sem cálculo. Sem sentimento ou emoção.
Merce começou a aplicar em dança o que Jackson Pollock, também fã do caos, fazia nas telas: o dripping, ou seja, aquela coisa de espalhar ao acaso tintas, cores, cinza, cigarros, liquor e o que mais lá pousasse (na realidade uma falácia, porque não era o acaso que lhe guiava a mão, mas pronto).

Ora em termos de dança, chamemos-lhe, sei lá, convencional, as coreografias são movimentos sujeitos a uma ordem de espaço e tempo.
Os bailarinos movem-se e estão sujeitos a esses parâmetros pensados pelos coreógrafos consoante as finalidades e os efeitos desejadas para a obra.
Está-se no ponto A, vai-se para o B, depois pára-se no C e etc.
Quem costuma ver dança, mesmo que raramente, sabe o efeito "dramático" que estas deslocações e paragens têm.
Merce lembrou-se de transformar os bailarinos em trinchas de Pollock.
Nos ensaios, ou antes de se levantar o pano, já com público sentadinho, mandava moedas, papéis e que mais fosse para o chão. Eram as marcações aleatórias de espaço. O poder criativo do acaso. Ultimamente mandava o computador decidir as variáveis.

Para os movimentos adaptou as teorias do ying and yang. Coisa complicadíssima e demasiado técnica. Não vos vou maçar com linhas continuas, quebradas e quejandas. Credo!
Por tudo isto, ficará para a história como o criador da Chance Coreography.
O que interessa é que na natureza, o caos faz com que nada seja igual ao que já foi e que o agora seja completamente diferente do que será.
Daí que Merce transportando tal ideia para a dança e convencido por Cage, rejeitasse os espectáculos iguais (que por acaso em artes de palco nunca são, mas está bem…).
Ora os bailarinos-pincéis, nunca sabiam o que lhes ia calhar na rifa antes de subir ao palco. Tinham que saber, os da companhia dele, “ler” a tal complicação do acaso segundo a caligrafia de Merce.
Para os que não estavam habituados a tais azares, a coisa tornava-se ainda mais esquizofrénica.
Mais ou menos como aterrar uma pessoa num sítio ermo da China e seguir a sinalética chinesa para chegar a Pequim.
E vem daí a falta de expressão facial e o aspecto, perdoem-me, de máquinas de movimento dos seus bailarinos: era necessária tanta, mas tanta concentração, que não restava ruga ou esgar para mais coisissíma nenhuma.
Mas a tal loucura aleatória abriu a estrada para os futuros happenings ou events, tão celebrados e quase artisticamente obrigatórios no posmodernismo.
Nos anos sessenta, Merce embora continuando com o caos, , mais uma vez influenciado por Cage, rendeu-se ao ressuscitar actualizado das teorias Dadaístas, mais conhecida por Pop Art.

O músico começou a introduzir sons do quotidiano nas composições. Merce fez a tentativa de prescindir de bailarinos profissionais e das salas de espectáculos, e pôr pessoas sem formação bailarina a dançar-lhe os tais acasos.
Como é fácil de perceber, dada a dificuldade, é como exigir que uma pessoa com a instrução primária se ponha, de repente, a escrever uma tese de doutoramento sobre o Ulisses do James Joyce.
Não resultou, mas mais uma vez abriu os caminhos para as experiências posmodernas, que ainda hoje se podem ver por aí. Como herança.
Por essa altura, elegeu Rauschenberg, artista plástico sempre fascinado pela dança, como colaborador. Foi época de produção mútua de obras primas.

Mas, ao contrário da mestre Martha Graham, Merce não convidava músicos, pintores, figurinistas, cenógrafos, costureiros, designers, arquitectos, para misturar a dança com as outras artes segundo o conceito de arte total e misturada de Wagner. Achava que se conspurcavam. Perdiam a pureza própria.
Temos assim e portanto, em palco: dança,
uma exposição de varias artes visuais ,
de conceitos de vestimenta,
de experimentações arquitectónicas
e um concerto de música,
não tendo nenhuma delas a ver com as outras.
Não?

Merce e Cage, detestavam o conceito “burguês” de harmonia, do equilíbrio, da estética clássica.
Ora, misturando a apetência pelos valores orientais, a contestação filosófica e política aos tais valores burgueses herdados, nomeadamente a uma certa racionalidade e arrumação de ideias, Merce foi transformado e publicitado como demiurgo do futuro por uma determinada intelectualidade, perdoem-me outra vez, ferida de um certo snobismo, nos anos sessenta/setenta.
Foram-lhe atribuídas ideologias que não teve, feitos que não praticou, esquecidos pormenores incómodos, como o seu respeito pela técnica formativa do Ballet Clássico, sempre presente, até pelo gosto do desafio às forças da gravidade terreste.

Mas não será esta a condenação dos mitos?
O de serem inventados aquém e além do que foram?
Ele lá saberá...
