Guinness dos amores imaginados

Estava eu refastelada no sofá a ver, sem atenção alguma, a rotina noticiosa e enfadonha do Tele Diário, quando ouvi que Corín Tellado se tinha finado, aos oitenta e alguns anos.
Espantei-me e espevitei da letargia sobretudo porque pensava que a senhora, de tão residual e dinossáurica me soar, já tinha falecido, eventualmente, várias vezes.

Nunca, e mesmo nunca, nem na naturalmente escondida adolescência, li nada que tivesse escrito porque nunca me seduziram as histórias de amor vocacionadas para a utilidade do lençol e renda do enxoval, olhos de “carneiro mal morto”, beijos com pôr do sol ou lua cheia à beira mar como cenário paradisíaco. Sei lá se por mau feitio ou exigência de criatividade.

E, já agora, ao folhear fotonovelas, logo os meus olhos rejeitavam os cortes de cabelo arrumados e rígidos de laca e as poses estereotipadas em categorias como a patente ansiedade, desgosto, expectativa e paixão assolapada sem esquecer as cabeças juntas a ilustrar a palavra FIM.
Parece-me que fiz mal, já que Vargas Llosa, tão recorrentemente chamado a emitir opinião, rivalizando, lá e nos tempos que correm, com Saramago no patriarcado do saber, em assuntos que vão desde o preço da batata para assar ao índice Dow Jones, lá apareceu a garantir tratar-se de uma grande senhora das letras espanholas.
Grande em retratar antropologias sociais do amor

e enorme em produção, chegando mesmo a entrar, e sem esforço de feijoada em inauguração da Ponte Vasco da Gama, para o digno garante de proezas que é o Guiness Book.
Vem logo a seguir ao Cervantes e Lope de Vega e só porque estes são, ou eram, obrigatórios, nas escolas.
Não estando interessada nas diatribes do desporto rei, em zapping, aparece-me a dita escritora, ainda em estado vivo, em última entrevista.
Não tivesse eu ouvido, de voz clara e sonora, que nunca se apaixonou, nem amou verdadeiramente, nem sentiu necessidade de tais estados na sua longa vida e teria zappado outra vez. Mas enfim, coscuvilhice é coscuvilhice. Raridade é raridade.
“Não tem problema nenhum escrever sobre o que não se conhece”, coño guapa, não inventou o Júlio Verne tanta aventura sem sair de casa?
Ao menos ela, nem que fosse na padaria e nas revistas cor de rosa, ia buscar mote para as prosas. E em fecundidade de inspiração, nunca ninguém a convenceu não se tratar de um clone de Balzac.
Fiquei a saber que começou a escrever porque sempre achou que dar produtos de sonho às mulheres pobres e infelizes era uma espécie de terapia para dias de destino invariável.
Localizou as suas intrigas, na alta sociedade.
De vida em subúrbios com homens orgulhosa e masculamente suados, de bofetada embebida em álcool, este já era enredo sem surpresas que as espanholas de norte a sul estavam fartas.

Nada melhor que vidas imaginadas de ricos, bonitos, famosos e distantes para entreter os pobres.

E nada melhor, também abrangendo as ricas reais, que atenção e ternura para lhes mostrar as bestialidades que tinham em casa. Híja mia, se só comeres carne nunca saberás o sabor do peixe. Conhecendo-os, podes fazer o gosto ao paladar. E ver a solidão em que vives, que a companhia não se compra nem se joga na bolsa.

Mais foi dizendo que nunca acreditou no amor eterno, mas sim no respeito e admiração mútuas. E confiança solidificada pela prova dos anos em comum. Sem isso, ay híja, basta ir ao cabeleireiro da esquina, para ver a realidade das famílias felizes.

Perdeu todos estes ingredientes na sua relação conjugal, quando o marido, à semelhança de tantos outros maridos de outras tantas mulheres, anos fora até hoje, inclusive, não aceitou o facto de ela ganhar mais que ele.
Se fosse portuguesa diria que tinha descoberto, na impossibilidade de cumprir o seu sonho de ser repórter de guerra, a árvore das patacas. Sendo asturiana usou expressão que me escuso de botar aqui por tão… enfim, por ultrapassar a comparação gastronómica.
E cedo ficou multimilionária. Logo após o segundo livro e depois ao ritmo de dois livros por semana, cinquenta ou mais páginas por dia, com finais felizes de casório obrigatório e longamente preparado, antes da morte de Franco

e do saltitar desvairado e compulsivo nos três ou quatro anos após o enterro.
Assim, num caso e noutro, mandavam os editores espanhóis a bem do politicamente exigido e correcto.
Para países sem sobressaltos, seguia texto menos acentuadamente bipolar. Coño, outra vez, se antes a censura proibia que as mulheres tomassem a iniciativa de dar beijos, depois era obrigatório follarlos primeiro e beijar depois. Pediam-lhe a inversão do sentido anterior: primeiro sexo, depois afecto.

Foi por estas condicionantes que, acha ela, se tornou mestre na arte da subtileza e da manha, ou seja, na de compor os argumentos como queria que fossem compostos, escapando às malhas das diversas imposições.
Coisa que dado o seu temperamento assumidamente frio e calculista não lhe custou nada, apesar de ter o benemérito nome de baptismo Socorro, que tem diminutivo de Socorrín podendo ainda ser abreviado para Colín.
Garante que foi a primeira escritora ( talvez em Espanha, digo eu irónica), a pôr as mulheres ao volante, a verter álcool para dentro do seu próprio copo e a acender o seu próprio cigarro.

Para se distrair da função literária, escreveu baixo pseudónimo de que não me lembro, vários folhetos pornográficos também imbuídos de algum didactismo, para mulheres (e homens) de fraca ou retraída imaginação. Diz que se vendiam, às escondidas, como calamares e que ensinaram às mulheres a palavra proíbida no corpo e no espírito: orgasmo.

Acaba por dizer que as artroses, a gota e a diminuição da função renal lhe impedem a escrita tão produtiva quanto a sua imaginação. Vira-se de frente para a câmara e diz-nos olhos nos olhos, que não é estranho, sendo velha como é.
Ainda de olhos descarados e fixos e à laia de confissão, diz que acha alguma da sua obra francamente enjoativa, mas alguém tinha que a fazer. Que muitas mulheres, ao longo do tempo, e agora por mail, lhe escreveram a agradecer as horas de descoberta e evasão.
Vira-se para a entrevistadora, boceja, pergunta se já chega, diz que está cansada, a jornalista agradece, desaparece a imagem, é substituída por uma espécie de cortina lisa cor de rosa em que surgem letras pretas:
Colín Tellado
Astúrias, 25 de Abril de 1927-11 de Abril de 2009
Levantei-me e fui fazer chá. Por trabalho, tinha, ainda uma meia hora, para reler umas passagens do De Profundis de Oscar Wilde.
Astúrias, 25 de Abril de 1927-11 de Abril de 2009
Levantei-me e fui fazer chá. Por trabalho, tinha, ainda uma meia hora, para reler umas passagens do De Profundis de Oscar Wilde.
Lá, fora todo o mundo,suponho, continuava no seu passo.

Entardecia em Madrid. E acendi a luz.