História de uma memória quase incógnita

Em 27 de Janeiro de 1945, o exército russo abriu as portas do maior campo de concentração de que há memória: Auschwitz, espécie de morada do Demónio, não seja esta entidade criada como símbolo e aviso de tudo quando de mau e pior existe na espécie humana.
Lembro-me de ouvir dizer, dentro de portas familiares que, num primeiro impacto e sentados nos seus diplomáticos gabinetes, ingleses e americanos pensaram que tal espectáculo não passava de propaganda comunista. Foi preciso ver para crer apesar dos sinais pouco descontraídos que iam chegando.

Portugal era visto por quem podia fugir, como uma rampa de lançamento para o respirar profundo da liberdade, palavra aqui com o simples sentido de continuar vivo. A troco de dinheiro e cumplicidades aqui e ali, lá as autoridades da Península Ibérica iam fechando os olhos aos fugitivos. Uma espécie de Casablanca em filme, mais coisa menos coisa.

O rio Guadiana, em Juromenha, sempre baixou o leito para que fugitivos, beneméritos de transportes de comida e medicamentos para as vitimas da Guerra Civil Espanhola e contrabandistas não tivessem água acima da cintura.

Um dia várias famílias, com os seus animais domésticos, o atravessaram. Conseguiram chegar à Ericeira, sitio onde esperavam até partir, noite profunda e sem lua política, para as Américas, sob o comando de velhos do mar, sobretudo ingleses.

Nessa vaga, passando por Lisboa, chegaram duas gémeas de nove anos agarradas a uma cadela. Sem pais nem dono, com os documentos verdadeiros pregados no esconderijo do forro das saias. Órfãs de toda a família. Só se sabia que se tinham salvo por vizinhos de servir de combustível nos fornos nazis.
Vinham doentes de escarlatina, diagnóstico feito por um médico lisboeta, familiar de um casal que viria, em produção própria, a ter catorze filhos. Já era tal a vocação que levaram as meninas para casa.
Dizia a minha avó, que foi o parto mais bonito que teve, que há dores na alma maiores que as do bruto parir físico, ( "parir é dor, criar é amor") como foi desvairado o desgosto quando, ao fim de uns dias, uma metade das gémeas morreu, caindo a outra num mutismo tão ensurdecedor como vencido já estava o sorriso.
E se naquela família já havia o amor pelos animais, a partir daí qualquer cão, por mais rafeiro e tinhoso que fosse, passou a ser digno de ter uma alma tão grande como qualquer cristão ou filho de outro qualquer deus maior.

Contra a vontade dos padres conhecidos, a menina, que foi registada na altura e por precaução, com nomes portugueses, não foi baptizada. E muito, muito lentamente, foi recuperando o dom da fala. Apesar de aprender português, manteve os laivos de som áspero.
O sorriso, esse, ficou sempre incompleto, preso pela tristeza azul transparente nos olhos. E o tique de levantar ligeiramente os ombros e tombar a cabeça face a qualquer pergunta também lhe denunciava a permanente incerteza.
Fez mais leituras que escola. Qualquer formalismo de exame lhe travava escrita, voz e memória do aprendido.

No dia em que cumpriu vinte e um anos foram-lhe dados os documentos originais e as duas saias. Se essa fosse a sua vontade, podia considerar aquela gente um mero empréstimo até à jurídica posse da vontade adulta e autónoma.
Contaram-me, ainda eu não sonhava nascer, que pela primeira vez, que se visse, chorou.
Como prenda escolheu uma viagem a Berlim.
Voltou, catolizou-se numa igreja do Chiado, casou-se numa capela perto de Juromenha, teve quatro filhas morenas de olhos castanhos, e foi recolhendo vários cães nas estradas.
Lembro-me dela loira e calada, ilha numa paisagem de tisnados, alguns barulhentos.
Lembro-me da magreza , da pequenez quase tão pequena como a minha e da forma minuciosa como bebia o chá. Em pequeníssimos e cadenciados goles.
Lembro-me de, por o marido estar na esfera do governo de Marcelo Caetano, ter fugido para o Brasil. Lá se separou, voltando sozinha. As filhas já se tinham adaptado em amores cariocas.
Agora está muito velha. Vive dentro de si a olhar para a paisagem, numa casa alentejana que já tinha, rodeada de livros, objectos aparentemente inúteis, de cinzeiros sempre cheios. Não reconhece ninguém, olha com cara de espanto e indiferença para toda a gente, mesmo quando lhe foi próxima na vida.

A ultima vez que a vi, estava sentada num cadeirão, cigarro nos dedos, a cantarolar uma canção infantil alemã:
(todos os meus patinhos nadam no lago
nadam no lago
cabecinhas na água
rabinhos no ar)

Quer se queira quer não, há cantos longinquos que a amnésia não mata.