quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008




The British






Segue o presente por inspiração da Excelentíssima Senhora Emma Larbos, após ter mencionado o facto de serem os ingleses deslavados, pondo a minha parte espanhola rebolada de riso e satisfação, a minha parte inglesa de olhar altivo e pescoço esticado, oh these natives, e a minha parte portuguesa a cantar: ó malhão, malhão, que vida é a tua? comer e beber, ó trilintintin, passear na rua.

Os conhecimentos do que vou expor, partiram de convívio com um senhor, e respectiva família, que antanho chegou a Portugal e se comoveu com a oferta espontânea, por parte de um nativo que não o conhecia de lado nenhum, de um cesto de maças.

E que, mais tarde se tomou de encantos por senhora, também nativa, morena de olhos negros e pestanudos, amazona dotada de voz de rouxinol da qual foi tomando nativos hábitos quase se esquecendo dos seus incubados na insularidade.


Oh dear, can you imagine such a thing?


Com ela teve casamento e descendência de cuja prole desembocou criatura de sangue assaz confuso chamada Senhora Doña Lady Lizzie, neste nosso mundo teclado assim baptizada por Signora Nnanna.

Serve também o presente para indicar alguns modos de ser de tais gentes referindo-se, principalmente aos formatos da classe média, semi-média, alta e semi-alta, aristocrática com séculos de história , cinquenta anos ou apenas alguns dias. As diferenças são para se respeitarem e cada um deve ter orgulho na sua, não se tolerando presunções nem água benta, exigindo-se que todas se portem com dignidade nas cordiais relações umas com as outras. É imperdoável que a "superior" não cumprimente a "inferior" ou não agradeça um serviço prestado.






Primeiro, e antes que me esqueça, nunca devem os portugueses leitores elogiar seja o que fôr das terras de Espanha, das de so rude Spain. Nem de França. Nem de Itália ou Vaticano. Nem dos nórdicos. Nem Ásia nem África. Terão como presente o apoio incondicional nos jogos de futebol. Não manchem, portanto, a portuguesa fama de serem very kind indeed, the one´s best. Os únicos que se aproveitam na Terra e arredores.

Assim deve-se cumprimentar um inglês sempre com aperto de mão, de preferência frouxo. Aquele enérgico aperto latino, pode-lhes partir os frágeis ossos, tão carentes de cálcio por falta de sol. Beijos, ficarão para o quinquagésimo encontro, quando souberem a vossa idade, ou com algum deles terem casado ou tido juntamento.

Não se espantem se receberem um cartão a convidar para um chá na morada com a menção de horário:


I´m glad to have You at home at 4.27.34 pm till 6.14.54 pm. Your gratefull X.


Não se deve chegar antes da hora, nem atrasado, nem sair depois. Dão como justificação evitar conversas de chacha e embaraços do género "que grande seca mas parece mal ir-me embora". Calha sempre bem uma garrafa de vinho do Porto, mesmo que estagiado em carvalho de Sacavém.

Deve-se também, ao aceitar o convite, referir os pratos de que não se gosta, bem como eventual dieta a que se esteja sujeito.

Os portugueses serão dispensados, mas quem tenha alguma coisa a ver com tais criaturas, deve, must, saber todas as etiquetas à mesa. Há formas de comer diferentes consoante se come no apartamento, jardim, ou mansão. Por ser paradigmático, destaco o frango assado. Dentro de quatro paredes come-se com faca e garfo, no jardim é aceitável que se coma à mão. If you don´t mind, of course. Not at all. Thank you. You´re wellcome. It´s my pleasure. You´re so kind.

E deve-se falar na voz mais baixa possível. Falar alto, nem para os surdos. Se alguém não ouve bem, aconselha-se a ficar calado. Para barulho e berros já basta a falta de educação espanhola.


Se no convite fôr exigido traje semi formal ou formal, aconselha-se, em damas e cavalheiros, uso de chapéu. São um verdadeiro fétiche inglês, sendo todos os designs permitidos, sem nota nem reparo.





No dia a seguir deve-se mandar cartão, ou mail a agradecer e elogiar o interesse da conversa e a excelência do petisco. Devo lembrar que a gastronomia inglesa é parca de tempero e gosto, mas não será proper levar sal ou piri-piri no bolso.

Nunca se deve perguntar se alguém está bem de saúde . As maleitas de cada um são assunto privado . Odeiam conversa de Centro de Saúde. É de bom tom estar a morrer e continuar a falar do tempo, ou da beleza das rosas do jardim, mesmo que não passem de miragens sem esquecer o corte rectilíneo dos arbustos. Eventualmente, pode o quase defunto referir-se ao extraordinário trabalho de carpintaria do caixão bem como ao estado da relva no cemitério.

Nunca se deve falar das origens de família ou vencimentos auferidos e de propriedades, só se fôr encontro de negócios, lá para as bandas do All-Garve. Também nunca dizer ou perguntar acerca do estado civil. Com quem se compartilha o leito, é também assunto dos interessados. E ninguém tem nada a ver com isso.

Todo este tipo de conversas é típico das classes inferiores, sem regra nem dignidade, ou de povos abelhudos como o espanhol. Um verdadeiro inglês vive intra casa, intra clube, intra crãneo.




Ninguém tem desculpa para se portar de forma menos própria, tendo como filosofia , quase sempre, não pisar o território alheio nem tornar as coisas desagradáveis, porque existem no mercado, desde tempos imemoriais inúmeras edições de livros de modos e etiquetas, alguns escritos com senso de humor. Com o britãnico senso de humor: leia hoje, ria amanhã. Ou melhor sorria. Melhor ainda: não ache piada nenhuma.




Pessoa que não leia o jornal todos os dias, não é gente. São uma verdadeira instituiçaõ quer os mornings quer os evenings. Convém estar actualizado para opinar sobre os mais diversos assuntos. Pode-se criticar a Família Real, mas com respeito e tento, não da forma alarve, pouco digna e insultuosa de mães como o fazem os espanhóis. Começar sempre por lauda à falecida Raínha Mãe, Elizabeth, sem nunca mencionar, o seu velho hábito de beber, mantendo-se sóbria e activa, uma garrafa de gin por dia. Afinal de contas a Senhora nunca abandonou o seu povo, nem por alturas dos bombardeamentos de Londres, pelos brutamontes dos alemães.




Também é absolutamente obrigatório respeitar as filas, indianas, desenhadas a régua e esquadro. A desordem e a falta de respeito pelos respectivos lugares de espera são típicos de povos incivilizados como o espanhol.

Regra de ouro é aprender a espirrar para dentro. Qualquer pessoa educada, vira o espirro ao contrário.

O mesmo se aplica ao choro. Um verdadeiro inglês é ensinado desde pequeno a não mostrar emoções, não permitindo a abertura de comportas de barragens na via pública. Não se estranhe por isso, que os príncipes não tenham chorado no funeral da mãe, e que uma outra mãe de filha desaparecida, mantenha cara de pedra.

Como são gente, quer se queira quer não, de vez em quando têm explosões de afecto colectivo, veja-se a reacção ao falecimento da dita princesa, ou a histeria face aos gadelhudos conhecidos com Beatles.


É em Inglaterra que se cometem os crimes mais horrendos, practicados por aparentes pacatas criaturas. Seria falta de imaginação matar com um só golpe de faca como os espanhóis. Dá-se uma, vai-se tomar o chá que já são horas, outra, interrompe-se para jantar e no dia seguinte acaba-se o trabalho depois de comer uma maça: an aple a day keeps the doctor away. Eventualmente, por delicadeza, pode também oferecer-se uma maça ao esfaqueado.Já existe intimidade que o justifique.




E é melhor que o pré-assassinado não grite : não é correcto incomodar a vizinhança.

E que não se estranhem os Harrys Potteres ou os carinhos por Paulas Regos. Os ingleses têm verdadeira devoção por um imaginário construído por bruxas, duendes e outros seres estranhos a este mundo. Muitas histórias tradicionais para crianças, são de fazer arrepiar os cabelos a qualquer toureiro adulto espanhol que se preze. Dão imensas ideias para os posteriores crimes.





Criaram uma forma de arte, irónica e sarcástica, em que toda a liberdade de opinião é possível. Já o era, em germe do que é hoje e em termos populares, no reinado de Her Magesty Queen Elizabeth the First: a pantomima. Tudo se critica, sobretudo os próprios ingleses, que diga-se em abono da verdade, têm um talento especial para rir deles próprios. Sempre com liberdade sagrada






ou não estivesse este senhor a comparar outros tempos com o paternalismo do Estado que hoje em dia está tão na moda em relação à vida privada dos súbditos. Coisa tão inconcebível que pede palhaçada: my house is my castle.

Mas enfim lá continuam como são. Conservadores e audases, pragmáticos e tolerantes entre o respeito pela história e a abertura aos novos ventos, tendo como capital uma das cidades mais cosmopolitas do mundo.





Pela minha parte, if you don´t mind, i wish you from the deep of my heart, a wonderfull weekend, as fine as posible, and thank you for your precious time.


Do you think it will be raining tomorow?

Oh, Good Lord, i hope not!

It´s really very unpleasant, don´t you think, my dear friend?

Oh yes, indeed?

What do tou think of................





Oh, my dear Margareth, dont´t you speak in such a loudly voice, please!?

You´re so right, Elizabeth, that portughese people aren´t they looking at us?

Oh those latins....

By the way, where´s Lizzie?

Late....as always!

Hopeless!

Disgusting!

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Breve história de como o quebranto passa a intermitente Hollywood doméstico.







Penso que as doenças se deviam adequar aos diagnósticos. Já é tempo de contestar as voltas determinadas por um suposto criador que, em dia de também presumido mau-humor e com apetites de microscópio, se lembrou de inventar os vírus, a saber, proteínas embrulhadas em ADN. O criador é dado a minúcias e de vez em quando, deixa a magnitude da obra e vira-se para o quase invisível. Talentos de criador relogoeiro. Sem ofensa.







Vem isto a propósito de me ter contrariado na estabilidade da saúde e em vez do quebranto me ter presentiado com um ataque recidivado de Epstein Barr, se a ortografia não me falha, como não me falharam alguns frascos de gotejante soro, com sonolento nectár lá dentro. Plim. plim, plim. Chamemos-lhe o fastidioso vagar do alimento.


Como não sou psicanalista nem dada a outras excurções ou oráculos do inconsciente, penso que assim que se faz noite nos nossos olhos fechados acorda Hollywood dentro dos nossos contidos pensamentos.





Imagino o Tim Burton a espreguiçar-se, o Tarantino a esfregar os olhos, um certo Hitchcock a tentar levantar-se, não esquecendo alguma megalomania de Cecil B. de Mille ou com sorte, Visconti para suavizar. A lista é longa, passando por Walt Disney. Mas lá começam eles a trabalhar nestas cinzentas arquitecturas, ajudados por argumentistas, sentados em neuronais labirintos. Técnicos de efeitos especiais. Rédea solta a virar o mundo ao contrário, que aqui não há comando nem ordem que se imponha.




Quer o cercado fígado que logo se durma, sonhando no mesmo instante. Em technicolor e double stéreo. Holofotem-se as enzimas, que é tempo de guerra acesa entre milhares de figurantes atrás dos actores principais. Se o criador existir deve estar de olhos esbugalhados a seguir a trama que ele próprio inventou, esquecendo-se do final.


Rápida viagem, aquela que dobrando a Avenida Frei Miguel Contreiras, me coloca directamente na Gran Via, não percebendo que em vez da Praça de Londres ao fundo se apresente o deserto do Novo México povoado de foliãs criaturas de tempos que não conheci, mas que artistas me ajudam a inventar.







Quase ouço, aquela música tão típica dos filmes fantástico-oníricos, cheia de violinos e vozes femininas ao longe. Em coro. Mas parece-me que o maestro está lá atrás, estático a olhar-lhes para as nucas e o público, de batuta em riste, vai dirigindo.


E é num instante que me torno hóspede dos astros. Apesar de puído, o solo de Saturno é macio. Talvez lá esteja a Alice e me pergunte o que estou ali a fazer. Talvez lhe responda que ando a viajar pelo reverso da luz. Talvez ela peça para voltar para este lado do espelho. Não demorará tempo nenhum a estarmos a ler um livro sem palavras e a termos conversa entendida em linguas que não aprendemos.







Coitada, deve ter-se feito personagem e gravura, porque já sem ela, estou em frente a um mar ainda mais azul que o da ilha Terceira, algures lá para os lados do somewhere over the rainbow.


Deste sonolento lado, todo o exterior é nublado, difuso. O mundo correrá lá fora com os seus enredos, certezas e dúvidas, desmandos e preces, solidões e amores, lutas e cansaços, de rota certa no futuro que se cumpre à morte de cada micro segundo passado. O presente é condenado a já ter sido. Os tempos tendem para a matemática, para a equação de resolução exacta. Fixa e imutável.







Este lado é imune a explicações. A racionalidades. Lá terá a sua lógica sem filosofia que a explique. Ou ilustre comentador em horário nobre.






É viagem não domesticada para além dos muros da sensatez. Turismo selvagem. Quem por lá adormece é louco. Quem acorda assoma-se ao parapeito deste nosso caos ordenado, limpa os sapatos no tapete preso pela força da gravidade e diz que está melhor, muito obrigada, e venha de lá a canja nossa de todos os dias nos dai hoje, que já se faz tarde para continuar a viver.







Saio dali com final feliz mas ainda confusa: seria Saturno ou Marte? Quero lá saber!

A última coisa que me apetece é andar a perseguir sombras e ainda me apetece esperar pelo futuro.






Bom dia.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O quebranto

ou seja, penso eu, a vontade de não fazer ponta de corno. Coisa que acho da maior legitimidade, mas se alguém discordar, não pense que me vou pôr de argumentos, porque argumentar implica arrumar os pensamentos e os meus, hoje, fazem-me lembrar uma biblioteca depois de varrida por tornado. Não faz mal, eles, os livros, que são votados à sabedoria, que se arrumem sózinhos. Um bocadinho de sentido prático não lhes fará mal nenhum.
Não sei se é mau olhado se é da chuva, que convida à preguiça e ao recolhimento.





E foi com grande esforço que percebi que não tenho poderes de estancar o correr do tempo e que olhei para o relógio e acabei por estacionar. E sair. Por mim ficaria a ver as gotas, romãnticas e lãnguidas a escorrer pelo vidro, a casarem-se umas com as outras de forma, acho eu, aleatória. Nem sequer cometeria a violência furiosa de ligar as escovas. Parece-me tal coisa, mau génio de deus wagneriano, ou vingativo, ou insatisfeito com a obra. E, decididamente hoje não acordei virada para a mística especulativa.

Acordei mais virada para ouvir a música da chuva no tejadilho, aquele prodigioso som visual a lembrar ampliadas magestades.





Cada membro me pesa toneladas de esforço e a mente está solidária no pasmo. Tem o seu direito. Rejeito tudo o que seja celebração quase infantil do movimento. Hoje não me apetece coisa nenhuma que mexa





Ao telefone, a minha voz está enrolada em greve das cordas vocais. Pergunta-me estás tú cabreada, cariño? Terá que esperar que o prólogo, bocejo e seu epílogo, sem esquecer a errata, terminem para que eu explique que não, que estou com o quebranto, com inveja de quem ao longo da eternidade, fique recostada, sem ter que pensar, trabalhar e ainda seja louvada por isso.






Reclamo o direito ao egoismo.Os outros que trabalhem, que procurem a profundidade das coisas. Eu fico-me pela plana superfície. E chega muitíssimo bem.

Lá terei que explicar, a duras penas, que um conhecido alentejano, rapaz culto de trinta e tal anos, me explicou que sofria amiúde de quebranto, que é uma espécie de lazêra, curável com uma reza antiga e que ia à da tia Carmita, senhora de amplos saberes, e que fazendo três vezes o sinal da cruz com o polegar em frente da boca do afectado, enquanto soava lenga-lenga de exorcismo quase certo, o punha como se fosse possuído pelo Red-Bull-dá-te-asas.

Conhecendo-o, mantenho-me céptica. Ele que me perdoe, mas até a cortesia dá trabalho.

Fico a saber, porque guardei a memória em sítio nublado, espécie de cofre-forte da consciência, que Doña Pilar é mais confiante em dar três nós num lenço para que lo temblao fique aprisionado até descobrir a forma de sair outra vez de tal novelo. Convenhamos que é esperto e acaba sempre por sair. Nem furiosa castelhana reza lhe serve de algema. Doña Pilar tem a certeza que se trata de uma das múltiplas formas de mau-olhado. Tem dotes metódicos na classificação do oculto.

E pronto, é tempo de hercúleo esforço. De ir para casa ver qualquer filme estúpido, desde que não seja do Mister Bean. Isto se tiver ânimo para pôr a cabeça para a frente, abrir os olhos e deixar que a imagem entre dentro deles, levando-a para o cérebro. Se ele a vai processar, isso não sei. Para ser franca, também não me interessa.






Talvez amanhã, depois de uma noite de sono, me lembre, de modo mais ou menos conformado com a digna e útil existência, da direcção social e gregariamente correcta a tomar. Talvez me lembre do caminho.






Hoje não me apetece ralhar comigo. Exigo o direito de ser nada.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Tierra, cuerpo, langor, locura, soledad






Fica a vontade lassa e abandonada, nada parece ter princípio nem fim e o meio é um vaguear apático e sonolento. Ficam os olhos de outra cor, quase cegos de tanta luz. Espreguiça-se o corpo e quase se toca as labaredas do sol.

Estradas rectas de ninguém. Vastidão imensa onde ensaiamos gritos. Porque nos dá vontade de gritar. É paisagem que convida ao exorcismo. E os gritos lá hão-de ficar a pairar. Talvez cheguem ao Sangre de Cristo, a um dos seus picos, onde eram, por vontade própria, abandonados os corpos vivos dos velhos homens que decidiam morrer. Levados em dança, deitados à espera que o Pai Céu mandasse os espíritos que os levariam.

De vez em quando lá surgem as bombas de gasolina com os móteis. Sítios de encontro para gente que nunca se conheceu, ou acabou de casar, ou assume solidão sem poiso, está de aventura ou viagem. Uns com ar de sábios, outros de loucos, outros indefinidos a pender entre uma e outra coisa.







Se se fizer um desvio, andam por ali morte e vida de mão dada. Expostas ou escondidas. De uma gruta, pode sair animal, e, se nela entrarmos podemos ouvir um grito tão agudo que todo o corpo estremece. Ninguém nos manda perturbar os espíritos latentes, provavelmente de algum espanhol de deus fixo ali supliciado.






Noutras parece que entramos na luz aberta de um quadro da O´Keeffe.





Ao lado de um esqueleto de branco puro, pode estar a exuberância, e a sensualidade de uma flor vermelha. No meio da areia ou pedra maior pode aparecer uma árvore frondosa com pássaros de todas as cores. Chilrrear contente. De um buraco na terra, pode surgir fio de água aos soluços. Gelada e cristalina. Andando ao acaso, encontram-se restos de vida de todas as espécies










E é importante que se ouça o som dos passos. Tão audível e indiscreto. Como se se pisasse brita. Todo o chão é mistério.


Antigamente, as muitas tribos de índios, escolhiam os ouvidores: deitados no chão, na Mãe Terra, ouviam os invasores pela vibração. Todos guerreavam pela terra de onde, por buraco ou gruta, corresse água.

Também de repente, as nuvens que foram mulheres doces podem encher o céu e dar a benesse da chuva. Muito se dançou para isso e rompendo o sol outra vez, no que era baça areia, surge um tapete de flores e viçoso pasto. E a orgia de cheiros não se descreve. É coisa para invadir toda a pele. E de olhos fechados.

E também de repente pode surgir um lago gigantesco e limpo, refúgio de solidões sem aparatos, como a de Greta Garbo. Naquela vastidão, ninguém se sente oprimido pelo nome e talvez seja repouso para a memória da própria história..




Ou no meio de nada, um rancho, recheado de gente de poucas palavras, a duvidar de turísticos estranhos.





Aliás, os índios, ou o que resta deles, depois de parcialmente destruídos por espanhóis e cowboys, falam pouco. São considerados altivos, arrogantes, orgulhosos. E quando falam são de difícil entendimento: o vento que soprou no nariz da montanha, fez lembrar ao Pai Céu que nas entranhas da Mãe Terra, as flores fecharam as pétalas.
Mas também são defensores do silêncio alheio. Não interferem. Falam da cabeça de cada um como uma outra terra dentro da primeira. Soberana e livre. Talvez por todos estes silêncios, tanto criador de grande urbe fuja para aquela terra e seja contagiado pela magnitude daquele sossego. O que dá o horizonte sem limites.





Os deuses parecem aceitar as loucuras que os homens condenam.

Toda a mitologia girava, e ainda gira, à volta da Mãe Terra, remetendo para as mulheres. Quando alguma chega à puberdade, os homens cavam um buraco no chão . Hão-de dançar, à volta dele, como festejo, quatro dias e quatro noites. Em círculo. A rapariga há-de escolher o marido. Chega a altura sagrada de "dar vida à flor". E a mãe dela há-de vigiar o genro, por legítimo direito legado pelos deuses. Ao contrário destes nossos lados, se os filhos não aparecerem, considera-se que o defeito é dos homens.




A maior parte das tribos não tem linguagem escrita. Conta tradições oralmente,ou através da dança, das artes plásticas.





É quase sempre a vida contida no ventre das mulheres. Os filhos são paridos de cócoras, para que sangue e águas sejam oferecidas à terra, em comunicação vertical com o céu. Também gotas de leite háo-de ser aspergidas no solo. Em Santa Fé rezam a estas montanhas de feminino traço. A dançar.





Porque tudo se dança. Até no pôr do sol, quando o calor insuportável dá lugar ao frio e o Pai Céu se veste de sangue para ir dormir.











Ali, são as pessoas que se adaptam à natureza e não a natureza às pessoas. E a capacidade de as fêmeas gerarem, com tudo o que isso implica, torna-as sagradas. As mulheres, quando morrem, são enterradas na posição de parto. Uma forma de as devolver. As líderes transformam-se em águias. São as que indicam, lá do voo, a existência de caça ou perigo invasor.

Chega-se a Santa Fé de corpo mole e cabeça zonza. Cidade de rebuliço anárquico. Muita gente de tantos países, tantas cores a desembucar no vermelho e no verde. Somos autorizados a beber cerveja com sumo de limão em quantidade que não fosse perturbar o Lago dos Cisnes em versão contemporânea, naquele teatro que parecia um bloco de barro moldado pelas mãos de um artífice gigante






e ainda tivémos tempo, porque ali o tempo parece preguiçoso, de aprender de viva voz histórias de rituais e mitos. Já tinhamos passado e sentido a aura do Ghost Ranch, morada de Georgia O´Keeffe, agora percebíamos o quanto tudo tinha a haver com os seus pincéis e quando saímos, vendo as danças indígenas, também melhor entendemos palavras e gestos da Martha Graham.

Aquela terra, goste-se ou não, deixa traços na alma, torna-se palco de metáfora para amores ambicionados ou perdidos, para solidões ou euforias, guarda-se nos confins do corpo como uma carícia ou um desprezo.




segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008



Céu, flores , ossos, grutas, amores






Nasceu esta dama,Georgia O´Keeffe, destinada a viver até aos 98 anos, sabe-se-lá, se por ter genética curtida entre irlandeses e hungaros, se por ser dura de roer como as rochas do Novo México.

Fez parte de uma geração de mulheres viradas para aventuras nunca antes vividas. Manisfestou-o anunciando à família não querer ser outra coisa na vida senão artista. Era ainda criança, mas já se lhe notavam os dotes e as vontades. Foi nómada, andou por muitos sítios e escolas, onde ora aprendia ,ora ensinava. Na maior parte das vezes, tinha, simultaneamente, as duas actividades. Um dia tomou contacto com a notan, técnica japonesa de trabalhar as luzes e as sombras. Apaixonou-se também pelo rigor da simplicidade de definir formas através de linhas. E encontrou a massa que haveria de moldar.

Em Nova Iorque, descobria-se a abstracção. E Georgia disse que queria transformar as cores e os traços na mais abstracta de todas as artes, a música.

Começou, depois de ter achado que afinal não tinha talento,




(este, ainda que rejeitado; continua a ser o meu preferido)


a desenhar linhas interpretadas por ela, a carvão. Uma amiga levou os desenhos até Alfred Stielitz, que logo os expos na sua galeria, levando a rapariga a passar férias na casa de família, família que abandonou, filhos incluídos, para casar, durante uns acidentados e intermitentes 22 anos, com este novo conhecimento.

Ainda hoje existem dois partidos na opinião americana: os que dizem que Georgia é grande e os que dizem que Stielitz foi maior. Não sou militante inscrita mas, posta esta dualidade redutora , voto no primeiro.

Stielitz teve a obsessão de a fotografar, e até de a expor nua, em galeria aberta. Coisa escandalosa, tratando-se da legítima, porque das outras ninguém fala.

Bom, mas Georgia começou a ser influenciada pela fotografia, quer dele, quer de outros como o famoso Ansel Adams. Foi a conselho deste que foram passar umas férias ao Novo México.







E Georgia apaixonou-se pela luz bruta do céu, pelos vermelhos e ocres do solo, pela monumentalidade dos rochedos, pela estilização dos ossos dos animais, espalhados pelo deserto. Ou não fosse aquela terra de morte e renascimento constantes. Quem por lá passou, sentiu-lhe a magia inóspita, os sons em eco, como fantasmas perdidos sem rumo nem fim.







E, foi viver, intermitentemente para lá, e de forma permanente quando Stielitz morreu. Em 1946.









A Georgia toda aquela terra evocava sensualidade e mistério. Talvez o único ponto coincidente entre ela e Martha Graham. Esta tornou-a definitivamente hostil desde que aquela se recusou a desenhar-lhe um cenário. Georgia, frontal, disse-lhe que detestava as suas danças. Razão teve uma editora da Vogue, que as divulgou para fora dos circuitos dos habituais consumidores de artes, em ter escrito que as duas eram parecidas, senão iguais, até numa obsessão artistica: a vulva.








De facto Georgia viria a confirmar a sua intenção em assimilar a similitude entre a paisagem e a anatomia feminina. Numa carta a D H Lawrence fala das flores e das grutas. Em termos claros. Martha Graham, também as via em todo o lado, como eixo central do sentir do corpo. Mesmo nos bailarinos.








Logo choveram e continuam a chover ensaios boquiabertos, virados aos ventos de Freud . Mas talvez a mitologia dos povos se adeque às circunstâncias e, por isso, nos ritos dos índios daquela zona, tal pudenda parte seja considerada sagrada, com poder divino, fonte de vida. É uma natureza côncava: a pouca água vem dos poços, as grutas servem de abrigo. A música, de que sou fã, evoca ressonância, a dança tribal tem uma sensualidade marcadamente feminina. Até os homens se vestem de maternidade a implorar a dilúvios.

Georgia começou a pintar as flores em macro planos, monumentais em dimensão, de forma quase abstracta, fora do contexto das tradicionais naturezas mortas, embora essa tendência já viesse a esboçar-se, na pintura americana, desde meados do séc. XIX. Há também quem defenda que Dorothy Norman, com o seu sentido do pormenor, acabasse por ter alguma influência.







Os ossos acompanharam as flores: a abertura da zona pélvica, por onde se podia espreitar, dizia ela, os mistérios do céu, ou a simbiose entre a vida, flor, e a morte, esqueleto. Há quem pense tratar-se de metáfora da sua relação com Stielitz. Georgia nunca falou no assunto quer em relação a este quer a Todd Webb, assim como Juan Hamilton, que lhe foram fiéis em acto e palavra, até à morte dela, em 1986.









Depois, começou a reproduzir a arquitectura nas linhas essenciais. Lá estão quase sempre as negras aberturas








a reduzir os fluxos da natureza a traços já na fronteira entre o expressionismo abstracto e o minimalismo






ou a pintar coisas banais, como esta rocha. Dizia ela que eram coisas sem importãncia, mas que há sempre gente a gostar e sentir as coisas que, sem valor, têm forma, presença e história.





A partir de 1971 começou, lentamente a cegar. Só ficou com a visão periférica. Abandonou o óleo, interpretou com aguarela. Começou a viajar, voltando sempre ao país europeu de eleição, Espanha.


Voltou a Santa Fé para morrer.


Talvez seja uma das águias que sobrevoam o céu do deserto. Lá dizem os índios, que o espírito das mulheres ou se transforma em águia, ou incorpora a suavidade das nuvens. Afinal o futuro, mesmo no céu, é construído no pó da terra.