A silenciosa observadora dos outros

Já não sei há quantos anos recorro ao bar-restaurante da Consuelo quando as longas noites deixam de ordenar as horas.
Provavelmente aos mesmos que indo à varanda das traseiras, já o dia caiu há muito, vejo uma silhueta feminina com o exacto formato de uma sombra, passar em direcção à sua aparente sala de cinema: o tal sítio onde se misturam noctívagos cheios de fome, tédio, trabalho, solidão ou simplesmente, cheios de vontade de ver gente que de alguma forma se lhes assemelhe na vigília das horas vazias.
Provavelmente aos mesmos que indo à varanda das traseiras, já o dia caiu há muito, vejo uma silhueta feminina com o exacto formato de uma sombra, passar em direcção à sua aparente sala de cinema: o tal sítio onde se misturam noctívagos cheios de fome, tédio, trabalho, solidão ou simplesmente, cheios de vontade de ver gente que de alguma forma se lhes assemelhe na vigília das horas vazias.

Dizem que a senhora sombra se chama Guadalupe. Ninguém sabe se é realmente o nome dela ou se alguém assim lhe chamou no propósito obrigatório de dar um nome a toda a gente, como se o não tê-lo esvaziasse o conteúdo da personalidade.
Diz a Consuelo e relatam-nos outros que a Guadalupe chega por volta da meia-noite. E que se senta na mesa já reservada, na sala de entrada de onde tem grande visão para todas as outras.

E que depois de instalada e compondo a sua excentricidade, dispõe sobre a mesa um maço de tabaco Ducados azul por encetar, e um livro encadernado a verde com letras douradas que nunca abre: Arturo Rimbaud, su vida y su obra.

E que levanta o braço, gesto que irá repetindo, para o primeiro rum escuro da noite. Simples no inverno, com gelo no verão.
Tentamos em olhar discreto adivinhar a idade daquele rosto aciganado e bonito: sabe-se lá se o corpo anafado quase obeso lhe estica a pele contrariando as naturais rugas ou se… pode ser qualquer número redondo entre os cinquenta e os sessenta porque o olhar ora vago ora contundente, sem permitir fuga à observação também não dá registo de cansaço ou esperança, de início ou desistência.
Parece-nos assomada à janela da loucura. Ou dentro da loucura a olhar para este nosso lado tão maquilhado de suposta e controlada proporção geométrica de sonho e realidade.
Mas já não nos incomoda que nos vigie os gestos, nos adivinhe as palavras nos lábios, nos decifre os olhares.
Parece-nos assomada à janela da loucura. Ou dentro da loucura a olhar para este nosso lado tão maquilhado de suposta e controlada proporção geométrica de sonho e realidade.
Mas já não nos incomoda que nos vigie os gestos, nos adivinhe as palavras nos lábios, nos decifre os olhares.

Sentimos que já nos despiu e analisou todas as faces. Talvez tanto que já perdemos a vergonha de qualquer nudez.

Já nos habituámos ao desconforto da totalidade daquele silêncio, mesmo quando à entrada e à saída lhe sorrimos recebendo em troca um olhar que sentimos intenso e interessado.
Já por mais de uma vez me pareceu que fixava a cadeira em frente com se alguém, de estatura média ali, transparente, se sentasse. Dizem-me que é imaginação minha: concordamos que, provavelmente, será tão livre que nem para fantasmas abrirá qualquer diálogo.
Já por mais de uma vez me pareceu que fixava a cadeira em frente com se alguém, de estatura média ali, transparente, se sentasse. Dizem-me que é imaginação minha: concordamos que, provavelmente, será tão livre que nem para fantasmas abrirá qualquer diálogo.
E já tamborilou os dedos e sorriu os olhos quando, por alguma ocasião especial, a Consuelo permite a música leve em presença ou de fundo.
Enquanto petiscamos rapidamente, uma escritora diz que ela vai ali sugar a vida dos outros e talvez seja mais sábia que ela, a profissional do voyeurismo letrado;
Enquanto petiscamos rapidamente, uma escritora diz que ela vai ali sugar a vida dos outros e talvez seja mais sábia que ela, a profissional do voyeurismo letrado;

um estilista e um designer com estética virada ao trágico, pensam-lhe o traje que lhe saliente o mistério dos olhos verdes escuros;


uma arquitecta de interiores imagina-lhe a casa de tempo antigo, despojada de tudo, com decoração metódica e milimetricamente arrumada:nunca deixará a loiça por lavar ou a cama por fazer;

um pintor queixa-se de não lhe captar a essência, que os traços lhe fogem como fugiam a Picasso frente ao carisma de Gertrude Stein,

e, claro, imaginam-se movimentos ao som de uma cantata chorosa de Bach, misturada com um violoncelo dorido de Tchaikowsky, ou talvez uma canção irónica de Helen Humes, num palco vazio para “ela” melhor se inventar no rasto que deixa debaixo do seu sol nocturno.

Do outro lado perguntam-me a rir:
- então o próximo será sobre o quê?
-sei lá, olha se calhar sobre a Tía, a da assustadora página em branco…
- vále, sabes que mudou para Ducados vermelho ?
- então o próximo será sobre o quê?
-sei lá, olha se calhar sobre a Tía, a da assustadora página em branco…
- vále, sabes que mudou para Ducados vermelho ?
-a sério?
