
Não fico neste quadro nem mais um instante!
Sabem lá o que é viver tantos séculos aprisionada na obrigação de ser perfeita, de ser única, de manter este meio sorriso permanente e o que me doem as mãos atadas a esta imobilidade.
Estou farta de estar nesta sala fechada, sem mar, nem terra, nem céu à vista. Nem o que se encontra atrás de mim posso olhar. Sei lá onde vão dar os caminhos. Ai de mim, que a minha paisagem são só estas caras e estes corpos que desde a abertura até ao fecho do museu desfilam em frente aos meus olhos.
Talvez uns se pareçam a rochas escavadas pelo vento, outros luas de pincel diminuído de tinta, outros saídos de um pintor hesitante, outros tingidos por um balde de sépia, outros fruto de uma mão distraída. Sei lá quantos tão desiguais que nem a mão do meu criador apanhou. Bom, valha-me isso, tenho um criador fixo, não preciso de inventar fés para me dar sentido.

Lizzie, eu sei que me achas irritante, não disfarces, não encolhas esse ombro direito, não tombes a cabeça para a esquerda. Ando há tanto tempo a olhar as pessoas nos olhos, a estudar-lhes os trejeitos que não há expressão que me iluda.
Nós, os quadros, temos essa sina: temos tempo e ninguém nos vê como espelho. Dissimulamos a verdade que existe num primeiro olhar antes que o pensamento dirija e pense o segundo. Ou o terceiro. Ou o milionésimo já com olhos postiços arranjados pela ciência. Já perdemos o dom da intuição. Já temos a aborrecida rotina da sabedoria instantânea.

Já chega! Quero ir pelo mundo móvel! Vou pedir a um qualquer artista que me dê pernas já que Leonardo me amputou de tal parte. Ou peço-as emprestadas a uma qualquer fotografia descontraída. Apetece-me ser atrevida.

Não preciso de pernas muito técnicas.

Quaisquer apêndices me servem para os meus fins. Dispenso-os para outras habilidades fora da minha dimensão. Só quero sentir na pele o fresco que me foi vedado à nascença. A sorte que vós, os passageiros e mortais têm, a de provar as temperaturas do mundo.

Quero ir ouvir conversas íntimas de outras artes, outras vidas para além da terebintina, dos pigmentos moídos em almofarizes por aprendizes imberbes e dos tratamentos para que não se me seque a tela.

Quero saber o que é fechar os olhos e dormir. Já os ouvi falar desse estado de evasão em que se interrompe a vida.

Ouvi dizer que aí não existem leis e que até a terra pode ser bola de jogo a saltar pelo universo. Talvez até voe, como o Leonardo sempre sonhou voar.
Quero saber o que é o amor.

Essa palavra que vos ouço tanto e que me parece reger-vos a vida. Alguns nem olham para mim: olham-se uns para os outros nos olhos, riem de coisa nenhuma ou ficam com um sorriso parecido com o meu. Quero gargalhada que esconda as desditas. Quero saber o som do brilho nos olhos e a luz que acende um coração que bate mais forte. E quando as minhas mãos se soltarem, quero sentir o que é ter uma mão estranha na minha, aconchegada nos meus dedos.
Lizzie, pára lá com essas arrumações e não me olhes com esse ar condescendente e não feches ainda o livro. Não me espalmes em folha contra folha. Já me falta o ar. Deixa-me sair também deste papel brilhante. Deixa-me multiplicar-me na minha libertação de todos os livros a voarem de todas as estantes. Quero um vendaval de imagens e letras na alma de todas as pessoas.
Não fico aqui nem lá nem mais um instante.
Quando voltares dos teus rumos de dias diferentes, talvez voltes com olhos saudosos das luzes que te brilham na memória. E talvez sorrias, talvez te espantes, talvez levantes as sobrancelhas e abras a boca.

Ai, Lizzie, nem para os quadros o correr do tempo trava…ou se extingue.
E não te esqueças do protector solar, que a tua tela também não nasceu ontem.

E, já agora, ensina-me a andar como se tivesse sido pintada neste mesmo instante. Com toda a vida para me soltar.
Sem molduras
