A observadora do inevitável

Serve o presente e assim lho dedico, à minha amiga Nnannarella, por dia 13 de Março de todos os anos, sem falhar nenhum, ter o desplante de cumprir aniversário, mantendo, assim, a sua capacidade inata para rejuvenescer a vida, que nela é rebento contínuo, ou seja sem demora nem parança e de quem basto me lembrei no que a seguir virá, sabendo ela e quem a conhece porquê.
FGP(YOV (afinação da tecla), senhoras e senhores na minha e na vossa presença
cá vai:
Estando eu posta em sossego numa recheada livraria de Madrid, bebericando uma inocente limonada e folheando livro, quando ouço perguntar de rompante, se já tinha escrito o epitáfio. Olhei em volta e percebi que a destinatária era eu. Fez-me a pergunta senhora, que não tendo nada de gótico urbano dos anos oitenta para cá, correspondia em parecença à duquesa de Alba com menos trinta anos, de ganga trajada, cabelo ripado e flurescente maquilhagem à boa maneira espanhola.

Vi que estava a folhear um livro sobre estatuária votada ao descanso eterno.
Continuando, e sentindo-me surpresa, disse-lhe que não, que ainda não me tinha ocorrido tal preocupação com a minha posteridade.

Respondeu-me, com ar de responsabilidade concentrada e vasto sentido prático, ser tal coisa importantíssima: em vida tudo se faz e desfaz, mas depois de morto, ninguém se defende do retrato literário ali deixado.
Ela andava há anos a aperfeiçoar o dela, entre pesquisas que iam de Shakespeare a Bette Davis, passando por Groucho Marx, o tal que mandou escrever: desculpe mas não me posso levantar. Ou o de um cantor espanhol, que sendo gago a falar teve a autoria de um fabuloso: Perdóne-ne-ne-me usted pe- pe- pe- ro no tengo go- go voz.
Como em Roma sê romano, perguntei-lhe se trabalhava em alguma agência funerária. Disse-me que não, que era publicitária criativa, mas que tinha o estudo de cemitérios como hobby, já que é terreno desprezado pelas demais artes e ciências. Atenta alma.

E o que se aprende e vê sobre a natureza humana…! Além de ser o único sítio na terra onde ainda há valores, como o respeito pela dor e pelo silêncio sem grandes interferências incómodas.
Por isso , na sua investigação tinha chegado a conclusões:
como, no cinema e outras artes, existe uma literatura epitáfial de autor, correspondente a pessoas de convicta personalidade forte ou não confiantes na ideia que têm deles os que cá ficam;
as famílias reflexivas, vão para as citações de filósofos gregos ou outros, sobretudo Schopenhauer;
que os que não têm verbos deixam tudo em suspenso, e citou um ,como se fosse um intervalo e que os orientais assumem a morte, reflectindo sobre ela enquanto que os ocidentais, negando-a, têm sempre textos que apelam à acção.
Depois disto, pergunta-me de onde sou. Lisboa. E diz-me que vem cá muitas vezes. Lindíssimo. O quê? A luz? O Tejo? Os Jerónimos? O Bairro Alto? As Docas? Os pastéis de Belém? Não!! O Cemitério dos Prazeres. Diz-me que tem dezenas de fotografias.
Jazigos onde apetecia morar,

gatos passeando-se metaforicamente sobre e entre as campas e a espantosa vista para a ponte para a outra margem .

E que belos epitáfios, tirados do flamengo, no? Sabe, em Portugal canta-se o fado, não há flamenco… é parecido, mas diferente.
E chega a minha companhia e despeço-me, muito interessante, vaya.
Educada e polidamente, também ela se despede, prevendo que eu darei uma morta muito calma. Superior piropo.
Nnanna, Meu Anjo, que achas de, em consonância
Finalmente, aqui jaz quem nunca dormiu o suposto suficiente?
Ciprestes e ciprestes deles, reflectidos em laguinhos.