sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Férias


é tempo de a lua se rir, pois, apetecendo ,terá companhia sem toque de recolher.

Daqui a umas horas vou arejar os pensamentos.Não importa a posição nem a hora que eles, parece-me a mim, já nasceram com o diabo nos neurónios.Vai ser bom

estabilizar o corpo para lhes dar maior liberdade.Pode-se até adormecer,que os malvados nunca param.

Os infantis costumam descer de escorrega pelo nariz. Depois sobem pelos ouvidos e vão juntar-se aos optimistas que adoram andar de baloiço.Chegam a provocar tonturas de felicidade quando se juntam aos amorosos e apaixonados.

De vez enquando vão espicaçar os pessimistas que moram ao lado dos cautelosos.Empurram-nos para o cimo do nariz. Resistem. Quando perdem o equilibrio caem.E é tal o peso que provocam espirros, assim, sem mais nem menos.É grande o alívio.

Os nostálgicos são parentes dos aborrecidos e rotineiros.Pertencem à classe dos que pendem a fugir. Às vezes os aborrecidos ficam parados, é certo, não há remédio para isso, mas os nostalgicos vão até ao outro lado do Oceano, aventuram-se pelo continente Europeu, circundam pelas terras de abastança e amor. Não têm boa memória para as más coisas.Ficam-se pelas boas. Vá lá que não são antipáticos de todo.

Os solitários são varridos por amena conversa com quem bem os conhece




fazem-se confidências e desabafos e até os conflituosos,destruídos pelos confiantes e amigos, desaparecem:

-estás tão branca que pareces uma ostra albina no meio de um prato de gazpacho!


-e tu uma rã que se prepara para cantar a Traviata!


e soltam-se os risos no meio da irmandade higiénica.


Daqui a umas horas talvez me apeteça


entrar no mundo protegido dos sonhos,aquilo a que se costuma chamar de amnésia.

Não fará mal nenhum a ninguém. Se fizer será só às pessoas de pensamentos enclausurados,aquelas que prendem o mundo na roleta da má ambição e da falsidade.Não há mar nem terra que as descontraia,nem que seja uma vez por ano.

Ah....Ah.....Atchim

Santinha

Obrigada, já começou. Estes devem ser os eufóricos!

Vou fechar a porta,com licença...até breve.



quinta-feira, 9 de agosto de 2007



Só te posso pedir que resistas.

Que lhe dês um pontapé até daqui a muitos anos.

Sei que é difícil,mas é duelo que tens que vencer.
Estás em boas mãos.Eles são de arma pronta a qualquer hora.Já te disse que os conheço.

Daqui a seis meses havemos de ir comemorar a vitória,tá bem,tem que ser com sumo de laranja,paciência,no cimo de uma coisa qualquer.Tu vais escolher.
Agora só te posso dizer que gostamos muito de ti.
Por isso,por aqui,te desejamos

força


quarta-feira, 8 de agosto de 2007

os esquecidos






As pessoas chegam ao átrio,
compram o programa,sentam-se na sala,dão uma vista de olhos.Esquecem-se,normalmente de olhar para os outros artífices de

sonhos:maquilhadores,costureiras,cabeleireiros,fotografos.Os que ficam na sombra dos

holofotes,os que não sobem ao palco para a devida vénia final,para receber as flores.




Conchita Prada vai-se reformar em Setembro.Não é licenciada,não tirou curso,nasceu com a vontade de emitir passaportes para a beleza,de abrir as cancelas para as personagens.






"Sienta en la silla,niña,qué me voy a hacer contigo?"E remexe naquela panafernália de pincéis suaves,de lápis,de cremes.Refilona com o seu quê de autoritarismo maternal.




"cállate!", e tira dez anos com a habilidade de desenhar o tempo.Gostava de o inventar.De brincar com as rugas,com os cansaços.Mas diz que por mais operações plásticas que se façam,nada tira a expressão da idade real nos olhos,nada disfarça o pescoço.


Acabado o trabalho,puxa,de inverno ou de verão,do seu

leque sevilhano.Abana-se:"Aún no,quieta".Fica a contemplar a obra.Tomba a cabeça para um lado,para o outro,pensa em retoques,enquanto a tela viva está até proíbida de pestanejar.

Depois chama o cabeleireiro,a seguir o fotógrafo acompanhado das costureiras que hão-de prender ou soltar um tecido insubmisso.




Quando o espelho aparece abrem-se as bocas.Ninguém se reconhece:o que é que me fizeste aos olhos?O meu nariz?A minha cova no queixo?Eu tenho a boca mais pequena.Enlouqueceste,mulher?

Conchita solta uma gargalhada.Foram-lhe contagiosas as personagens do cinema mudo.Gargalhada lançada com a cabeça caricaturalmente descaída para trás.Histriónica.


Em Setembro,arrumará a mala carregada de segredos,pequenos segredos,que bailarinos e actores nunca suspeitaram ter.
Mas o leque,esse,ficará para sempre.Carregado de abraços,com uma plateia de trinta e cinco anos de efémeros a curvarem-se na merecida vénia.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Eva



Às vezes passamos pelo atelier dela.Respira-se ali ambiente de paz.Sentamo-nos à conversa.Bebericamos qualquer coisa.Vamos olhando os quadros em gestação envolvidos no aroma de trabalho: tubos e frascos de tintas espalhados ao acaso,papéis avulsos deitados onde calha.Parecem alimentos abandonados.Ideias em repouso.

Sabe que não é o meu estilo favorito,que não o uso.Demasiado contido,ritmo muito certo.Digo-lhe que o meu coração tem batimento irregular,que sou viciada no gesto repentino e livre,que nunca sei o que vou pensar,que me cansa pensar.Ela,a espanholissíma Navarro ri-se,quem diria,uma portuguesa indisciplinada.Existem em todo o lado,respondo-lhe.Como em todo o lado existe o olhar sereno,sensível e atento,mesmo em Castela."Ay la gillipollas de la portuguesa ".

Mas gosto da forma como ela coloca as personagens: isoladas em paisagem sem reino.Pode ser em Madrid,em Lisboa,em Nova Iorque.Pessoas num campo abstracto.Podemos ser nós apanhados em dias de nada. Claro que nos faz lembrar um palco. Claro que as imaginamos a perderem a imobilidade.Digo-lhe:olha,Eva,aquela está com vontade de gritar.E gritamos.Se aquele ali não se mexer,vai morrer de espera."Lo qué?".Sabes que existe um mito português da espera,um messias menino chamado Sebastião?
E os olhos dela ganham brilho.Quer saber mais.Aliás quer saber sempre mais.

Depois vamo-nos embora.A inventar vidas nos traços de cor que a Eva traçou.Estará aquele ,naquela luz forte, à espera de quê?

Sei lá,de Godot,não estamos todos?







.
Se calhar... cada um na sua direcção...
sabe-se lá
o que cada um guarda escondido
na cabeça apressada...
ou parada...
apetece-te um gelado?
não, estou de dieta!
Uma vez por outra...

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

valsa dos tristes amantes



Andámos à deriva por ruas,esplanadas,cafés de horas tardias à procura deles,a imaginá-los.Eles, que nos iriam sustentar os gestos,que nos iriam forrar a alma de um qualquer e indefinido abandono,que nos enchiam de palavras e especulações inúteis.

Acabámos por encontrá-los.

Estão em todos os tempos e lugares,em todas as esquinas onde o amor se vê contrariado na sua expanção eufórica de partilha.

Andam de olhos sempre baixos.Pisam o chão como se fosse alcatifado de vidro traiçoeiro.Sussurram as esperanças em bocas censuradas.Desconfiam da pretensa harmonia ancestral e melódica do mundo.Fazem parte de uma orquestra para os outros desafinada:sons que se ouvem sempre fora do tempo.Assustadores.

Mas são felizes na sua solidão enclausurada.Sabem o que os outros já esqueceram ou nunca chegaram a conhecer.Sabem que no calor de uma dança escondida pode estar toda a filosofia do mundo,a ternura de um segredo.E nasce a força nem que seja durante o tempo de uma ilusão.

Vi-os hoje,Chiado fora.Sei lá se tinham raça ou género.Ganhei o hábito,desde esses tenros anos, de só lhes olhar os passos fugidios no meio da muldidão entorpecida.

Só por isso,valeu a pena.Só por isso nos valeu a pena.



sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Ai,que aflição...




...que,daqui,já lhes ouço os gritos.Já me aparecem,vestidas de sossego e maresia em todos os meus pesares , cansaços e saudades.Sobrevoam-me os sonhos antecipados e sublinham-me as









rotinas já pálidas de exaustão.

Já falta pouco para que os muros se movam na direcção dos encontros,







que nesta vida a que nos obrigam a existir,são eles,quantas vezes?,que nos modelam o destino.

O tempo é relativo consoante a urgência,e,uma semana parece eterna.

Peço-me calma neste estender das horas que o mar é permanente na espera.Sempre esperou e o mundo,embora doente,não tem sinais de morte súbita.Ainda é capaz de aguentar uns tempos.

Não vou fazer o que já fiz



porque,como já toda a gente sabe,ou virá a saber,com a idade a cabeça fica mole com paciência.

Ai,ai,valha-me o fim de semana,que,vendo bem,não sou tão velha como isso.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

A conversa



A noite vai gotejando escuridão.Ilumina-se a conversa corrida.Vão surgindo palcos e peças de teatro vivido e por viver.Fala-se como se Godot espreitasse por entre os ramos das árvores,ou o trágico Shakespeare,ou o Ionesco,sei lá...saibam os actores ainda sem rosto.

Somos estóicos na atitude de olhar a vida com riso,nós os pequenos na grandeza de existir.Sentados na plateia,vamos compondo as personagens:um bocadinho de ironia aqui,um pedaço de melodrama ali.Vagueamos por entre a sensatez e o absurdo.A vida,a morte.Apalpamos os afectos,entre a macieza da seda e a rugosidade da serapilheira tosca.Definimos os figurinos.Poucas personagens andam completamente despidas.Guardamos-lhes um pouco de privacidade:uma estratégia para abrir as portas à imaginação.
Continuamos a rir da forma mais séria.Rimo-nos até da dor da ferroada de um insecto:uma perna e um braço marcados por ferrão desconhecido."Ay qué coño, te doele a tí?"

Levantamo-nos da esplanada,escolhemos caminho vigiados pelo canto das cigarras.Fugimos dos repuxos de água imprevisíveis,brincamos com os arbustos colocados no cenário.Continuamos a falar das teias.A urdir argumentos num tribunal imaginário.Está quase delineada a peça sem fim que se veja solucionado.Ficará para o próximo chá à luz da amizade.

Despedimo-nos ao som contagiante de movimento do "no llores chaparrita,qué tu amor está en el campo...ay,ay",canção cubana, ronfenha, dos anos trinta.

Atendo o telefone:" hablaran de qué,vosotros?"
"De todo,de nada,de la vida...Yo qué sé...?"

Deito-me,vejo uma aranha a tecer a teia na floreira da janela,debaixo do foco da lua, penso que seria necessário um palco maior.Vejo-o vir da esquerda alta em direcção à boca de cena,em passo cadenciado. Sorrio-lhe.Aninho-me.E adormeço.